Demasiado obscura para ser um fenómeno de sucesso, demasiado apelativa para ser um fenómeno de culto, a série The Expanse regressou nesta semana ao conjunto de coisas que podem ser vistas naquilo a costumávamos chamar "televisão" - na Amazon Prime, após três temporadas no canal SyFy, e um breve e penoso exílio no purgatório das séries prematuramente canceladas, antes de ser salva por esse maciço objecto astronómico designado "Jeff Bezos" (um fã)..Ao contrário da categoria mais ampla de "Fantasia", que entre O Senhor dos Anéis, A Guerra dos Tronos e o Universo Marvel acumulou nos últimos anos provas mais do que suficientes para justificar centenas de artigos de crítica cultural dedicados ao "triunfo da cultura nerd", a ficção científica televisionada tem-se mantido um gueto dentro do gueto - não, suspeita-se, por má vontade de um público cada vez mais receptivo às aspirações de mobilidade social dos subgéneros ficcionais, mas por objectiva falta de passaportes de qualidade. Injectar qualidade no formato, dentro das restrições próprias da "televisão de prestígio", é um complicado acto de equilibrismo: requer obediência mútua às pretensões de sofisticação (responsável por fracassos como Altered Carbon) e ao impulso de regressão nostálgica (um legado de Star Wars) que lisonjeie uma classe demográfica obcecada com os seus brinquedos de infância. Enquanto género, a ficção científica justifica-se a si própria no acto que antecede a criação propriamente dita: o arranjo das características formais que tornam a narrativa quase supérflua. Se há (digamos) naves espaciais, então é ficção científica, e narrativa alguma pode alterar a categorização, por mais que o produto final se assemelhe a (digamos) pura feitiçaria ornamentada com vocabulário pseudocientífico. O truque essencial para atingir o patamar necessário de qualidade será qualquer coisa como conseguir levar a sério as suas próprias premissas sem resvalar para a solenidade portentosa (um defeito comum, no qual Westworld é o campeão olímpico), nem para uma tecnofilia ingénua, oferecendo a fantasia de um grupo de amigos muito espertos que sabem mexer em cabos e teclados com tanto talento que resolvem os problemas todos (como a regeneração contemporânea de Star Trek, uma espécie tecnocrata de West Wing no espaço)..Foi neste universo de perigos e dificuldades intrínsecas que The Expanse aterrou em 2015, com toda a subtileza de uma ficção extremamente mais ou menos. Adaptação de uma série de livros escritos a meias por Daniel Abraham e Ty Franck (e que começaram por ser regras para um jogo de tabuleiro), a acção decorre daqui a um par de séculos, num futuro em que a humanidade colonizou parte do sistema solar e se subdividiu em três potências geopolíticas. A Terra é governada pelas Nações Unidas. Marte transformou-se num planeta autónomo e militarizado. A cintura de asteróides é povoada por uma classe de operários sujeitos a várias estruturas de opressão e governada por alguns sub-Arafats. Entre estes três pólos, navegam várias naves espaciais baptizadas de acordo com as obrigatórias referências literárias como "Rocinante" ou "Canterbury"..Ao contrário de muitas séries que tenham trabalhado dentro dos subgéneros na última década, The Expanse não tem quaisquer pretensões de "subverter" os seus tropos e clichés. É exactamente aquilo que pretende ser, ficção científica "dura": berrante, antiquadamente futurista, esperta sobre os limites da tecnologia, interessadíssima na interacção do corpo humano com astronomia avulsa, obcecada com o poder em nome do realismo, um festival de superfícies extravagantes e profundezas inexistentes. Exibe também uma comovente falta de ansiedade com apropriações, e parece ter roubado peças sobressalentes a todo e qualquer produto de sucesso: a narrativa contém elementos de A Guerra dos Tronos, Alien, Blade Runner, Solaris, Firefly e mais uma dezena de etceteras. Temos cenas em que alguém inspecciona uma nave abandonada e murmura "começo a ter um mau pressentimento"; subordinados a explicar aos seus superiores hierárquicos que "eu estava só a cumprir ordens"; detectives aconselhados a abandonar as suas investigações por estarem a incomodar "pessoas poderosas". Os diálogos consistem exclusivamente em personagens a dizer umas às outras exactamente aquilo que pensam; e cada uma delas parece uma montagem de regras para tornar o género legível: um conjunto de manequins febris com tanto a esconder (não há personagem que não guarde um ou outro segredo terrível) que acabam por não ter qualquer mistério. Há bastante acção (e gráfica), mas pouco drama..Tudo isto pode parecer um conjunto de defeitos, mas a tripla espiral do enredo é menos interessante do que o universo construído através do qual vai desenhando as suas consequências. The Expanse mostra-nos um mundo gasto, vivido, com uniformes sujos e monitores rachados. Ao contrário da esmagadora maioria da ficção científica, os problemas técnicos não são meros expedientes para revelar a capacidade de os resolver, mas servem também para ilustrar a colossal e perigosa maçada que é viver emancipado das leis da gravidade. Uma vida inteira na cintura de asteróides tornou os corpos mais vulneráveis. Todos são altos, magros, de ossos frágeis. (Foi talvez o melhor raciocínio de sempre para se fazer aquilo que todas as séries querem fazer: preencher o elenco com actrizes que parecem top models.) Aos oito minutos do primeiro episódio, mostra-nos aquilo que qualquer filme de ficção científica nunca tem desculpa para não mostrar: duas pessoas despidas a ter sexo em gravidade zero. Alguns episódios depois, um efeito especial espectacularmente gratuito mostra-nos as consequências precisas de uma decapitação no vácuo..Se a série tem uma virtude maior, é a destreza com que evolui a partir da segunda temporada, descartando aos poucos a sua salada de influências e mostrando, a intervalos regulares, os efeitos esquisitos e as formas de deslumbramento que são, tradicionalmente, o melhor que a ficção científica oferece: a subcategoria de ironia dramática, na qual o espectador e as personagens descobrem subitamente que o universo é muito mais vasto do que imaginavam. Aproximadamente oito ou nove horas de televisão passam entre um absurdo enredo neo-noir (um detective de chapéu investiga o desaparecimento de uma menina rica), e o mesmo detective a dar beijinhos num cristal consciente antes de um mergulho planetário suicida que lhe permite dispersar-se por dimensões infinitas e ressuscitar como uma espécie de fantasma que é em simultâneo um portal para outros universos..The Expanse é um motor caríssimo, concebido para engendrar efeitos baratos, truques antigos e piroseira extravagante. É um fabuloso entretenimento. Adjectivos como "bom" ou "mau" nem sequer são para aqui chamados; ficam lá em baixo, junto à gravidade..Escreve de acordo com a antiga ortografia.