Espanha-Marrocos-Portugal

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Não, Rabat não é a capital mais próxima de Lisboa. Madrid é que é, medindo em linha reta. Mas isso não significa que Portugal não deva estar bem atento a Marrocos, vizinho ligeiramente além-mar, cuja história se interseta com a nossa. Os marroquinos, esses, estão atentos a Portugal, até porque Lisboa é a capital mais próxima de Rabat. Madrid, nesse caso, fica mais longe, Argel também.

Como já se percebeu, tanto a geografia como a história justificam uma relação cuidada com Marrocos. E justificam cuidado na observação da relação do nosso vizinho terrestre, a Espanha, com o nosso tal vizinho de além-mar. E nos últimos tempos a relação entre Espanha e Marrocos tem sido especialmente tensa, e não parece que as causas dessa tensão estejam próximas de desaparecer.

Fiz a minha primeira reportagem para o DN em Marrocos, as legislativas de 1993. Era o tempo em que se falava de democracia musculada para definir um sistema de governo com partidos vários concorrentes mas tutelado por Hassan II, o rei. Uns anos mais tarde, entrevistei, numa cimeira luso-marroquina, o primeiro-ministro Youssoufi, socialista e um histórico da oposição. Uma certa reforma avançava, ainda em vida de Hassan II. Por isso, com Mohammed VI no trono, a partir de 1999 a abertura prosseguiu e a Primavera Árabe de 2011 obrigou o palácio a acelerar a modernização do sistema. Entretanto, um partido islamita formar governo mostrou que a sociedade marroquina se move e que o rei e aqueles que o aconselham confirmaram que já não bastava músculos para controlar o país. Grandes investimentos foram feitos para melhorar o nível de vida dos mais pobres, leis foram adotadas para permitir à classe média um estilo de vida compatível com o Islão mas moderno. E quem ajudou nessa modernização foi a UE, principal parceiro económico de Marrocos, e de um modo especial a Espanha. Testemunhei esse Marrocos dinâmico em 2019, quando fui a Tânger assistir ao alargamento do porto, candidato a ser o maior do Mediterrâneo.

Para agradecer aos espanhóis, Marrocos aceitou cooperar no combate à imigração ilegal através do estreito de Gibraltar. Além disso, contratos importantes foram atribuídos a empresas espanholas, que lá puseram cinco mil milhões de euros em investimentos. Mas nunca se pense que os países se preocupam só com a economia. Ou que esta é sempre a prioridade.

Desde que os portugueses retiraram de Mazagão, a atual El Jadida, no século XVIII, entre Lisboa e Rabat não se vislumbram motivos de conflito. Até às rotas migratórias têm poupado Portugal, apesar de ocasionais barcos no Algarve. Mas o mesmo não se pode dizer da relação entre Madrid e Rabat. Espanha foi colonizadora no século XX e isso deixou marcas no orgulho marroquino, como foi evidente há semanas, quando o líder dessa Polisário que luta por um Sara Ocidental independente foi acolhido num hospital espanhol. Rabat descobriu, indignou-se e reagiu fechando os olhos às entradas de ilegais em Ceuta, usando a fragilidade do enclave para encostar Madrid à parede. A mensagem é clara: deixem de falar em referendo da ONU e aceitem a soberania marroquina sobre a vossa antiga colónia, caso contrário Ceuta entra na agenda. E de repente o adjetivo "ocupada" para a cidade que foi portuguesa de 1415 a 1641 começou a ser usado por governantes, quando antes era comum só nos jornais.

O regresso à União Africana, os consulados no Sara e o reconhecimento da soberania pelos EUA na era Trump explicam a determinação marroquina nas ditas províncias do sul. A guerra reiniciada pela Polisário dá também argumentos a Rabat para tentar resolver de vez a situação herdada da retirada espanhola em 1975, já com o ditador Franco moribundo. Mohammed VI disse e redisse que oferece uma vasta autonomia.

Espanha, por seu lado, mantém-se firme em que a questão do Sara será resolvida segundo os termos da ONU, e não deixa de ser firme também sobre Ceuta, tentando em simultâneo pôr a UE do seu lado contra Marrocos. Ora, é das consequências inesperadas do braço de ferro hispano-marroquino, tão emocional, que Portugal se deve prevenir, não se deixando arrastar. A ter o governo de Lisboa algum papel neste triângulo Espanha-Marrocos-Portugal, deveria ser o de promotor do diálogo.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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