Rui Rio e o racismo
"Foi promovido por forças de esquerda, apesar de todos sermos contra o racismo. Ainda entendo na América onde aquilo aconteceu, agora aqui em Portugal, mas a que propósito? Ainda ficamos é racistas com tanta manifestação antirracista, não noto isso na sociedade portuguesa, não há racismo na sociedade portuguesa" - Rui Rio.
O bom contributo de Rui Rio para o ambiente político português vai muito para lá do comportamento exemplar que tem tido durante a pandemia. Fez regressar a matriz social-democrata ao PSD e, mais do que tudo, está a construir de forma clara uma alternativa séria ao PS e aos seus aliados.
O partido estava numa espiral de degradação muito acentuada, em constante perda de influência na comunidade e cada vez mais ruralizado. Rio tem um caminho árduo pela frente.
Por querer recentrar o partido e lutar contra quem o queria destruir ou virar violentamente à direita foi, e ainda é, o alvo de ataques que começaram no próprio dia em que foi eleito.
Rui Rio é o garante de que a alternância democrática se pode fazer sem cedências a ruturas que só servem para atrasar mais o país e sem concessões a extremismos perigosos.
Num tempo em que tanta gente desconfia dos políticos, a perceção geral de que há um que diz sempre o que pensa, não mente ou sequer torce as suas convicções para agradar a quem quer que seja traz, e ainda bem, dividendos políticos, na área política do PSD e não só. Se a isso acrescentarmos o facto de ser alguém que é um democrata, um defensor do Estado de direito e alguém que já deu provas suficientes de que é um estadista e um patriota mais razões há para admiração geral.
Assim, uma grande vantagem para alguém que decide analisar o que Rui Rio diz é não ter de se preocupar em pensar se ele quer mesmo dizer o que diz, ou se há um plano, ou se corresponde a uma qualquer tática.
Não é, como por aí ouvi, para agradar a eleitorados que, não há como o colocar de outra maneira, racistas ou, pelo menos, pouco sensibilizados para esse problema.
Ou seja, não há dúvidas de que Rui Rio acha mesmo aquilo que em cima transcrevo. E o que diz não é só errado a vários níveis, é grave.
Em primeiro lugar, Rio cai num erro que não pode mesmo cair e que tão caro tem ficado ao centro-direita: o de entregar o combate ao racismo e a muitas outras discriminações sociais à esquerda. Dizer que "somos todos contra o racismo" e entregar a promoção de manifestações contra à esquerda é entregar a bandeira. Isto não é novo - espanta é que Rio caia nisto -, o centro-direita tem deixado que valores que também sempre foram os seus tenham sido apropriados pela esquerda.
Ultimamente, a estupidez tem atingido níveis estratosféricos quando vemos alguns intelectuais orgânicos da direita afirmar que basta a esquerda defender o que quer que seja para ser obrigatório defender o oposto.
Isto tem consequências graves para uma paranoia perigosa que está a atacar o mundo, uma espécie de revisionismo histórico histérico que derruba estátuas, censura filmes e peças de teatro e lança livros para um novo índex. O centro-direita pôs-se tanto fora dos combates públicos contra o racismo e permitiu, por ação ou omissão, ver-se confundida com gente pouco recomendável que perdeu boa parte do capital político para lutar contra esta loucura que confunde o combate ao racismo com um arrasar da história que apenas vai trazer mais radicalismo e nada vai acrescentar à luta pela igualdade.
Não, "não ficamos mais racistas por haver tantas manifestações antirracistas". O antirracismo não é exatamente uma coisita que se decida ser contra porque alguém vem para a rua manifestar-se perturbando o nosso sossego. O racismo não é um detalhe nas nossas comunidades, não é algo com que se pode viver olhando de lado, não é qualquer coisa que possamos analisar como apenas mais um problema. Rui Rio não pode abordar este tema com a leveza, o descuido e a distância com que o fez, não é digno de um indivíduo sério, honesto e de valores como ele.
O racismo não é só um cancro terrível na América - e mesmo se só aí o fosse mereceria todas e mais algumas manifestações em todo o lado -, também o é aqui. Todas as manifestações são poucas, todo o ativismo contra o racismo é insuficiente enquanto este estiver tão presente nas nossas comunidades.
Nós somos a comunidade em que ser negro praticamente equivale a ser pobre, em que a maioria dos bairros degradados tem uma população maioritariamente negra, em que não há negros em cargos de responsabilidade nas maiores empresas, em que a entrada no Parlamento de negros é celebrada por ser tão rara, em que os negros têm uma taxa de desemprego enorme. Somos a comunidade em que as piadas racistas são mais do que toleradas, fazem parte do dia-a-dia, em que os insultos em sítios públicos (lembram-se do Marega) são comuns, em que o próprio primeiro-ministro é alvo claro de racismo em conversas de rua, em que a violência policial é sobretudo dirigida contra negros.
Ao contrário do que o líder do PSD pensa, somos um país onde o racismo está tão profundamente entranhado que nem nos apercebemos da violência com que o exercemos.
Se Rui Rio não sabe de tudo isto ou anda muito distraído ou não conhece a comunidade em que vive.
O homem de quem Passos Coelho se riu a bandeiras despregadas na discussão do primeiro Orçamento da geringonça e que foi humilhado publicamente por António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa - no caso António Domingues - é o mesmo homem que se tornou o ministro das Finanças mais popular da democracia portuguesa, o primeiro a apresentar um superavit nas contas públicas e o líder muito elogiado do Eurogrupo.
António Costa, no fim do anterior governo, já estava claramente farto dele. Mário Centeno já tinha desempenhado o papel fundamental que António Costa tinha para ele: limpar a imagem de irresponsabilidade na gestão das contas públicas que, justa ou injustamente, os socialistas tinham. Além disto, o ainda presidente do Eurogrupo deu imenso jeito a fazer de polícia mau na relação com os camaradas da geringonça. Só que havia umas eleições para vencer, e Centeno era o melhor trunfo de Costa para conquistar o centro político. Ele era a imagem do equilíbrio, da moderação e das contas certas. Para melhorar ainda a sua imagem junto desse espaço político, o BE execrava-o. O que se passou até agora era mais do que previsível. Não só Centeno não queria continuar no governo, como Costa já não o queria. Se, por um lado, o novo ciclo obrigava a outro tipo de gestão política (por isso Costa o tirou de segunda figura do governo),
Centeno tinha um estatuto e um capital político que lhe davam uma autonomia enorme na sua ação. Se teve de engolir as suas palavras no caso Domingues, não hesitou em publicamente desmentir o primeiro-ministro no caso Novo Banco e em deixar bem claro o desagrado com o processo Costa Silva. Mário Centeno pode não ser o melhor economista do pedaço, mas transformou-se seguramente num político de mão cheia. Não é o primeiro a quem isto acontece. Só não terá uma carreira política maior se não quiser.