"Nós não temos grandes palácios como Lisboa. O Porto era uma terra de mercadores"
É o historiador mais popular do Porto e das coisas do Porto, onde tem vivido toda a vida apesar de ter nascido em Penafiel, já lá vão 88 anos. Mas hoje o tema é Lisboa. Lembra-se da primeira vez que lá foi?
Foi nos anos 1950, eu fazia parte da Juventude Operária Católica. Era dirigente diocesano aqui no Porto e realizou-se primeiro grande congresso da Juventude Operária Católica em Portugal, um congresso que foi muito vigiado pela PIDE. Foi no Instituto Superior Técnico, teve muita gente. Fiquei alojado perto do Campo dos Mártires da Pátria. Estava muito excitado porque não conhecia Lisboa e tive oportunidade para dar umas voltas a pé e fiquei com uma bela impressão. Lisboa, nessa altura, suponho que era primavera, era muito luminosa, prédios com cores garridas, que contrastavam muito com o granito e o cinzento aqui do Porto.
Sendo o Porto uma grande cidade, Lisboa impressionou-o mesmo assim também pelo tamanho?
Sem dúvida. O Porto era e é uma cidade de trabalho, com gente de carácter - não gosto da palavra bairrista -, com gente que não verga e que bateu sempre o pé sobretudo após o liberalismo, depois de terminada a monarquia absoluta. Há histórias até de que o rei chamava ao palácio Fontes Pereira de Melo para lhe dizer "olha que lá em cima, na Praça Nova, andam a mexer. Tu faz cair o Governo". O Porto batia o pé, Lisboa acatava. Mas, sim, é uma capital grande. E há uma diferença grande entre as duas cidades. Nós não temos grandes palácios como Lisboa. O Porto era uma terra de mercadores, de homens que iam fazer os seus negócios para o Norte da Europa e conseguiram dos reis o privilégio de que os fidalgos - os ociosos, os homens do dinheiro - não vivessem cá. Eles podiam vir ao Porto se tivessem rendas a cobrar, se tivessem de tratar da saúde, mas não podiam ficar mais de três dias, pois seriam expulsos. Ora, isso fez que os fidalgos, que eram quem tinha o dinheiro, não construíssem aqui os seus grandes palácios. Aqui chamamos palácio ao Palácio dos Carrancas, onde está agora o Museu Soares dos Reis, mas aquilo era uma vivenda da burguesia mercantil portuense. Em Lisboa são muitos os palácios, de Belém, das Necessidades, da Ajuda, tantos.
Lisboa e o Porto são muito marcadas pelos rios. Quando olha para os dois rios, o que sente como diferença?
O Tejo dá-me a sensação de que divide uma parte da outra, enquanto o Douro une. D. Afonso III mandou fazer umas inquirições ao Porto para saber o que é que rendia o tráfego marítimo fluvial. Vinham barcos da Europa fazer aqui comércio e ele depois daquilo criou a cidade como feudo episcopal. Desde 1140, em que a D. Teresa deu a cidade do Porto ao bispo, até D. João I, isto era feudo do bispo. Era quem cobrava impostos, fazia a justiça. D. Afonso soube que era um bom rendimento e então faz uma acostagem do lado de Gaia, assim os barcos iam carregar e descarregar em Gaia, para que os impostos fossem pagos ao rei e não ao bispo. Há uma lenda: temos aqui o lugar dos Guindais e diziam que o bispo tinha mandado fazer lá uma geringonça para tirar os fardos e as mercadorias dos navios com mais facilidade e enganar o rei, daí ter esse nome. O rio Douro foi sempre um entreposto de negócios aqui na cidade e foi através do Douro que a cidade prosperou. Escoava para os mares da Europa, porque o rio era navegável quase até ao Pinhão e traziam de lá fruta, mel, couros e vinhos que exportavam. Quando olho para o Tejo, vejo o mar. Vejo o Bugio. E aqui não. A prova de que aqui há esta união é que no São João a festa é feita em conjunto entre Gaia e o Porto.
Sente muita diferença nas celebrações do Santo António e do São João?
Há uma grande diferença. O santo da devoção dos portuenses até é o Santo António, o patrono do comércio. A igreja, numa bem-sucedida operação de marketing, substituiu o Apolo, que era o deus dos mercadores, pelo Santo António e ele figura aqui em restaurantes, cafés e lojas. Azulejos que há aí na cidade, só se vê o Santo António nas fachadas. O São João é o patrono de uma festa, uma festa que não tem paralelo e é única no mundo. Nos anos 1990, a Newsweek fez um número especial com uma grande reportagem sobre as festas cíclicas por todo o mundo: o Carnaval no Rio de janeiro, as festas na China... e o São João do Porto aparece lá. É uma festa única: não tem um programa. As pessoas saem de casa, vêm para a rua e é a fraternidade.
As duas festas não são comparáveis?
Não, não. Em Lisboa são os tronos, a sardinha assada e os bairros. Nós aqui também fazemos nos bairros, mas à meia-noite junta-se toda a gente na mesma festa.
Se considerarmos 1143 a data do nascimento do país, o Porto já fazia parte do país e até ajudou a dar-lhe nome. Lisboa só será conquistada por D. Afonso Henriques quatro anos depois. O Porto lamenta não ser a capital?
O Porto é a capital do trabalho, auxiliou os reis - por exemplo, D. João I precisou de dinheiro e foram os mercadores do Porto que lho emprestaram. O rei depois, que nunca devolvia o dinheiro, compensou o Porto, que criou o "termo do Porto", que ia de Santo Tirso a Penafiel, e tudo aquilo passou a ser Porto. E era honroso ser do termo do Porto. Se em Penafiel quisessem abrir uma estrada, era a Câmara do Porto que tratava.
Quando diz capital do trabalho, pode-se dizer que o Porto é a capital económica de Portugal?
Foi e ainda hoje é. Lisboa, e isto sem qualquer sentido ofensivo, viveu do ouro do Brasil e nunca houve lá grande indústria, ao passo que no Porto havia os artesãos na Idade Média e depois por aí fora, a industrialização, que aqui foi exemplar no século XIX.
Mas sendo Lisboa a capital política e muitas vezes vista como privilegiada em relação ao Porto, há muitos portuenses que escolheram fazer vida em Lisboa?
Então não há? O presidente da Câmara Municipal de Lisboa é daqui de Ramalde. Até me contaram que quando António Costa o convidou para candidato, Fernando Medina disse "mas eu sou do Porto", e Costa terá dito que "das pessoas que vivem em Lisboa, poucas são de cá".
Estou a pensar também em Sá Carneiro, primeiro-ministro...
E hoje temos o ministro do Ambiente, o ministro dos Negócios Estrangeiros, também o José Luís Carneiro, número dois do PS. O Porto continua a dar elites a Lisboa. A rivalidade foi criada com o futebol e eu confesso que nunca entrei nessa história. Houve uma época em que fiz parte de direções de sindicatos, de conselhos de imprensa, de comissões de trabalhadores, ia muito a Lisboa e tenho lá imensos amigos e colegas com quem privo, e sempre reconheci que Lisboa é uma cidade monumental, que é capital e que tem uma monumentalidade que o Porto não tem. O Porto tem outro orgulho, outras coisas, gente de trabalho. E mesmo as festas da cidade são diferentes lá e cá.
Se um clube de Lisboa ganhar o campeonato, há festa aqui no Porto?
Há benfiquistas e sportinguistas que fazem a festa. O Porto também tem adeptos em Lisboa, e vice-versa. E acho que isso é muito saudável. A rivalidade no desporto tem de ser saudável. Sou contra toda essa vivência das claques. Sou portista, tenho lugar cativo no Dragão, estou a ser defraudado porque não tem havido futebol e eu paguei [risos], rejubilo muito com o futebol, quero que o Porto ganhe o campeonato e tenha vitórias, mas quando perde justamente tenho de me conformar.
E lisboetas a fazer vida aqui no Porto?
É comum. Há aqui muita gente de Lisboa a fazer vida tranquilamente.
Do que gosta mais em Lisboa? Um sítio, um monumento, um recanto?
Gosto especialmente daquela zona do Chiado, porque faz-me lembrar a nossa 31 de Janeiro e Santa Catarina. Os cafés e os botequins são muito semelhantes aos que havia aqui na Praça Nova. Vejo um bocadinho do Porto no Chiado, naquele ambiente de cultura e da própria alma das pessoas. Há aquela parte de eu ser mais cioso das coisas do Porto, a minha cidade. Apesar de reconhecer que Lisboa é uma cidade da luminosidade, da clareza, gosto da patine do granito do Porto, gosto das fachadas das nossas igrejas musgosas. Aqui chove muito, há muita humidade, mas eu gosto das neblinas que sobem do Douro, do ar fresco quando desce. As coisas são diferentes, como diferente é tudo.