Passeios, afetos e sem rotinas "fechadas". Segredos para a família viver no confinamento

Na semana em que as aulas recomeçaram e há milhares de pessoas confinadas, os especialistas alertam que não há fórmulas mágicas, mas há estratégias para manter a sanidade mental de pais e filhos. A começar pela empatia. E a importância dos passeios higiénicos.
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"Às tantas parecíamos loucos. Eles gritavam uns com os outros, nós com eles, e no meio do barulho o mais pequeno disse: quero ir ao parque. Foi quando nos caiu a ficha, que tínhamos de mudar alguma coisa." Rita Nunes, mãe de três crianças com 4, 9 e 13 anos de idade, recorre à experiência do primeiro confinamento para lembrar aos amigos (e a todos os pais) "os erros que agora não podemos cometer, sobretudo porque nem sequer sabemos quanto tempo vai durar. Da primeira vez tínhamos expectativas de que durasse menos e foi mais longo, mas ainda bem que foi assim. Agora já sabemos ao que vamos". Rita é bancária, o marido também - mas ele já estava em teletrabalho há meses (por questões de saúde) e mal as escolas fecharam, há três semanas, encontraram-se de novo todos em casa, nos arredores de Coimbra. O apartamento de três assoalhadas só lhes parecia grande quando o compraram, estava ela grávida da primeira filha, "que agora "vive" no quarto, como boa adolescente". Os mais novos (rapazes) vieram transformar aquele agregado numa família numerosa, aos olhos de todo o sistema. "E todos os dias é preciso arranjar estratégias para combater o stress, a ansiedade, o cansaço, o deles e o nosso", conta ao DN.

Com os parques fechados, ela e o marido esforçam-se por levar à rua "quase todos os dias" pelo menos os rapazes. "Damos uma volta à urbanização, às vezes duas, e voltamos para casa. Mesmo quando chove andamos a jogar às escondidas com a chuva." Nos últimos dias é uma espectadora habitual de um direto no Instagram - @eduqueinformado - em que a coach educacional Iolanda Pereira tem sempre convidados, com o tema da adolescência como pano de fundo. Na última semana, um dos mais participados foi o que contou com a presença de Mikaela Öven, especialista em mindfulness e parentalidade consciente. Mia (como é conhecida no meio) tem uma verdadeira legião de seguidores, que cresceu muito desde o início da pandemia.

"É óbvio que quanto mais tranquilos e serenos os pais, mais tranquilos e serenos os filhos. E é por isso que é tão importante os pais fazerem coisas que assegurem que estão o melhor possível emocionalmente e mentalmente. É muito fácil falar em "estabelecer rotinas" que acho que é uma das dicas mais frequentes por aí... por isso, eu até diria, não se preocupem demasiado com as rotinas. Se vos fizer sentido tê-las, avancem, se atrapalham mais do que ajudam (que é o que acontece em muitas famílias neste momento), então relaxem e cultivem a flexibilidade, que é uma competência que nos serve imensamente na vida e que é uma das competências que nos salva numa situação como esta", disse ao DN.

"Uma das primeiras coisas a fazer é baixar, consideravelmente as nossas expectativas em relação à nós mesmos como pais, e também em relação aos nossos filhos", acrescenta a especialista em parentalidade. E justifica porquê: "Expectativas levam mais cedo ou mais tarde ao sofrimento, e já temos sofrimento suficiente nesta fase." Sendo assim, o que recomenda a todos, pais e filhos, é muito simples: "Assegurem-se de que apanham ar, todos os dias. Existe a possibilidade de fazermos passeios higiénicos por alguma razão. Eu acho que deveriam ser obrigatórios." De resto, este é um ponto em que todos os especialistas concordam.

"Além do passeio diário, o exercício físico diário um pouco mais puxado é das coisas que mais nos podem ajudar. Uma situação como esta em que nos encontramos tende a gerar stress e ansiedade e a melhor forma que temos de nos livrar das toxinas que se acumulam no corpo é através do exercício físico", sublinha Mikaela, que aponta sugestões como aulas online de zumba, de ioga, mas também "uma corrida ou uma dança louca com música alta, em família. No mínimo 30 minutos por dia seria o ideal". Além disso, depois do exercício físico e do ar livre, "temos as práticas de mindfulness e de autocompaixão. Algum tempo a meditar ou a relaxar diariamente faz maravilhas", acredita. E o que é isso, afinal, da autocompaixão? "É uma prática que entra quando sentimos que não somos suficientes, que não somos os pais que queremos ser, quando algo corre "mal". Sermos gentis connosco é essencial para o nosso bem-estar", conclui. De origem sueca, é mãe de três filhos e está em Portugal desde 2001. Nas sessões de grupo (agora online) deixa sempre um convite a todos os pais: "Definam as vossas intenções para este confinamento. O que querem que este confinamento seja? Quem querem ser durante este período? Que relações querem criar? E todos os dias de manhã reflitam sobre qual a intenção para o dia. Cultivar a calma? Focar nas aprendizagens? Divertimo-nos? Cada pessoa e cada família sabe o que mais faz sentido para si." E tudo isto sem grandes expectativas, "pois a vida em família é imprevisível".

Também a psicóloga Rute Agulhas se tem dedicado a estudar e a aplicar na prática alguns conselhos para que pais e filhos ultrapassem o confinamento da melhor forma que conseguirem. Na próxima segunda-feira lança a segunda edição do livro Manual de Primeiros Socorros para Pais e Filhos. A primeira surgiu em abril de 2020, em pleno contexto de confinamento, "procurando ajudar todos os pais/cuidadores que estavam à beira de um ataque de nervos, sozinhos em casa com os filhos, cujos cuidados tinham de ser conciliados com o teletrabalho e as tarefas domésticas. O Manual teve uma ótima recetividade, não apenas pela natureza das atividades propostas, mas também pelo recurso ao humor como estratégia para lidar com situações de stress", conta ao DN Rute Agulhas, que neste segundo confinamento avançou para uma nova edição "revista e adaptada a uma maior diversidade de situações problemáticas que podem surgir na relação entre pais/cuidadores e filhos". E por isso entre os novos temas abordados estão ideias como promover uma parentalidade positiva/Será que conhece os seus filhos?/Aprender a escutar de forma ativa/Comunicação entre pais e filhos/Como elogiar o meu filho?/Resolver conflitos com sabedoria e ainda Criar um tempo especial. Pode ser descarregado gratuitamente nas páginas cidadedasemocoes.pt e ideiascomhistoria.pt, a partir de 15 de fevereiro.

Rute Agulhas lembra que o principal impacto do confinamento nas crianças e jovens identificado até à data pela maioria dos estudos "relaciona-se com perturbações de ansiedade - medos, fobias, perturbação de ansiedade generalizada, perturbação obsessivo-compulsiva. Em muitas situações, em comorbilidade com quadros mais depressivos (tristeza, apatia, dificuldades de concentração, falta de esperança no futuro, alterações no sono e no apetite e, em muitas crianças, os chamados "sintomas mascarados" - irritabilidade e agressividade)".

Mas tanto a qualidade como a magnitude do impacto "são determinados por fatores de vulnerabilidade prévios, como a idade e o nível de desenvolvimento, perturbações mentais preexistentes, serem economicamente desfavorecidos ou permanecer em quarentena devido a infeção ou medo de infeção". E como o impacto tende a ser maior se a criança já tiver experiências traumáticas prévias e na ausência de apoio, "o apoio social é o principal fator de proteção", sustenta.

"O processo de ajustamento das crianças e dos jovens depende de diferentes variáveis, individuais, familiares e sociais. De entre elas, realço a importância do ajustamento parental. Pais/cuidadores que consigam assegurar à criança alguma estabilidade e previsibilidade (ainda que relativa, atendendo ao que vivemos), afetos positivos, suporte e uma comunicação ajustada. As crianças devem sentir que são ouvidas e compreendidas, que têm um espaço para partilhar as suas dúvidas, receios e angústias, e que o meio envolvente as ajuda de alguma forma", afirma a psicóloga, que insiste também na possibilidade de brincarem, de conviverem (ainda que à distância) com familiares e amigos. E de cultivarem hábitos diários promotores de bem-estar físico e psicológico, no sono, alimentação e exercício físico. Afinal, a velha máxima da "mente sã em corpo são".

O programa Brincar de Rua - que nasceu em Leiria, em 2016 e já estava presente em 26 cidades do país - espera voltar aos bairros logo que possível.

Como é que pais e filhos podem ultrapassar este tempo confinados?

Não há uma receita para isso. É sempre muito subjetivo. Eu tenho uma criança de 5 anos, ao meu lado vive uma família que tem três crianças, de diferentes idades, não adianta tentar encontrar aqui uma solução mágica porque ela não vai aparecer. Mas há alguns pontos: o primeiro de todos tem que ver com a empatia. Não adianta nada constatar que os miúdos estão cansados, estão a fazer uma birra, sempre a zangarem-se entre irmãos. Pedimos para não nos interromperem no telefonema que vamos ter, mas também temos de perceber o outro lado de lá. É a empatia...

E como é que isso se consegue?

Nós, pais, temos de perceber que as rotinas deles foram completamente alteradas e agora estão com os pais o dia inteiro, e pensam: a pessoa mais importante da minha vida está ali, por que razão eu não devo usar e abusar o dia todo dela? Isso implica uma necessidade de calendarizar as coisas, planificar e organizar o que são os dias da semana, em que o pai e a mãe precisam de trabalhar, mesmo estando em casa.

Criar outras rotinas?

É a importância de compreender os tempos de que cada um precisa. A partir dos 5/6 anos é perfeitamente possível fazer isso, seja com desenhos, esquemas ou calendário.

Com a pandemia o programa Brincar de Rua ficou também confinado. O que recomendam agora a pais e crianças?

Nas redes sociais do Brincar de Rua todos os dias partilhamos pequenas dicas, e criámos até o #saidecasacomresponsabilidade. As pessoas não perceberam o quão doloroso isto pode ser para uma criança. É importante dizer às crianças que agora não é o tempo de estarmos juntos, mas isto não pode querer dizer que deixemos de nos preocupar com os nossos vizinhos, com quem está à nossa volta, com quem se dirige a nós na rua. Estamos a falar de crianças! E não de um adulto que pode mudar novamente o chip quando isto melhorar.

É fundamental levar as crianças à rua?

Temos de pensar que infância não pode rimar com inatividade, com indoor, com afastamento social. E a questão das saídas é fundamental. Em todos os estados de emergência, no decreto que emanou de cada um deles, essa questão das saídas é clara, mas infelizmente pouco noticiada.

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