O frenesim da apresentação de votos no Parlamento por tudo e por nada - congratulação, pesar, solidariedade, condenação, etc., etc., etc. - dá sinais de agravamento a cada dia que passa. O guião das votações desta quinta-feira revela nada mais nada menos do que 43 votos, espalhados por 12 páginas..Os temas tanto podem fazer todo o sentido - de pesar pelo falecimento do psicanalista Carlos Amaral Dias, por exemplo, apresentado pelo próprio presidente da Assembleia da República - como ser quase do domínio do absolutamente surpreendente: "de condenação e pesar pelo esfaqueamento de três menores em Haia" (do Chega); de "congratulação pelo fim da utilização de elefantes para passeios turísticos no Camboja" (do PAN); de "condenação pelo lançamento pela Coreia do Norte de projéteis em Dia de Ação de Graças dos EUA" (CDS-PP); de "condenação pela agressão de uma professora grávida em Marvila" e de "condenação pelo preço dos passaportes na Venezuela"..São 12 páginas num guião com, ao todo, 33 páginas - e o Chega, com 17 textos apresentados, destaca-se, de longe, em relação aos outros partidos, na produção de votos. Nos apresentados nesta quinta-feira, o segundo partido mais prolífico foi o CDS, com sete votos apresentados, seguindo-se o BE e o PAN (quatro cada)..Um deles causou o segundo desentendimento do dia entre o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e André Ventura. O deputado único do Chega apresentou um voto de congratulação pela "retirada de Cuba da lista de países amigos de Portugal", mas na hora de votar o líder do Parlamento saltou este ponto, o que levou Ventura a interpelar a mesa. Na resposta, Ferro Rodrigues confirmou que o texto não seria sujeito a votação do plenário, porque "não existe qualquer lista de países amigos de Portugal". E "se não existe lista de países amigos de Portugal, nenhum foi então retirado de lista alguma", argumentou, acrescentando que a decisão da mesa da Assembleia da República é "soberana"..Logo no início das votações - que se prolongaram por 43 minutos - Ferro Rodrigues já tinha deixado uma advertência sobre a multiplicação de votos. "Temos muitos votos sobre as mais variadas matérias. Apelei já há semanas ao consenso político no sentido da dignificação do parlamento. Solicitei contenção e qualificação", lembrou, acrescentando que vai solicitar ao grupo de trabalho que está a rever o regimento da Assembleia da República para tomar medidas - "Isto não pode nem deve continuar assim para bem da Assembleia da República"..Na quarta-feira, reuniu-se na AR a conferência dos presidentes de comissões e o presidente da Assembleia já tinha aproveitado a oportunidade para voltar a apelar ao "bom senso" na apresentação dos votos..Segundo o DN apurou, a ideia é estudar nos trabalhos (que estão em curso) de revisão do regimento da Assembleia da República a introdução de um mecanismo de triagem aos votos que diminua o afluxo destes ao plenário..Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, verbalizou ontem essa hipótese: "Em sede de revisão de regimento, temos de ter uma consciência muito grande. Todos os deputados são livres de apresentarem as iniciativas que entenderem, mas em função de cada matéria essas iniciativas devem baixar às comissões, serem aí votadas, dando-se assim uma maior dignidade ao plenário. Em plenário, os votos devem ser apresentados com consenso dos grupos parlamentares, ou pelo próprio presidente da Assembleia da República.".Também o PSD concorda com a necessidade de rever o Regimento. "O PSD está muito preocupado com esta matéria e alinha perfeitamente na revisão do regimento para moderar a situação de excesso, de superabundância de votos, que levam a um desvirtuar do normal funcionamento do parlamento", afirmou à Lusa o primeiro vice-presidente da bancada, Adão Silva, O assunto foi levantado, na manhã de ontem, na reunião da bancada parlamentar do PSD por vários deputados, incluindo o presidente e líder do grupo parlamentar Rui Rio, que considerou "despropositado" quer o número quer o conteúdo de alguns dos votos que têm sido apresentados na atual legislatura ..Atualmente, um voto vai a plenário sem passar antes por nenhuma comissão. Na verdade, para um deputado é tão fácil escrever um voto e sujeitá-lo ao escrutínio do plenário como escrever um post na sua página no Facebook..E depois há caso da multiplicação de votos por causa do mesmo assunto. Nesta quinta-feira, por exemplo, isso ocorreu com uma saudação aos trabalhadores da Autoeuropa pelo sucesso da produtividade em 2019: o Chega apresentou um voto sobre o assunto, em 2 de dezembro; depois o PCP e o Bloco fizeram o mesmo, porque também queriam associar-se ao tema sem ter de votar a favor do texto de André Ventura. Acontece por vezes aprovarem-se votos diferentes, mas sobre o mesmo assunto..O que está em estudo é assim a hipótese de obrigar esses votos a baixarem a uma comissão antes de subirem ao plenário, para uma primeira triagem. E assim não só diminuir a velocidade do processo como até aliviar o hemiciclo - fazendo votações preliminares nas comissões que eventualmente conduzam ao chumbo liminar do voto..Os registos parlamentares dizem que, desde a primeira sessão plenária da nova legislatura, em 25 de outubro último, já foram apresentados 125 votos. O PSD lidera, com 35. Seguem-se PS (32), Chega (26), CDS-PP (24), Bloco (15), PAN (11), PCP (oito), Livre (quatro), Iniciativa Liberal (três) e PEV (um)..Antes das votações desta quinta-feira, registavam-se 53 votos aprovados. Entre estes, consta um (do PAN) "de condenação pelo incumprimento de regras de proteção e bem-estar animal no transporte de animais vivos em diversos estados e pela morte de mais de 14 mil ovelhas no âmbito do transporte de animais vivos" e outro (do Chega) que louva "Edgar Morin pelos elogios públicos dirigidos a Portugal e à lusofonia".