"Tortura do sono" e "sacos na cabeça". Denúncia de praxes violentas na Escola Naval
Marinha nega haver "qualquer indício de práticas contrárias" aos valores e regras da Escola Naval após ter realizado averiguação interna. Como medida preventiva, restringiu os contactos entre os cadetes do 1.º ano e os restantes.
A Marinha recebeu há dias queixas de pais, sob anonimato, a denunciar alegadas praxes violentas sobre alunos do 1.º ano da Escola Naval (EN). Mas, das averiguações feitas, "não se concluiu haver qualquer indício de práticas contrárias" às regras estabelecidas, assegura ao DN o porta-voz do ramo, comandante Pereira da Fonseca.
Andarem dezenas de minutos com "sacos amarrados na cabeça", estarem "em tanques de água noites a fio", serem deixados "nus na parada" e objeto de "tortura do sono", ou colocarem-nos sob duches de água fria a meio da noite, são algumas das praxes a que os cadetes do primeiro ano da EN (que forma os oficiais da Marinha) terão sido sujeitos desde outubro, segundo relata ao DN a mãe de um dos cadetes, que se identificou perante o nosso jornal mas requereu anonimato para evitar represálias sobre o filho.
"Não quero chorar a morte do meu filho, como as mães dos [recrutas] comandos" falecidos no início do curso em setembro de 2016, "não quero passar pelo que passaram os pais" de seis estudantes que, em 2013, morreram durante as praxes realizadas na praia do Meco, declara esta mãe.
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Os exemplos que aponta são similares aos do relato publicado por um pai - sob o nome de Mário Antunes - nas redes sociais no passado domingo, após mais um fim de semana em que o filho esteve em casa.

© Gustavo Bom/Global Imagens
Na referida carta publicada nas redes sociais, entre outros exemplos relatados pelo filho, Mário Antunes conta que "os alunos são privados do sono, dormindo uma média de seis horas por semana", "adormecem nos testes e [...] sendo raro os que conseguem tirar positivas".
"Como é que [o meu filho] pode estar concentrado nas aulas, como pode tirar boas notas?", questiona a mãe, acrescentando: "Não sei a quem é que devo dirigir-me neste momento. Somos pessoas humildes, lutamos e incentivamos os filhos a serem pessoas bem formadas, a respeitar os outros... mas o meu filho é desrespeitado e humilhado por alunos mais velhos" durante as praxes - algo que a Marinha assegura não existir.
A EN é a instituição de ensino superior militar que forma os oficiais da Marinha, abrangendo três vertentes: como militar, marinheiro e no plano técnico, assimilando os valores dessa escola: "Disciplina, lealdade, honra, integridade e coragem."
Averiguações internas
"Não são toleradas práticas de praxe" na EN, garante o comandante Pereira da Fonseca, frisando que os 63 cadetes do primeiro ano - dos quais 13 são raparigas - "são enquadrados por um conjunto selecionado de alunos do 4.º ano, que partilham o alojamento e os apoiam na integração na vida da EN e no seu sucesso escolar".
A mãe contrapõe: "O aluno mais velho devia integrar e desintegra. Não cabe na cabeça de ninguém que no século XXI ainda haja tortura, noites de praxes quando tanto se tem alertado contra os maus formadores." Acresce que "não criamos filhos para estarem debaixo das saias da mãe, como lhes dizem, mas para estarem conscientes do dia de amanhã. Eduquei o meu filho não para maltratar mas para respeitar".
A nossa fonte diz ainda que o filho "tirou fotos" para documentar algumas das situações mas que elas foram eliminadas porque os telemóveis dos cadetes "são vistos" com frequência e "o direito de privacidade não existe".
Questionado sobre o facto de a averiguação ter sido feita pela própria EN, Pereira da Fonseca sublinha que isso resulta dos mecanismos de controlo existentes e onde se insere o corpo de oficiais, um gabinete de psicologia e "todo o corpo docente, civil e militar".
O porta-voz da Marinha adianta que, após a receção dos protestos, "de imediato foi iniciado um procedimento interno para averiguar sobre a veracidade dessas práticas. Das averiguações realizadas não se concluiu qualquer indício de práticas contrárias aos valores, aos regulamentos, à disciplina, à moral e à ética que rege a Escola Naval".
Apesar disso, "o comandante da EN, de forma preventiva, deu ainda orientações para restringir o contacto entre os alunos do 1.º ano e dos restantes anos ao estritamente necessário no quadro das atividades académicas ou desportivas normais", explica ainda o porta-voz da Marinha.
Diversos oficiais da Marinha, também sob anonimato por não estarem autorizados a falar, lembram ao DN que a componente psicológica é talvez a mais dura daquelas a que são sujeitos os cadetes ao entrarem para a EN e que nem todos têm a necessária resistência para lidar com esses desafios.
Por outro lado, algumas destas fontes - confirmando ter havido anos em que as praxes foram literalmente banidas da EN - dizem que alguns dos alunos vão para a Escola Naval por pressão dos pais e depois são tentados a empolar algumas situações como justificação para sair da instituição.
Exemplo disso, alegam as fontes, é a alegação feita por Mário Antunes na carta anónima publicada nas redes sociais: o cadete que morreu num acidente de viação em 2007, alegadamente por falta de sono depois de um exercício na EN, não era o condutor do automóvel.
Nenhum dos 63 alunos que entraram neste ano na EN desistiu ou pediu para o fazer, informa Pereira da Fonseca. Por outro lado, "tem-se verificado uma evolução positiva nas desistências no Corpo de Alunos da EN" ao longo dos últimos anos: 15 em 2010; 20 em 2011; dez no ano seguinte; um em 2013; oito em 2014 e 2015; quatro em 2016; dois em 2017 e um em 2018 - este por opção, pois transferiu-se para a Academia Militar do Exército.
Quanto às "ocorrências médicas relevantes", o porta-voz da Marinha só confirma terem existido "dois surtos de gastroenterite que afetaram os alunos de todos os anos": no primeiro foram 12 (no passado dia 9 de outubro), no segundo 20 (a 16 de novembro).