A crise do mundo único
Um dos valores implícitos na utopia da ONU, mas durante pouco tempo considerado exequível, foi o do "mundo único", isto é, no mais evidente, sem guerras, e uma ordem internacional obediente à justiça natural. Na última década, textos com a meditação de devedores preocuparam-se, com fundamento, com o que chamaram "o fim do mundo único", incluindo nas causas a evidência das chamadas "potências emergentes" (Índia, Brasil, África do Sul, Turquia), mas com a projeção maior na competição entre a América do Norte, a Europa, a China, a Rússia, algumas com o reconhecimento aristocrático de possuírem o veto do Conselho de Segurança da ONU. As circunstâncias crescentes do facto das emergências, antes do fim da década, deu relevo ao estudo, inquieto, sobre a evidência de ser contrapartida daquela política o reconhecimento do fim do mundo único, sendo abordadas questões económicas e sociais, crescendo a verificação de que a erradicação da fome não passava de um sonho piedoso, que na área da saúde a regra era a de que os pobres morrem mais cedo, as emigrações que transformaram o Mediterrâneo num cemitério fizeram que a islamofobia se desenvolvesse nos Estados procurados pelas migrações, as assimilações históricas unificadoras das nações não foram recordadas, os nacionalismos inspiraram partidos conservadores, mesmo reacionários. Este mundo de ruturas, com terrorismo e violências de surpreendentes organizações, o que exige defesa contra possível ameaça em dificuldade com impossível definição, causando por exemplo a chamada "inflação das legislações entre terroristas na África". Para evidenciar a gravidade desta referência, acrescente-se que a África do Sul, o país que a santidade de Mandela chamou de "povo arco-íris", tem hoje um mal que diminui a autoridade, menor sentido de obediência aos princípios democráticos que afetam a credibilidade presidencial. Esta perda de credibilidade, com linguagens frequentemente diferentes, leva-nos ao fim da década com o reconhecimento frequente de estarmos num mundo sem bússola. Para simplificar o sentido do conceito, nos aspetos mais pesados, a Assembleia Geral da ONU viu um claro afastamento do multilateralismo afirmado pelo presidente dos EUA, os mares são olhados e estudados como "perigosos", e neste Ocidente, que reclamou ser a "luz do mundo", a Europa sofre o enfraquecimento de confiança entre eleitorados que se afastam do dever de votar, nos EUA que perderam a confiança atlântica, e a América Latina em dissolução.
Sendo de um interesse especial para Portugal, a primeira questão é sublinhar que a doutrina Monroe foi secundarizada por Trump, firme contra as migrações que tentam encontrar no território americano o futuro que perderam no seu, tem a benévola oposição ao governo na Venezuela de Nicolás Maduro, talvez consagrando uma rara atitude aceitável, que inclui o seu interesse de ser financiador em todas as economias da América Latina. É de admitir que tenha realmente presente a doutrina de Monroe, o qual recusou autorizar intervenção de potências europeias nos antigos territórios que lhes pertenceram. O caso do Brasil será sempre para Portugal um valor intocável, sendo o que mais interessa na situação global da CPLP. Os factos apontam para que, sem qualquer valor da antiga doutrina Monroe, a democracia está abalada, a perda de autoridade da religião católica traduz-se no ganho de espaço das igrejas evangélicas, incluindo os órgãos de soberania, parecendo que enfraquecem as estruturas do Estado, o que enfraquece o domínio dos órgãos sociais, culturais e até políticos, e progressivamente estende-se por toda a América Latina. O antigo domínio católico, objeto de críticas, tende para enfrentar com estas a intervenção do Papa Francisco, e favorecer algum regresso da influência dos EUA, onde os evangélicos também cresceram. Infelizmente, o mundo de ruturas e sem bússola para manter um multilateralismo útil não reconheceu ainda que se a unidade regressou foi no plano da epidemia contra todos os vivos, e que o pluralismo das ruturas políticas está a facilitar a urgência da unidade dos povos. Ao contrário, as fraturas multiplicam-se, todos os povos sofrem a epidemia, mas não podem ignorar-se as tentativas de imaginar um poder que se manterá aristocraticamente lúcido a impor a conduta alheia. Depois de conseguir vencer a epidemia que não distingue ambições soberanas, os povos feridos vão ter uma visão diferente da unidade dos vivos. A exploração aristocrática dos Estados não será consentida.