Um português com Macau no sangue e um desejo impossível de fazer um filme de animação

Brunch com André Carrilho, ilustrador.
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Consegue um ilustrador, mesmo um dos melhores do mundo, fazer a sua própria caricatura? André Carrilho ri-se, ignora os elogios como se não os ouvisse - ainda que o deixem feliz e envergonhado em igual proporção. E assume que sente o que aqueles que são por ele desenhados provavelmente sentem quando veem a interpretação das sua feições pelo traço de Carrilho. "Já fiz a minha há muitos anos e quando me vejo retratado por outros acho sempre que não sou nada assim..." Garanto-lhe que a maioria dos que se veem nestas páginas lhe elogiam o talento e o resultado. "Sério?! Boa! Isso é uma surpresa. Porque quando nós nos olhamos ao espelho vemos muito mais do que ali está, vemos a nossa história, a nossa vida, as fotografias de família... É um exercício de memória. Eu era muito magro quando era mais novo, tinha uns olhos enormes, mas para quem me vê agora pela primeira vez não sou nada disso. Fizeram-me uma caricatura com imensas bochechas e não me reconheci nada nela, mas depois fui ver-me ao espelho e percebi que era verdade, que agora tinha bochechas."

Para este desafio, que aceitou sem hesitar, não usou espelhos - a imagem invertida mente, não mostra as assimetrias como elas são - mas uma fotografia, como faz quando traça as feições dos outros. E, naturalmente, a memória dos eus que foi deixando para trás nos 48 anos de uma vida que atravessou três continentes, pôs os seus trabalhos nas melhores publicações do mundo (incluindo The New York Times, The New Yorker, Vanity Fair, New York Magazine, Independent on Sunday, NZZ am Sonntag, Harper"s Magazine, New Statesman) e somou mais de três dezenas de prémios. Destes, destaca-se o Gold Award pela Society for News Design, pelo seu portfólio de ilustração, em 2002, e o Grande Prémio no World Press Cartoon, em 2015, com um desenho sobre a epidemia de ébola que ainda lhe valeu um convite para conceber o mural de caricaturas que decorou a festa dos Óscares da Vanity Fair.

Não que ele os enumere. "A minha montra principal hoje é o Diário de Notícias, é onde o meu trabalho é mais premiado e é a minha casa principal, a que me permite entrar em competições internacionais e chegar a mais sítios." Reconhece valor aos prémios, que potenciam a montra do que faz e lhe dão credibilidade, e não esconde o orgulho por ser reconhecido entre pares, mas isso não o faz diferente do miúdo que se mudou para os Olivais aos 16 anos, filho de mãe solteira, arquiteta que trabalhava no IGAPHE e a quem convenceu a pedir transferência para Macau porque o país o fascinava. "Tinha aquele imaginário do Corto Maltese e do Tintim, das viagens a destinos exóticos", conta.

Acabou por ficar só um ano, mas regressaria em todas as férias e foi lá que se estreou no traço, começando logo a trabalhar, enquanto fazia o 12.º à noite. Aos 17, mudava-se de armas e bagagens a solo para Lisboa, para entrar em Belas Artes. Enviava cartas à mãe, com fotografias das suas experiências a cozinhar ou a lavar roupa, mas rapidamente perceberia que aquela não era a vida que queria. "Tinha um tio que era caricaturista, por isso desde cedo percebi que queria desenhar, mas não sabia bem que profissão era aquela." Não queria ser pintor, mas não desanimou nem se deixou convencer por todos os que lhe diziam que viver de desenhar era uma impossibilidade. Recortava cartoons dos jornais do António e do Cid, tiras do Peanuts do Diário de Lisboa, espalhava-as pelas paredes ou guardava-as em dossiers. Corto Maltese era o seu preferido e corria as livrarias todas de Lisboa à procura das edições - "mas consegui, com persistência, completar a coleção!" Fala de Carl Banks, inventor do Tio Patinhas, como um amigo que lhe mostrou as melhores histórias, as de viagens que o encantavam.

É na Padaria Portuguesa do mesmo bairro em que cresceu, a 100 metros da casa onde vive com a mulher, Elga, e os dois filhos, de 4 e 6 anos, que nos sentamos à mesa depois de breve mas calorosa conversa com um amigo de outros tempos, filho do Júlio Pinto, diretor da publicação satírica em que se estreou a desenhar em Portugal, já certo do que queria. Belas Artes foi a escolha óbvia para cumprir o desígnio, a realidade foi um balde de água fria. "O ensino era tipo treino do Karaté Kid, wax on, wax off: Tínhamos de fazer os desenhos sempre de certa maneira, depois de outra... Passámos um ano a desenhar uma cadeira de praia de diversas maneiras! Era a maneira ideal de tirarem a alguém o gosto do desenho", recorda. A trabalhar no Fiel Inimigo - onde passava noites inteiras a desenhar e redesenhar ao sabor dos temas escolhidos à tarde e reinventados depois do jantar - e a gastar "uma fortuna em táxis todas as madrugadas", optou por trocar os Olivais por um quarto no Bairro Alto. E foi o golpe final no curso.

Nesse verão, foi a Macau "com uma apresentação fundamentada de porque não precisava de estar na faculdade. O argumento era simples: na minha área, és contratado com base num portefólio e ninguém pergunta se tens um curso. Se eu já trabalhava e não queria ser professor... não precisava de continuar." Ri-se. A mãe aceitou, mas André ainda guarda esse projeto inacabado como uma pedrinha na alma, ainda que saiba que não lhe teria acrescentado nada.

Sorte e trabalho, diz ele, fazem uma carreira. Não está a simplificar. O que entende por sorte é a capacidade de identificar oportunidades que surgem e não ter medo de dar o salto. E trabalho passa não só pelo esforço, empenho e rigor mas sobretudo pela capacidade de persistir, de se manter na moda por mais de 30 anos sem ser uma moda, de criar uma assinatura tão própria que seja uma voz reconhecida e alimentá-la com o cuidado necessário à longevidade de uma carreira.

Em 2001, quando Jorge Silva, que conheceu n"O Independente, o levou a reboque para o Mil Folhas, do Público, traçou-lhe o disparo de canhão, mas foi o próprio André Carrilho que marcou o trajeto que queria seguir, temperando a velocidade para uma corrida de fundo, não uma maratona. Sem ele saber, as suas caricaturas sobre jazz foram submetidas a concurso nos EUA e venceram um de três ouros do mundo. "Quando o Jorge Silva me disse, até chorei, foi das poucas vezes que chorei." Agora ri-se, a contar como isso lhe marcou a vida. Sem dinheiro para ir aos EUA receber o prémio, tentou mostrar o seu portefólio ao diretor de arte do El Mundo, que fazia parte do júri. Foi até Madrid. "Correu pessimamente. Mas pôs-me a pensar que devia ter um portefólio que fosse um objeto de design e fi-lo." Entregou-o a Jorge Silva, que ia receber o prémio pelo jornal, com o pedido de que o fizesse chegar onde achasse que faria diferença e este deixou-o numa pilha onde todos descarregavam trabalhos que queriam submeter: o stand do The New York Times. Três meses depois, era contactado pelo enorme Steven Heller, "grande fã de caricatura, que gostara do meu trabalho e o levou para o jornal e a New York Times Book Review". Essa montra de gigante nos EUA, a par de outra semelhante no Reino Unido - também no júri estava a diretora de arte do Independent on Sunday que o contactou para fazer capas durante 13 anos -, catapultou o talento de Carrilho para o mundo inteiro. E quando confrontou Heller com uma certa necessidade de estudar nos EUA, na sua escola de arte, este confirmou aquilo que o próprio André concluíra sozinho antes dos 20 anos. "Disse-me: "As pessoas vão para a escola para conseguirem trabalhar para mim. Tu já trabalhas para mim, vais fazer o quê para a escola?""

Serviu-lhe de lição bem aprendida. Isso e que tinha era de trabalhar com afinco que seria essa sempre a sua melhor montra. "Sempre que procurei trabalho correu mal. Percebi que devia antes fidelizar clientes. E estes foram-me levando entre publicações e dando visibilidade ao que eu fazia." E o que fazia, o que faz, não é pouco, entre as encomendas dos EUA à China, os trabalhos regulares no Diário de Notícias, os projetos pro bono em que se mete se a causa lhe é cara, como o que fez para a SOS Racismo, os pedidos que nem lhe apetecem mas acha que deve cumprir, os que lhe dão imenso gozo e os que pagam melhor e às vezes - cada vez mais raras - faz sentido aceitar. "Dinheiro é importante, claro, até para a paz de espírito, mas só até certo ponto. Depois começa a enredar-nos numa série de obrigações... eu sempre gostei de ser independente e ter paz de espírito, por isso o dinheiro não me move além desse conforto."

É assim que faz 30 anos de carreira e continua a inventar. Agora, a estrear-se nos livros para crianças. "Escrevi para a minha filha A Menina com os Olhos Ocupados; é um livro de artista também e isso permite-lhe explorar, escrever, contar histórias mais sintéticas, mais próximas do cartoon, e para uma audiência muito atenta, que são os miúdos." Diz que o trabalho foi semelhante ao cartoon editorial, como o que faz no DN: identifica uma questão e dá a sua visão daquilo - no caso, do uso dos telemóveis pelos miúdos e de como os comportamentos dos pais são o exemplo que seguem. Isso também o fez rever a sua relação com os ecrãs. Aliás, assume, ser pai mudou-o - a começar pelos horários a que chega a criatividade. "Os miúdos acordam às 8.00, por isso tive de me disciplinar." Ri-se.

E fica todo ele em mel quando lhe pergunto como se fez marido e pai - nada que ver com fé mas com um momento da vida em que coincidiu com Elga e um desejo antigo "não de ser pai, mas de ter uma família".

Conta-me que chegara ao fim dos 30 quando se começou a cansar da vida boémia e a experimentar fazer o que lhe apetecia mesmo, ainda que ninguém o acompanhasse. Foi assim que se viu com uma única outra pessoa na audiência de um concerto de uma banda que já não existe: os Lobo Miau. Era Elga, que conhecia de vista das Belas Artes e com quem encetava agora conversa. Num dos jantares que a professora de Multimédia costumava organizar com grupos de pessoas que conhecia mal mas pareciam interessantes, foram-se aproximando e acabaram juntos e pais. "Sendo eu filho de mãe solteira e sem que isso me tivesse afetado ou considere que há melhores formas familiares, a verdade é que sempre quis ter uma família tradicional. Ninguém nos prepara para ser pais, mas se me dessem a escolher entre eles e nunca mais fazer um traço na vida, nem hesitava. Eles são tudo."

Antes de nos despedirmos, pergunto-lhe o que gostava ainda de fazer, como gostava de se reinventar. Confessa-me que tem um "desejo impossível": "Fazer uma longa metragem de animação." Impossível porque demora demais, obriga a trabalho demais, e aqui é dez vezes mais difícil.

Eu aposto de caras que ainda vamos ver o Carrilho no cinema.

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