Cabaret: 50 anos de puro espectáculo

Entre a tradição do género musical e o sentido dramático de um fresco histórico, <em>Cabaret</em> foi um dos fenómenos do cinema de 1972, consagrando dois talentos invulgares: a atriz Liza Minnelli e o realizador Bob Fosse.
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Quem foi o grande vencedor dos Óscares referentes à produção de 1972? A estatística não engana: Cabaret arrebatou nada mais nada menos que oito estatuetas douradas. O segundo filme mais premiado, O Padrinho, apenas conseguiu três. Com um pormenor que está longe de ser secundário: o Óscar de melhor filme do ano foi para... O Padrinho.

Eis uma daquelas atribulações dos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que tanto pode servir para questionar os respetivos critérios como para enaltecer a sua diversidade. Com uma "contradição" reveladora: era a 15ª vez (num total de 26) que o Óscar de melhor realização não consagrava o realizador daquele que foi eleito como melhor filme. Assim, Francis Ford Coppola não foi premiado pela realização de O Padrinho (tendo partilhado o Óscar de melhor argumento adaptado com Mario Puzo); essa distinção pertenceu a Bob Fosse, precisamente por Cabaret.

Passados 50 anos - Cabaret estreou nos EUA no dia 13 de fevereiro de 1972 (tendo chegado a Portugal em outubro do mesmo ano) -, este é um daqueles factos que dá que pensar. Porquê? Afinal de contas, a figura de Liza Minnelli, interpretando Sally Bowles, tornou-se um ícone universal da pureza formal do próprio espetáculo; ao mesmo tempo, o género musical em que Cabaret se enraizava já não fazia parte da produção regular dos grandes estúdios de Hollywood.

É verdade que os anos anteriores tinham sido pontuados por musicais vencedores dos Óscares: West Side Story (1961), My Fair Lady (1964), Música no Coração (1965). Mas não é menos verdade que a década de 1970 se anunciava bem diferente, marcada pelas experiências da talentosa geração dos "movie brats" (Coppola era um deles, a par de Martin Scorsese e Brian De Palma).

Dir-se-ia que, ao assinar Cabaret, Bob Fosse, na altura com 45 anos (faleceu em 1987), se afirmava como "salvador" de um género cada vez mais ausente das opções da grande produção. Além do mais, havia nele a vontade de superar o falhanço comercial de Sweet Charity - A Rapariga que Queria Ser Amada (1969), a sua estreia na realização cinematográfica, com Shirley MacLaine no papel central. Cabaret tinha qualquer coisa de filme de "resistência": mostrava que era possível preservar a sofisticação dos padrões clássicos, ao mesmo tempo arriscando para lá dos seus modelos temáticos.

Toda essa conjuntura aconselha a que relativizemos o próprio rótulo de musical. Isto porque Cabaret é também (é mesmo sobretudo) um invulgar fresco histórico, em tudo e por tudo devedor das singularidades da novela semiautobiográfica de Christopher Isherwood que lhe serve de enquadramento: Goodbye to Berlin, original de 1939 que evoca o ambiente de festa e decadência da República de Weimar no dealbar da década de 1930, com a ameaça nazi no horizonte (está traduzido em português, numa edição da Quetzal, como Adeus a Berlim; o filme foi lançado entre nós com o subtítulo Adeus Berlim).

Em todo o caso, Isherwood não foi a inspiração direta para o argumento de Cabaret, assinado pela brilhante Jay Presson Allen (em 1964, escrevera Marnie, para Alfred Hitchcock). Mais exatamente, o filme elege como ponto de partida o musical, homónimo, escrito por Joe Masteroff, com música de John Kander e letras Fred Ebb, estreado na Broadway em 1966; esse primeiro Cabaret baseava-se na peça I Am a Camera, de John Van Druten, por sua vez inspirada na memória de Isherwood.

Todo este ziguezague de referências ajudará, em parte, a explicar o facto de Isherwood (falecido em 1986, contava 81 anos) nunca ter sido grande admirador do filme, mostrando-se especialmente desagradado com o tratamento da homossexualidade de Brian Roberts, amigo íntimo de Sally Bowles (interpretado por Michael York) e, em paralelo com a novela, "alter ego" do escritor. Até porque o facto de Isherwood ter dado o seu próprio nome ao narrador de Goodbye to Berlin não decorreu da intenção de fazer um autorretrato; como ele próprio escreveu na apresentação da primeira edição, o seu Isherwood/personagem não passa de um estratagema "prático" que funciona como um "boneco de ventríloquo".

No limite, podemos mesmo dizer que Cabaret nem sequer obedece às matrizes mais tradicionais do musical, já que os números (musicais, precisamente) não surgem como "intervalos" ou "derivações" da narrativa. No Kit Kat Klub, o cabaret onde atua Sally Bowles, esses números emergem como momentos emblemáticos da existência de todo aquele mundo feito de artifícios, máscaras e um medo visceral que, momento a momento, se vai insinuando no quotidiano.

Daí a intensidade das personagens de Sally Bowles e do apresentador/cantor/bailarino do cabaret: ela, frágil e forte, aprendendo o modo como a crueldade do mundo vai decompondo todos os sonhos românticos; ele, observando com crescente desencanto o fim das ilusões da República de Weimar, mas garantindo sempre que o espetáculo não esmorece. Como ambos cantam na canção Money Money, é o dinheiro que "faz girar o mundo".

No imaginário cinéfilo, Liza Minnelli (n. 1946) e Joel Grey (n. 1932) são os rostos emblemáticos de Cabaret, aliás ambos premiados nos Óscares - ela na categoria de melhor atriz, ele como melhor ator secundário. Existem como descendentes, num certo sentido "mensageiros", de uma lógica clássica em que a vida e o espetáculo se enredam num jogo de verdades e mentiras que, em última instância, vai decidir o destino de cada ser humano. Ou como canta Liza na canção-título: "A vida é um cabaret". Mais exatamente: "Para quê permitir / Que algum profeta da desgraça / Venha apagar todos os sorrisos. / A vida é um cabaret, velho amigo, / Vem visitar o cabaret!"

Situado na Alemanha em momento de consolidação do poder nazi, assim refletindo um momento dramático na história do continente europeu, Cabaret acabaria por ser também um filme de produção predominantemente europeia. E não só porque grande parte da rodagem decorreu mesmo em Berlim; também porque as cenas de estúdio foram filmadas nos Bavaria Studios de Munique, integrando muitos técnicos europeus. Neste domínio, o nome mais notável entre os colaboradores de Bob Fosse terá sido Geoffrey Unsworth, diretor de fotografia que, quatro anos antes, tinha sido responsável pelas imagens de 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick - Cabaret deu-lhe aquilo que não obtivera com a obra-prima de Kubrick: um Óscar.

CitaçãocitacaoNo balanço comercial de 1972, Cabaret ocupou uma posição de grande evidência, surgindo em sexto lugar no "Top 10" dos títulos mais rentáveis do ano

Quanto a Bob Fosse, já consagrado como encenador da Broadway (além de bailarino e coreógrafo), Cabaret permitiu-lhe protagonizar uma proeza que, até hoje, continua por repetir: no mesmo ano, foi distinguido nos Óscares, nos prémios Tony de teatro e nos Emmys da televisão. A saber: um Óscar por Cabaret, dois Tony pelo musical Pippin (direção e coreografia) e três Emmys pelo registo de um concerto de Liza Minnelli, Liza with a Z (musical, direção de musical e coreografia).

No balanço comercial de 1972, Cabaret ocupou uma posição de grande evidência, surgindo em sexto lugar no "Top 10" dos títulos mais rentáveis do ano (liderado por O Padrinho). E escusado será dizer que eram tempos bem diferentes, marcados por uma diversidade criativa em que, atualmente, os grandes estúdios nem sempre querem investir. Mesmo ficando por esse top, encontramos ainda, por exemplo: Que se Passa, Doutor?, irresistível comédia de Peter Bogdanovich; um drama tão radical como Fim de Semana Alucinante, de John Boorman; e ainda As Brancas Montanhas da Morte, de Sydney Pollack, um dos mais belos exemplos de um certo "revisionismo" crítico de outro género muito popular, o "western". Isto sem esquecer que também em 1972 Elia Kazan assinava Os Visitantes, pequena produção independente e um dos primeiros títulos a refletir os traumas da guerra do Vietname - foi o filme de estreia do ator James Woods.

Paradoxalmente ou não, Cabaret consagrou Liza Minnelli como uma verdadeira "star", mas sem que a sua aura se viesse a traduzir numa filmografia muito extensa. Aliás, algumas das suas outras grandes interpretações aconteceram antes de Cabaret, com destaque para Charlie Bubbles/Um Homem e a Sua História (1968), o único filme que Albert Finney, além de interpretar, também realizou, The Sterile Cukoo (1969), belo exemplo do olhar clínico de Alan J. Pakula sobre as emoções humanas, e Diz-me que me Amas, Junie Moon (1970), invulgar exercício melodramático com assinatura de Otto Preminger.

É certo que, em 1977, a iríamos reencontrar noutro admirável musical - New York, New York, contracenando com Robert De Niro, sob a direção de Martin Scorsese -, mas o essencial da sua carreira foi passando pelos palcos, pela televisão e pelos discos. Aliás, logo em 1973 lançaria The Singer, um dos seus álbuns de maior sucesso.

Filha de Judy Garland e Vincente Minnelli, ela triunfou, afinal, de forma ambígua, como símbolo de um conceito de "entertainment" que estava a ser ultrapassado por novas matrizes de produção e espetáculo. Nesta perspetiva, a sua Sally Bowles é também uma das derradeiras personagens "clássicas" nascidas num contexto de aceleradas transformações de Hollywood. Um ano depois de Cabaret, já não havia musicais na lista dos grandes sucessos e o maior fenómeno de popularidade dava pelo nome de O Exorcista.

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