Ovelha Choné numa galáxia muito, muito distante
A primeira vez que vimos a ovelha Choné foi na oscarizada curta-metragem Wallace & Gromit: O Fio da Navalha (1995), um verdadeiro enredo de lãs tricotado por um cão maldoso que tinha um rebanho cativo. Sem o saber, Nick Park, o realizador, acabava de criar a futura grande atração dos estúdios britânicos Aardman. Ela era pequenina, dada a poucos balidos, mas comia que se fartava - sobretudo queijo, a grande tara do senhor Wallace - e, no final, ainda salvava o dia.
Até aí considerados como uma espécie de mascotes da Aardman Animations, com refinado humor inglês, o inventor Wallace e o seu cão Gromit viram então a popularidade de ambos ser ultrapassada por aquela criatura muda feita de lã e plasticina, que deu origem a uma série televisiva de sucesso internacional - Shaun the Sheep - e, em 2015, à correspondente longa-metragem para cinema. Se nesse primeiro filme a aventura passava "apenas" pela descoberta da grande cidade, longe da pacatez campestre, no novo A Ovelha Choné - O Filme: A Quinta Contra-Ataca o escopo foi francamente aumentado, tendo a galáxia como limite... É que, desta vez, a diversão não está só a cargo da protagonista. A ela se junta a adorável Lu-La, uma criança alienígena cuja aparência se traduz numa mistura de cão com molusco, entre tons suaves de azul e cor-de-rosa (versão pueril do E.T. de Spielberg?).
Fiel ao espírito travesso que caracteriza o universo da quinta Mossy Bottom, com o cão pastor Bitzer sempre a tentar pôr ordem no rebanho de Choné - esse que passa o tempo a descobrir novas formas de recreio -, o filme começa com o cruzamento de dois cenários. De um lado, a nave que aterra perto de uma pizaria, causando terror a pelo menos um habitante, do outro, o ambiente de traquinice da quinta, com Choné a conseguir chegar ao computador do agricultor para encomendar uma piza... Et voilá: à boleia da entrega ao domicílio surge a pequena Lu-La, que logo trava amizade com a ovelha, na esperança de que ela e os seus amigos felpudos lhe possam ajudar a voltar para casa.
O que sucede então? Uma buliçosa aventura, entre a propriedade de Mossy Bottom e o espaço, passando por um supermercado (que contém uma das mais hilariantes cenas do filme, envolvendo uma grande quantidade de doces ingeridos pelo pequeno extraterrestre). Entretanto, a ovnimania vai crescendo na cidade e, ao aperceber-se disso, o dono da quinta decide montar um parque temático a preceito - Farmageddon -, com receitas destinadas à aquisição de um novo trator. Por sua vez, os serviços secretos, liderados por uma agente pouco simpática, vão fazendo buscas falhadas.
2001: Odisseia no Espaço, Sinais, Arrival - O Primeiro Encontro, Ficheiros Secretos, Encontros Imediatos do Terceiro Grau, O Extraterrestre e por aí fora (até O Tubarão, que não faz parte do departamento de ficção científica!), muitas são as piscadelas de olho de homenagem que têm lugar ao longo desta brilhante sequela de A Ovelha Choné, assinada por Will Becher e Richard Phelan. A Aardman, estúdio de criações tão ilustres como A Fuga das Galinhas, continua a provar o valor da comédia inteligente e inventiva, com uma imaginação fervilhante e aquilo que a torna distinta: a técnica artesanal stop-motion na sua pura expressão inovadora, temperada com um gosto clássico.
É isso que torna a experiência uma delícia familiar, com a abundância de referências calorosas e divertidas, a começar pela própria Choné, autêntica estrela do cinema mudo que reúne os atributos de um Buster Keaton e Charlie Chaplin, e a acabar nessa belíssima memória spielberguiana do E.T. Em hora e meia de deleite visual há ainda tempo, imagine-se, para dar vida à expressão verbal do touro numa loja de porcelanas ou reproduzir a famosa fotografia dos operários nova-iorquinos a almoçarem na viga de um arranha-céus (Lunch Atop a Skyscraper). É a chamada piada infinita, numa épica sucessão de gags irresistíveis.
Lá pelo meio, um ligeiro travo a lição cívica também passa imaculado. E tanto podemos estar a falar de caixotes de reciclagem (nunca mais vamos olhar para o contentor amarelo da mesma maneira...) como do recado humanista, certeiro em tempos de Brexit, de que, apesar de vir de outro planeta, Lu-La é feita da mesma "matéria" que todos os que a rodeiam. Ou, por outras palavras, o encanto espirituoso da plasticina Aardman está de volta e garante os minutos mais bem passados, para miúdos e graúdos, com a agulha das ideias e emoções no sítio certo. Uma verdadeira odisseia de criatividade, que acena respeitosamente a Kubrick - bem a propósito, o americano que trocou Nova Iorque por Inglaterra.
**** Muito Bom