Migrantes desembarcam no Algarve. "Portugal vai acolher os oito jovens", diz SEF
Os oito jovens capturados na praia de Monte Gordo pernoitaram em Vila Real de Santo António e são esta quinta-feira transferidos para o Centro Português do Refugiado, em Lisboa, comunicou esta quinta-feira o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Como a diretora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Cristina Gatões, explicara na quarta-feira à noite, os jovens foram, após o jantar, elucidados sobre as alternativas legais existentes, incluindo a de requererem proteção internacional.
Foi essa a opção que os oito fizeram, certifica o comunicado do SEF: "Ao abrigo do quadro de proteção internacional aplicado noutros casos de estrangeiros resgatados no Mediterrâneo, Portugal vai acolher os oito jovens que, esta quarta-feira, desembarcaram numa praia do Algarve." A nota acrescenta que os jovens "requereram esta madrugada esse estatuto de proteção" e que o registo do pedido e a respetiva documentação garante ao grupo "assistência médica, educação, alojamento e meios de subsistência."
É a segunda vez que imigrantes ilegais alcançam o Algarve. Em 2007, também em dezembro, foram 23 marroquinos que teriam Espanha como destino. Os oito jovens capturados na praia de Monte Gordo poderão assim ter mais sorte, como a diretora do SEF dera já a entender nas suas declarações ao jornalistas, ao invocar o "compromisso de acolhimento de cidadãos estrangeiros requerentes de proteção que chegam à Europa" e ao apresentar como "cenário possível ficarem em Portugal."
Isto porque, argumentou, "esta situação é semelhante a outras situações de cidadãos estrangeiros requerentes de proteção internacional que chegam à Europa e que estamos a acolher, nomeadamente provenientes de Malta e de Itália, de ações de resgate no Mediterrâneo, e é nesse quadro que estamos a trabalhar."
Estas declarações de Cristina Gatões feitas na noite desta quarta-feira aos media no Centro de Cooperação Policial e Aduaneira de Castro Marim, parecem de molde a dar esperança aos oito jovens que no mesmo dia de manhã chegaram ao Algarve num pequeno barco, e que dizem ser marroquinos, de que o seu destino não seja o mesmo do grupo de 23 que em 2007 chegou ao Algarve e acabaria rapidamente repatriado, apesar dos protestos de ativistas dos direitos humanos.
A diferença em relação a 2007, disse a responsável do SEF aos jornalistas no início da noite, é que "o contexto migratório é completamente diferente. E Portugal tem assumido, em todos os fora internacionais, fazer parte dos países da linha da frente no acolhimento destes cidadãos ao abrigo do que são os princípios elementares de solidariedade e responsabilidade no contexto das migrações para a Europa".
O enquadramento da proteção internacional, que tem de ser requerida, pode, no caso de ser deferido, conduzir quer ao estatuto de refugiado quer ao de proteção humanitária, explicou Cristina Gatões: "Estamos a avaliar e, se forem requerentes de proteção internacional, poderá ser reconhecido o estatuto ou de refugiado ou de proteção humanitária. É sobretudo no contexto da proteção humanitária que têm sido acolhidos cidadãos que têm vindo para Portugal, provenientes dos resgates do Mediterrâneo."
Ainda segundo Cristina Gatões, os jovens, que esclareceu não estarem detidos apesar de terem sido algemados na transferência da Policia Marítima para o SEF, foram alimentados, hidratados e vistos por uma equipa médica da Cruz Vermelha, devendo após o jantar ser "devidamente elucidados do quadro legal que existe e no qual poderão inserir-se, de modo a que a decisão que vão tomar seja informada". A preocupação das autoridades, garantiu, foi "estabilizá-los e tranquilizá-los".
Se efetivamente se trata de cidadãos marroquinos, a diretora do SEF assumiu não ser ainda possível saber. "Vamos averiguar isso, naturalmente."
Da praia de El-Jadida para a do Monte Gordo: 700 quilómetros num pequeno e velho barco de madeira sem qualquer cobertura ("de boca aberta"), em pleno inverno, no oceano Atlântico. É, a crer no seu relato, o feito destes oito jovens, que chegaram com pouco mais que a roupa que traziam vestida - e indocumentados. À polícia marítima, que pelas 10.30 os capturou após ser avisada por pescadores, disseram ter como destino Espanha.
Uma informação que deixa Rui Vasconcelos de Andrade, comandante local da Polícia Marítima de Vila Real de Santo António, com dúvidas. "Podem ter derivado, devido às correntes. Mas é um pouco estranho, porque a embarcação tinha motor e GPS. Com o motor poderiam contrariar a deriva", diz ao DN. "E a previsão meteorológica não parece apontar no sentido de haver derivação para aqui."
Para ter a certeza, porém, é preciso ter mais informação sobre o funcionamento das correntes nesta quarta-feira. É que pode dar-se o caso de esta embarcação ter mesmo como destino a costa portuguesa, para evitar a hipervigilância existente na espanhola, onde neste ano se registou um aumento de 57,3% em relação a 2018 no número de embarcações com migrantes detetadas à chegada às ilhas Canárias, assim como no número de pessoas transportadas: 1987 pessoas contra 1263 em 2018. Só nas últimas semanas, foram resgatados na praia del Águila, na Grande Canária, 24 migrantes, incluindo seis crianças e duas grávidas, e turistas britânicos numa excursão de avistamento de golfinhos salvaram 12 marroquinos que estavam em apuros no mar alto.
A chegada a Portugal destes oito jovens, que disseram às autoridades ter entre 16 e 20 anos, poderá assim ser indício de uma nova rota tentada pelos migrantes, à semelhança da identificada quando na semana passada um barco com 150 a 180 pessoas naufragou ao largo da Mauritânia, matando 63 dos passageiros, na sua maioria provenientes da Gâmbia. Segundo um comunicado do governo da Mauritânia, os sobreviventes admitiram que se dirigiam para as Canárias, e que tinham saído da Gâmbia a 5 de dezembro - para alegadamente fazerem uma viagem de cerca de dois mil quilómetros.
Que se trate da estreia de uma rota nova para os fluxos migratórios é receio assumido nesta quarta-feira pelo chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, almirante António Silva Ribeiro: "Temos de estar atentos. Temos de estar muito atentos a essa possibilidade porque não é muito diferente ir para Espanha ou ir para o Algarve, é só uma questão de opção." Citado pela Lusa, o almirante considera ser necessário que as autoridades policiais - o SEF, a Polícia Marítima e a Guarda Republicana, nomeadamente através da Unidade de Controlo Costeiro - mantenham a monitorização desse tipo de fenómenos, bem como a vigilância da fronteira marítima nacional.
Também quando em 2007 o outro grupo de migrantes chegou à costa algarvia, na ilha da Culatra, frente a Olhão, proveniente de Kenetra, a 40 quilómetros de Rabat, e também num pequeno barco de madeira, houve quem vaticinasse que esse facto, apesar de se revelar um acaso (os marroquinos garantiram que o seu destino era Cádis), poderia ser o prenúncio de que "os fluxos de imigração ilegal vão chegar à costa algarvia". Quem o disse foi Silvestre Correia, da Marinha Portuguesa, que, citado pela Lusa, considerou ser fundamental "manter a Marinha equipada e capaz de fazer frente a esta vaga, que representa uma ameaça para a segurança e estabilidade do país".
Questionada sobre se o objetivo dos jovens era chegar a Espanha ou a Portugal, a diretora do SEF respondeu "o destino deles era a Europa, e Portugal faz parte da Europa".
Os 63 mortos ao largo da Mauritânia, que como os outros passageiros do barco teriam pago 760 euros por pessoa para fazer a viagem, somam-se aos mais de 150 migrantes que neste ano já morreram a tentar alcançar as Canárias, dos quais pelo menos 48 na zona atlântica de Marrocos, de acordo com dados da Organização Internacional das Migrações (OIM). Uma pequena parte das 2217 que a OIM estima terem morrido neste ano nas travessias marítimas para a Europa.
Certo para já é que os oito jovens escaparam a esse destino. Ao requererem a proteção internacional, nos termos da lei 27/2008 de 30 de junho ("Concessão de asilo ou proteção subsidiária"), estão autorizados a permanecer em território nacional até à decisão sobre a admissibilidade do pedido, que pode ser feito por escrito ou oralmente. Recebido o pedido, o SEF tem de informar imediatamente o representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e o Conselho Português para os Refugiados "enquanto organização não governamental que atue em seu nome da apresentação do pedido de proteção internacional, podendo estes contactar o requerente logo após a receção de tal comunicação com o objetivo de o informar sobre o respetivo procedimento, bem como sobre a sua possível intervenção no mesmo, a qual depende de consentimento do requerente".
Quando na tarde desta quarta-feira o DN contactou o vice-presidente do Conselho Português para os Refugiados, Tito Campos e Matos, o organismo ainda não recebera qualquer comunicação sobre os oito jovens. "Prestamos apoio jurídico a todos os requerentes de proteção, pelo que se requerem o CPR será envolvido no processo." O facto de haver, aparentemente, menores no grupo implicará, sublinha, "o envolvimento do Tribunal de Família e Menores. Porque terá de haver alguma entidade que se vai substituir aos pais."
Isso mesmo prevê a lei: "Deve ser avaliada a necessidade de promoção de garantias processuais especiais para os requerentes cuja capacidade de exercer direitos e cumprir obrigações se encontre limitada por força das circunstâncias pessoais, designadamente em virtude da sua idade (...)."
Apesar de a situação económica de Marrocos ter melhorado consideravelmente nos últimos anos e, de acordo com a avaliação do Banco Mundial, a pobreza ter diminuído substancialmente entre 2001 e 2014, a perceção subjetiva da pobreza continua muito alta - o que é um fenómeno comum nos países em desenvolvimento - e aumentou enquanto a pobreza real diminuía. A percentagem de famílias que se consideram pobres aumentou entre 2007 e 2014 de 41,8% para 45,1%. O principal aumento ocorreu nas áreas rurais, onde chegou a 54%: mais de metade das famílias nessas áreas consideram-se pobre. O que sucede também com as mulheres (55,3%) e sobretudo com os jovens (57,6%).
Em 2007, houve a tentativa, por parte de várias organizações de defesa de direitos humanos, de fazer valer o estatuto de vítimas de tráfico humano para os 23 marroquinos desembarcados na Culatra, que incluíam uma menor de 15 anos. Mas, relembra ao DN o deputado do BE José Soeiro, que esteve envolvido nesse esforço, as autoridades portuguesas foram inflexíveis e os migrantes foram rapidamente expulsos. A lei atualmente aplicável aos oito jovens que chegaram a Monte Gordo é de 2008, pelo que os 23 migrantes não puderam beneficiar dela.
José Soeiro, que visitou os migrantes no centro de acolhimento no Porto para o qual a maioria foi transferida viria depois a ir ao encontro deles em Marrocos, após terem sido repatriados, uma vez que foram detidos à chegada. Em pergunta dirigida ao ministro da Administração Interna, a 24 de janeiro de 2008, o grupo parlamentar do BE descrevia a situação que os migrantes estariam a viver: "Na prisão, foram colocados junto dos criminosos de delito comum, dormem no chão, sem cama nem cobertores. Alguns deles terão sido roubados pelas próprias autoridades - a roupa e algum dinheiro. Mais ainda, as autoridades marroquinas têm feito chantagem exigindo dinheiro em troca da mudança de quarto dentro da prisão."
E concluía: "O Estado Português não pode repatriar pessoas sem ter garantias de que as mesmas serão recebidas em condições dignas humanitárias no seu país de origem. Perante a mera suspeita sobre a possibilidade destas pessoas sofrerem penalizações no seu país de origem em virtude de terem tentado procurar uma vida melhor em território nacional, Portugal não deveria proceder ao seu repatriamento. (...) Os imigrantes são pessoas, não são mercadorias ou coisas. O Governo português deveria ter accionado os mecanismos legais destinados à protecção das vítimas de tráfico de seres humanos ou de acção de auxílio à imigração ilegal. Esta situação é ainda mais curiosa se analisarmos o facto de ter sido este Governo a propor a existência legal desses mecanismos, e à primeira oportunidade para os aplicar, ignora-os."
Soeiro visitou alguns destes migrantes depois de libertados e constatou que viviam em condições de grande pobreza. Mas, conta ao DN, o que mais o impressionou foi que apesar do risco que tinham corrido na viagem e do insucesso da empresa, a primeira coisa que fizeram foi preparar nova viagem. "Percebi que para eles era uma grande vergonha voltarem assim e também um risco, porque muitos deles se tinham endividado para fazer a travessia ou estavam em perigo por os traficantes suspeitarem de que podiam tê-los denunciado. E voltaram a partir. Alguns chegaram mesmo a Espanha, onde tinham família."
Em 2019, 1465 estrangeiros, vindos de 63 países, pediram asilo a Portugal, mais 36% do que em igual período em 2018.
[Artigo atualizado às 10:20 com comunicado oficial do SEF e às 13.25 com referências ao sucedido em 2008]