Embora alternadamente descrita como "minicrise", "pseudocrise" e "crise de fim-de-semana", a crise política aconteceu e esse é facto mais saliente sobre a mesma: ter acontecido. Caso a crise política não tivesse acontecido, seria derrotado o propósito central da crise política, que é a produção de comentário político sobre a crise política. Tudo isto pode parecer absurdamente circular se pensarmos no assunto mais de cinco segundos, portanto o melhor é pensarmos no assunto menos de cinco segundos (proponho uma reflexão não superior a 4,6 segundos) e partirmos de imediato para um resumo dos acontecimentos, sintetizado a partir dos comentários políticos televisivos feitos ao longo da semana..Se há algo em que o comentário político televisivo é exímio é na resposta rápida a crises. Por todo o país (ou seja, em Lisboa e Porto), comentadores experientes recorreram aos seus arsenais privados, pegaram em metáforas desportivas, analogias gastronómicas, vocabulário militar, expressões idiomáticas e lugares-comuns, e dirigiram-se profissionalmente para os estúdios mais próximos, de forma a transmitirem aos portugueses de modo inequívoco que eram as pessoas menos surpreendidas ou confusas com tudo o que estava a acontecer..O que aconteceu foi muito simples. A "direita", aliando-se à "esquerda" (não essa, mas a outra), tentou "tirar um coelho da cartola" (José Miguel Júdice, SIC Notícias), para "puxar o tapete ao governo" (TVI 24), mas "o feitiço virou-se contra o feiticeiro" (SIC Notícias) e "deram um tiro no pé" (RTP 3), que acabou por "estender a passadeira vermelha a Costa" (Marques Mendes, SIC). Costa, com este trunfo "de mão beijada" (RTP 3), "foi ao território do inimigo para o derrotar com as suas próprias armas" (Luís Pedro Nunes, Eixo do Mal), pois "o bluff do outro lado era fraco e ele pode forçar a sua mão" (Martim Silva, Opinião Pública), "percebendo que tinha um royal flush, fez all-in" (Daniel Oliveira, Canal Q) e "jogou a bomba atómica" (Martim Silva, Opinião Pública) garantindo assim uma "grande vitória" (SIC Notícias), que agora lhe permite "tirar os dividendos e fazê-lo muito bem" (Paulo Baldaia, TVI 24), enquanto Centeno "mete todos os políticos no bolso" (Ricardo Costa, SIC). A "direita" ainda tentou "esvaziar o balão" (Júdice, SIC Notícias), mas "foi pior a emenda do que o soneto" (Pedro Marques Lopes, Eixo do Mal) porque "cada tiro, cada melro" (idem), e no fim ficaram "entalados", dando-se "de bandeja para uma cataplana", porque "na cataplana, a carne, para não se estragar, entala-se" (Manuela Moura Guedes, evidentemente e enfim). O público presumivelmente sente-se feliz, pois descobre de súbito que esteve este tempo todo a assistir a um empolgante e sofisticado desporto competitivo, sem sequer ter pago bilhete..A profusão de metáforas ligadas ao poker reforça a lição primária, que é a paradoxal despolitização dos acontecimentos reduzindo-os à pura e não adulterada "política", na sua definição enquanto jogo com um conjunto de características e propriedades que só se manifestam aos connoisseurs e só por eles pode ser devidamente observado..No espaço televisivo português, ninguém encarna esta postura melhor do que Marques Mendes, cujo comentário sobre isto foi um - chamemos-lhe um royal flush. O governo "estava à defesa... e encontrou aqui uma oportunidade para passar ao ataque". O PSD e o CDS mostraram "ingenuidade" e "colocaram-se a jeito". Costa "é um profissionalão da política e aproveitou". A direita vai agora "pagar uma factura", pois ficou com "um problema de imagem" aos "olhos do eleitorado", mesmo depois do "controlo de danos"..Mas é este o atributo indispensável para fazer comentário político sobre uma crise política, seja ela "mini", "pseudo" ou alarmante: a mistura de pragmatismo, desenvoltura, desassombro e imparcialidade que possibilite encenar a produção contínua da sua própria neutralidade, e manter uma perspectiva purgada de qualquer sentimentalismo e a capacidade de enxergar a matriz do jogo - as suas regras, tácticas, estratégias e respectivos efeitos. Quem revelou mais "mestria", quem cometeu "erros de principiante", quem ficou "bem" ou "mal" na "fotografia", quem mostrou a "estratégia mais inteligente", e como vai "o eleitorado" reagir. Quem ganhou a semana. Quem perdeu o dia. Quem sabe que horas são..O comentário político televisivo posiciona os seus praticantes não como filtros elucidativos entre informação complexa e os respectivos espectadores, mas como sinaleiros entre aquilo que o espectador ouviu agora e aquilo que deve pensar a seguir. A "análise" consiste em decidir quem foi mais eficaz em tomar as acções que justifiquem a análise que agora está a ser feita..Ou seja, o comentário político de hoje sobre a política que aconteceu ontem é quase sempre uma justificação circular para aquilo que o comentário político tenciona dizer amanhã..Sobre o funcionamento específico de uma votação na especialidade, alguém disse na RTP 3 que "o problema é que as pessoas não sabem como se faz uma lei, mas..." e continuaram sem saber, pelo menos ali. A respeito da discrepância entre os cálculos sobre os custos apresentados pela Fenprof e por Centeno, alguém disse na SIC Notícias que "o governo limitou-se a fazer uma conta de multiplicar muito simples... mas que eu não vou estar agora a explicar porque é demasiado complexa"..O que também é complexo, mas nunca "demasiado" complexo, é o deslocamento tácito do eleitorado para uma categoria separada do restante processo: transformados em meros alvos de técnica política. Seja ela aplicada com "mestria" ou "incompetência", essa técnica é o único factor que merece uma avaliação rigorosa, se necessário recorrendo a analogias que o simplifiquem. Mesmo que o eleitor comum se sinta intimidado pelo esoterismo de manobras políticas tão sofisticadas como comissões parlamentares, coligações negativas ou ameaças de demissão, em matéria de poker somos todos tratados como confiantes portadores de inside straights..Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Embora alternadamente descrita como "minicrise", "pseudocrise" e "crise de fim-de-semana", a crise política aconteceu e esse é facto mais saliente sobre a mesma: ter acontecido. Caso a crise política não tivesse acontecido, seria derrotado o propósito central da crise política, que é a produção de comentário político sobre a crise política. Tudo isto pode parecer absurdamente circular se pensarmos no assunto mais de cinco segundos, portanto o melhor é pensarmos no assunto menos de cinco segundos (proponho uma reflexão não superior a 4,6 segundos) e partirmos de imediato para um resumo dos acontecimentos, sintetizado a partir dos comentários políticos televisivos feitos ao longo da semana..Se há algo em que o comentário político televisivo é exímio é na resposta rápida a crises. Por todo o país (ou seja, em Lisboa e Porto), comentadores experientes recorreram aos seus arsenais privados, pegaram em metáforas desportivas, analogias gastronómicas, vocabulário militar, expressões idiomáticas e lugares-comuns, e dirigiram-se profissionalmente para os estúdios mais próximos, de forma a transmitirem aos portugueses de modo inequívoco que eram as pessoas menos surpreendidas ou confusas com tudo o que estava a acontecer..O que aconteceu foi muito simples. A "direita", aliando-se à "esquerda" (não essa, mas a outra), tentou "tirar um coelho da cartola" (José Miguel Júdice, SIC Notícias), para "puxar o tapete ao governo" (TVI 24), mas "o feitiço virou-se contra o feiticeiro" (SIC Notícias) e "deram um tiro no pé" (RTP 3), que acabou por "estender a passadeira vermelha a Costa" (Marques Mendes, SIC). Costa, com este trunfo "de mão beijada" (RTP 3), "foi ao território do inimigo para o derrotar com as suas próprias armas" (Luís Pedro Nunes, Eixo do Mal), pois "o bluff do outro lado era fraco e ele pode forçar a sua mão" (Martim Silva, Opinião Pública), "percebendo que tinha um royal flush, fez all-in" (Daniel Oliveira, Canal Q) e "jogou a bomba atómica" (Martim Silva, Opinião Pública) garantindo assim uma "grande vitória" (SIC Notícias), que agora lhe permite "tirar os dividendos e fazê-lo muito bem" (Paulo Baldaia, TVI 24), enquanto Centeno "mete todos os políticos no bolso" (Ricardo Costa, SIC). A "direita" ainda tentou "esvaziar o balão" (Júdice, SIC Notícias), mas "foi pior a emenda do que o soneto" (Pedro Marques Lopes, Eixo do Mal) porque "cada tiro, cada melro" (idem), e no fim ficaram "entalados", dando-se "de bandeja para uma cataplana", porque "na cataplana, a carne, para não se estragar, entala-se" (Manuela Moura Guedes, evidentemente e enfim). O público presumivelmente sente-se feliz, pois descobre de súbito que esteve este tempo todo a assistir a um empolgante e sofisticado desporto competitivo, sem sequer ter pago bilhete..A profusão de metáforas ligadas ao poker reforça a lição primária, que é a paradoxal despolitização dos acontecimentos reduzindo-os à pura e não adulterada "política", na sua definição enquanto jogo com um conjunto de características e propriedades que só se manifestam aos connoisseurs e só por eles pode ser devidamente observado..No espaço televisivo português, ninguém encarna esta postura melhor do que Marques Mendes, cujo comentário sobre isto foi um - chamemos-lhe um royal flush. O governo "estava à defesa... e encontrou aqui uma oportunidade para passar ao ataque". O PSD e o CDS mostraram "ingenuidade" e "colocaram-se a jeito". Costa "é um profissionalão da política e aproveitou". A direita vai agora "pagar uma factura", pois ficou com "um problema de imagem" aos "olhos do eleitorado", mesmo depois do "controlo de danos"..Mas é este o atributo indispensável para fazer comentário político sobre uma crise política, seja ela "mini", "pseudo" ou alarmante: a mistura de pragmatismo, desenvoltura, desassombro e imparcialidade que possibilite encenar a produção contínua da sua própria neutralidade, e manter uma perspectiva purgada de qualquer sentimentalismo e a capacidade de enxergar a matriz do jogo - as suas regras, tácticas, estratégias e respectivos efeitos. Quem revelou mais "mestria", quem cometeu "erros de principiante", quem ficou "bem" ou "mal" na "fotografia", quem mostrou a "estratégia mais inteligente", e como vai "o eleitorado" reagir. Quem ganhou a semana. Quem perdeu o dia. Quem sabe que horas são..O comentário político televisivo posiciona os seus praticantes não como filtros elucidativos entre informação complexa e os respectivos espectadores, mas como sinaleiros entre aquilo que o espectador ouviu agora e aquilo que deve pensar a seguir. A "análise" consiste em decidir quem foi mais eficaz em tomar as acções que justifiquem a análise que agora está a ser feita..Ou seja, o comentário político de hoje sobre a política que aconteceu ontem é quase sempre uma justificação circular para aquilo que o comentário político tenciona dizer amanhã..Sobre o funcionamento específico de uma votação na especialidade, alguém disse na RTP 3 que "o problema é que as pessoas não sabem como se faz uma lei, mas..." e continuaram sem saber, pelo menos ali. A respeito da discrepância entre os cálculos sobre os custos apresentados pela Fenprof e por Centeno, alguém disse na SIC Notícias que "o governo limitou-se a fazer uma conta de multiplicar muito simples... mas que eu não vou estar agora a explicar porque é demasiado complexa"..O que também é complexo, mas nunca "demasiado" complexo, é o deslocamento tácito do eleitorado para uma categoria separada do restante processo: transformados em meros alvos de técnica política. Seja ela aplicada com "mestria" ou "incompetência", essa técnica é o único factor que merece uma avaliação rigorosa, se necessário recorrendo a analogias que o simplifiquem. Mesmo que o eleitor comum se sinta intimidado pelo esoterismo de manobras políticas tão sofisticadas como comissões parlamentares, coligações negativas ou ameaças de demissão, em matéria de poker somos todos tratados como confiantes portadores de inside straights..Escreve de acordo com a antiga ortografia.