Todos os portugueses contam. O pingue-pongue entre Marcelo e Tavares no 10 de Junho

O presidente das comemorações do Dia de Portugal disse o que o Presidente da República se inibiu de dizer a escassos meses das eleições legislativas. Ambos recusaram ficar amarrados a complexos do passado, exigindo mais aos políticos para o futuro.
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Rouco e institucional, Marcelo Rebelo de Sousa sacudiu pouco o pó das comemorações do 10 de Junho, realizadas neste ano em Portalegre, preferindo a exaltação de "uma só pátria na diversidade dos Portugais", apontando para o facto quase ímpar de um país que, na definição do Presidente da República, resistiu "à perda da independência" e "às crises económicas, financeiras, políticas e sociais" e "aos erros e fragilidades". "E não só sobrevivemos como queremos apostar no futuro", sintetizou.

Antes, o presidente das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o antigo jornalista e comentador João Miguel Tavares - que sublinhou o facto de "ser o primeiro filho da democracia a presidir às comemorações do 10 de Junho" -, veio pedir exigência aos políticos e às elites porque, no final, todos os portugueses contam.

É talvez a passagem mais significativa do discurso de João Miguel Tavares e vale a pena a longa citação: "É preciso dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão 'tu contas'. É preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do bairro da Jamaica 'tu contas'. É preciso dizer ao cabo-verdiano que trocou a sua terra por Portugal, em busca de um futuro melhor para os seus filhos, 'tu contas', e os teus filhos não estão condenados a passar o resto das suas vidas a limpar as casas da classe alta de Lisboa ou do Porto. É preciso dizer à mãe ou ao pai que se sacrifica diariamente para que o seu filho possa estudar numa boa escola 'tu contas, o teu esforço não será desperdiçado, e enquanto cidadão português tens os mesmos direitos e a mesma dignidade que um primeiro-ministro ou um Presidente'."

Antes disto, um tudo-nada antes, Tavares tinha avisado: "Nós precisamos de sentir que contamos para alguma coisa." Acrescentando num aparte nada inocente: "Além de pagar impostos."

O presidente da comissão organizadora do Dia de Portugal não se poupou às referências críticas do quotidiano de um "país algo desencantado", no qual "o grande desafio está em tentar desenvolver um sentimento de pertença que vá além dos prodígios do futebol". "Sozinhos somos ninguém. A velha pergunta bíblica 'acaso sou eu o guarda do meu irmão?' tem uma única resposta numa sociedade decente: 'Sim, és.'"

A sociedade decente escreve-se por portugueses que "podem não ser os melhores do mundo, mas são com certeza capazes de coisas extraordinárias desde que sintam que estão a fazê-las por um bem maior". É aqui que entra a política e o desafio de os seus agentes darem aos portugueses algo em que acreditar. "A política não falha apenas quando conduz o país à bancarrota. A política falha quando deixa o país sem rumo e permite que se quebre a aliança entre o indivíduo e o cidadão. Aquilo que melhor distingue as pessoas não é serem de esquerda ou de direita, mas a firmeza do seu carácter e a força dos seus princípios. Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos deem alguma coisa em que acreditar."

O Presidente da República quer que os portugueses persigam "um futuro que seja mais justo, mais solidário e mais humano", sem esquecer erros e fracassos do país. "Não podemos nem devemos omitir ou apagar os nossos fracassos coletivos, os nossos erros antigos ou novos", sublinhou no seu discurso das comemorações do 10 de Junho.

Aqui Marcelo Rebelo de Sousa, como aliás João Miguel Tavares, voltou a recusar sacudir o pó de um passado complexo e complicado. Falando na presença do chefe de Estado cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca, o Presidente da República defendeu que os portugueses não têm "complexos quanto ao [seu] passado": "Todo ele, o melhor ou o pior, todo ele foi Portugal e honramo-nos daquele passado - e foi muito, e foi essencial, e foi decisivo, mais dignificando a nossa história", explicou-se.

Também o presidente das comemorações seguiu idêntico raciocínio: "Partilhamos uma língua, um país com uma estabilidade de séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos cansados de nós próprios. Tivemos história a mais; agora temos história a menos. Passámos da exaltação heroica e primária do nosso passado, no tempo do Estado Novo, para acabarmos com receio de usar a palavra 'descobrimentos'. Simplificámos a história de forma infantil."

Marcelo acompanhou Tavares, sem se deter em demasia no discurso da atualidade na passagem - breve mas assertiva - em que pediu para o país não omitir "fracassos coletivos". "Não podemos nem devemos esquecer ou minimizar insatisfações, cansaços, indignações, impaciências, corrupções, falências da justiça, exigências constantes de maior seriedade e ética na vida pública", apontou o Chefe do Estado, reportando-se aos exemplos apontados por João Miguel Tavares. Este disse, no fundo, o que Marcelo se inibiu de dizer a escassos meses das eleições legislativas.

Tavares pincelou um retrato do país: "A integração na Europa do euro não correu como queríamos. Construímos autoestradas onde não passam carros. Traçámos planos grandiosos que nunca se cumpriram. Afundámo-nos em dívida. Ficámos a um passo da bancarrota. Três vezes - três vezes já - tivemos de pedir auxílio externo em 45 anos de democracia. É demasiado."

Marcelo puxou para a tribuna por outro retrato ao espelho. "É bom que se saiba que" Portugal, disse, "não é só um secretário-geral das Nações Unidas [António Guterres], ou um presidente do Eurogrupo [Mário Centeno], ou um diretor-geral de uma organização internacional, ou uma equipa vencedora num certame desportivo com maior notoriedade internacional". Há mais. "São todos os dias, cá dentro e lá fora, líderes sociais, científicos, académicos, culturais ou empresariais, muitos dos quais nós nem sabemos quem são até que chega a notícia de que um português ganhou um prémio de melhor investigador, ou que uma portuguesa foi considerada a melhor enfermeira num país estrangeiro, ou um artista foi celebrado em outro continente."

São, no fundo, como também notou João Miguel Tavares, "diferentes tipos de currículo, mas são currículo". Para o presidente das comemorações concluir: "E se ainda assim vos perguntarem 'quem é que tu achas que és?', respondam apenas: 'Sou um cidadão que todos os dias faz a sua parte para que possamos viver num Portugal melhor e mais justo.' Isso chega - aliás, não só chega como é aquilo que mais falta nos faz."

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