Foi Meles Zenawi quem a 2 de abril de 2011 pôs a primeira pedra da Barragem do Grande Renascimento Etíope, mas o homem forte da Etiópia desde 1991 (presidente durante quatro anos, depois primeiro-ministro mais 17) morreu no ano seguinte e portanto não assistiu às ameaças de bombardeamento feitas pelos egípcios em 2013, governava então Mohammed Morsi. Hoje é Abiy Ahmed, um Nobel da Paz, quem lida com a fúria do Egito, liderado por Abdel al-Sissi, que derrubou Morsi mas que considera o Nilo sagrado, tal qual o antecessor.."Meles Zenawi foi um homem com uma perceção aguda, tanto de como funcionam as estruturas implícitas do poder na Etiópia, como de como negociar e manipular interesses de potências estrangeiras e das organizações internacionais. A Etiópia sempre foi um país com um grande potencial de desmembramento e são essas estruturas implícitas de poder (geralmente partilhado entre amharas e tigrínios, com o apoio económico-financeiro da comunidade muçulmana, e anteriormente arménia e até italiana) que lhe permitiram fazer um golpe interessante, com inspiração chinesa: criar um Estado desenvolvimentista (criação de infraestruturas básicas - habitação, saneamento, rodovias, etc.) suportado por uma clique (as empresas do partido EPRDF, PPP encapotadas) que criou uma ilusão de liberalização económica, mas mantendo o poder em sistema de quase partido único, alimentando também sentimentos nacionalistas (que galvanizaram os etíopes durante a guerra com a Eritreia mas não na intervenção na Somália em 2006)", explica Manuel João Ramos, professor no ISCTE e antropólogo com grande conhecimento da Etiópia..Na década de 2000, marcada pelo 11 de setembro, "este cocktail permitiu investimento estrangeiro (e do Banco Mundial), nomeadamente porque Meles deu a ilusão a Bush, Blair e Durão Barroso de que a Etiópia era um pilar importante na "guerra contra o terror", e um aliado dos países ocidentais (ao mesmo tempo que permitia o aumento da importância da China na Etiópia, a vários níveis)", acrescenta o autor do livro Histórias Etíopes..Batizado Legesse Zenawi, em 1955, numa família cristã do Tigray, adotou Meles como nome de guerra em homenagem a um amigo estudante executado pelo regime comunista que derrubara o imperador Hailé Selassié em 1975. Ele próprio abandonou a universidade para combater o ditador Mengistu e acabou por liderar o movimento que venceu a guerra civil em 1991. De início teve grande sucesso, aceitando o referendo que levou à secessão da Eritreia e adotando o federalismo, ao mesmo tempo que apresentava bons números na economia. Mas, sublinha Manuel João Ramos, "acabou mal, bastante criticado e desacreditado, e de certa maneira a barragem foi o último golpe de magia dele para galvanizar a população (a história do controlo real ou fictício das águas do Nilo e a rivalidade com o Egito vêm desde a Alta Idade Média). O projeto foi levado avante sem o apoio do Banco Mundial e da Comissão Europeia, pelo menos no início. Como os investidores não apareciam, Meles decidiu criar um imposto universal especial para financiar a construção. O potencial é enorme, de facto, em termos de autonomia energética da Etiópia e de exportação para os países do IGAD (a organização de cooperação do Corno de África). É uma barragem que não deixa de estar ligada aos interesses chineses, nomeadamente com a criação do chamado corredor de Lamu. Tem um potencial de irrigação enorme, mas são grandes as suspeitas de que vai aumentar o land grab através de leasings a companhias da agroindústria multinacional. Os pobres agricultores etíopes não serão beneficiados e as deslocações de populações têm ocorrido"..O início do enchimento da barragem estava previsto para o início de julho de 2020, mas negociações tensas entre Etiópia e Egito, que pediu a intervenção da ONU, levaram o governo de Adis Abeba a adiar por semanas as suas intenções. O Nilo Azul, que nasce nas montanhas etíopes, junta-se em Cartum, no Sudão, ao Nilo Branco, que nasce no lago Vitória, no Uganda. E apesar de nem sequer ter fronteiras com a Etiópia, o Egito sente-se ameaçado por uma eventual redução do caudal no Nilo, junto ao qual vive 90% da sua população de cem milhões de pessoas. E não falta quem pense que ações de força podem ser a única solução. Também o primeiro-ministro etíope, que foi Nobel como prémio pela paz com a Eritreia, fala de "mobilizar milhões" para defender a barragem, a maior de África..Passada quase uma década sobre a tal primeira pedra de um projeto que começou a ser pensado ainda nos tempos imperiais, uma barragem cheia poderá trazer alguma prosperidade extra à Etiópia e ajudar a melhorar um pouco aquilo que os livros de história vão dizer de Meles Zenawi. Mas convém não matar à sede o Egito, que desde os faraós considera o Nilo seu.