"A minha filha mais nova tinha 14 anos e viu centenas de corpos a boiar vindos do Ruanda, mortos à catanada"
Sei que esteve na organização das primeiras eleições livres que houve em Portugal, a 25 de abril de 1975 para a Assembleia Constituinte. Como é que foi parar à CNE?
Eu, nessa altura, era técnico superior no INE e o governo lembrou-se de que seria interessante ter alguém da estatística como membro da CNE. Consultaram dois ou três partidos e um deles disse que havia um fulano no INE que esteve no estrangeiro, que trabalhou no Instituto de Sociologia em Bruxelas. Assim, entrei como membro independente, porque a CNE tinha os comissários independentes e tinha, depois, os representantes dos partidos. Uma das primeiras coisas que notámos logo nas primeiras reuniões foi que era impossível fazer funcionar a Comissão com este tipo de mistura. Uma das primeiras decisões que propusemos ao governo foi que os representantes dos partidos saíssem da CNE.
É de Évora, estudou na cidade e tinha 25 anos no 25 de Abril. Vivia na Bélgica por razões políticas?
Sim, eu fui refugiado político. Saí de Portugal em julho de 1973 e estava no Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas como investigador quando foi o 25 de Abril. Vim logo a seguir - já estava cá no 1.º de Maio - e depois fui eleito, pelos funcionários do INE, como um dos membros da Comissão de Direção do Instituto.
O que é que foi para si mais fantástico, foi ouvir a notícia do 25 de Abril, quando estava em Bruxelas, ou no 25 de Abril do ano seguinte, as pessoas a fazer filas para votar?
Penso que ambas as coisas. No dia 25 de abril de 1974 cheguei à universidade e uma das minhas colegas disse-me que tinha havido uma revolução em Portugal. Eu estava completamente fora das notícias e procurei informar-me junto de outros portugueses em Bruxelas e, de facto, foi uma surpresa extremamente agradável. Tão agradável que, no dia seguinte, pedi a demissão e vim para Portugal. Também foi extremamente interessante ver as eleições que nós tínhamos organizado, as primeiras eleições livres em 1975. Eu, como membro da CNE, estava na Gulbenkian - creio que a nossa base - e foi interessante ir seguindo ao longo do dia as eleições e, depois no fim do dia, receber a visita de helicóptero do general Otelo Saraiva de Carvalho. Foi agradecer à CNE o dia ter corrido bastante bem.
Depois, já na ONU, vai organizar eleições em muitos países. Como é que aparece a oportunidade de ser funcionário da ONU?
Em 1976, quando saí da direção do INE e voltei para o gabinete de estudos do instituto, eles não sabiam bem o que fazer de mim pois tinha estado na direção durante dois anos. Então, fui nomeado, pelo instituto e também pela Secretaria de Estado do Planeamento, para representar Portugal num grupo de trabalho na OCDE sobre indicadores sociais em Paris. Houve uma altura em que ia lá praticamente todos os meses passar uns dias. Era um grupo que integrava técnicos vindos de vários países europeus e técnicos vindos das Nações Unidas em Nova Iorque. Um desses técnicos disse-me uma vez que estavam à procura de alguém para organizar o sistema estatístico e o primeiro recenseamento da população de São Tomé e Príncipe e queriam saber se eu estaria interessado. Falei com a minha mulher e disse que sim, que por um ano estaria disposto a ir e levava a família pois nessa altura tinha uma filha bebé. Foi assim que comecei. Fui para São Tomé por um ano. Nessa altura, São Tomé estava muito influenciado pela presença cubana.
Estamos a falar em que ano?
Estamos a falar em 1978. O aparecimento de um português à frente de um projeto de estabelecimento do sistema nacional de estatística e do sistema de planeamento de São Tomé era visto pelos cubanos com muita suspeita. Então, eles nomearam uma espécie de acompanhante que, curiosamente, era um cubano extremamente simpático e que se chamava Évora. É evidente que essa coincidência do seu nome de família com a minha terra de naturalidade permitiu-me ter uma relação muito especial não só com ele, mas com o resto da comunidade cubana que tinha muita influência política e ideológica em São Tomé.
Era casado e já tinha uma filha. A sua mulher é portuguesa?
Não. A minha mulher, Christiane, é belga.
Conheceu-a em Bruxelas?
Não. Conheci a Christiane na Avenida da Liberdade, eu era muito novo e ela também. Conheci-a em 1966 ou 1967... Eu estava na altura a fazer um estágio no INEF [Instituto Nacional de Educação Física]. Naquela altura eu era um corredor de velocidade, era uma grande promessa na área dos 100 metros, e ela veio com uma delegação de jovens belgas também ligados ao desporto, mas eu não a conheci no INEF. Nós saíamos ao fim de semana e eu vim para a Avenida da Liberdade onde encontrei o grupo onde ela estava.
Tem essa filha que era muito pequena na altura em que foram para São Tomé e mais outra.
Sim, temos duas filhas. A mais velha está na Bélgica e a mais nova vive em Sevilha.
Voltando à experiência de África - São Tomé é a sua primeira experiência no quadro da ONU, mas depois vai acumular várias.
Depois de São Tomé, onde ficámos não um ano, mas dois anos e meio, Nova Iorque perguntou-me se eu estaria interessado em abrir um escritório regional do Fundo de População em Maputo, e eu fui para lá em dezembro de 1980. Lembro-me perfeitamente de que cheguei a Maputo quando começou o problema com a Renamo na Gorongosa. Por várias razões, eu tive acesso ao presidente Samora Machel e perguntei-lhe qual devia ser a interpretação daquilo que se estava a passar na Gorongosa, e ele respondeu-me que eram meia dúzia de bandidos e que dentro de uns meses o problema estaria resolvido porque iriam acabar com eles. Lembro-me perfeitamente de que quase cinco anos depois, quando saí de Maputo para ir para a República Centro-Africana, fui ver novamente o camarada Samora Machel - eu digo "camarada" porque era assim que o tratava - e lembrei essa nossa primeira conversa - ele também se lembrava, curiosamente, mas ele tinha uma memória excecional - e, nessa altura, a Renamo estava em toda a parte. Aquilo que no final de 1980 era apenas um pequeno foco de rebelião, em 1985, na altura em que eu saí, era um problema nacional.
Sentiu aquele carisma que se atribuía ao Samora Machel? Conheceu muitos líderes africanos, sentiu alguma coisa de diferente neste moçambicano?
Sim, Samora Machel era uma pessoa extremamente interessante porque era uma pessoa de uma grande vivacidade. Era uma pessoa que muito rapidamente passava de um assunto muito sério para uma brincadeira e para um assunto mais ligeiro, e isso fazia que fosse uma pessoa muito atraente. Não havia monotonia e não havia aborrecimento com o Samora Machel.
Sentia nele algum tipo de hostilidade em relação aos portugueses por sermos antigos colonizadores?
Não, da parte do presidente Machel nunca senti qualquer tipo de hostilidade. Aliás, foi bastante curioso porque em 1981/82, os antigos portugueses, os cidadãos moçambicanos de origem portuguesa ocupavam ainda postos muito importantes, e era muito frequente eu fazer reuniões com dirigentes de vários departamentos em que só havia eu, como português, e os outros como antigos portugueses.
Depois teve uma experiência na África de língua francesa, certo?
Sim. Em 1985, quando estava a terminar a minha missão em Moçambique, recebi duas ofertas da parte das Nações Unidas. Uma, era para ir para o Rio de Janeiro para o mesmo Fundo para a Atividade da População; a outra era para ir para Bangui, na República Centro-Africana. Lembro-me perfeitamente de que, quando nós recebemos esta proposta - ou uma coisa ou outra -, quer a minha mulher quer eu não tínhamos ideia nenhuma de onde era Bangui. Lembro-me de que passámos uma parte do serão com uma lanterna - não havia luz, pois era naquela altura em que estava tudo muito complicado em Maputo e havia cortes frequentíssimos de luz - e com um atlas antigo à procura de Bangui no mapa. Vimos que Bangui era no meio de África, num sítio que nos era totalmente desconhecido. Por outro lado, havia essa oferta para irmos para o Rio de Janeiro. A oferta do Rio de Janeiro era extremamente atraente do ponto de vista das condições de vida, mas nós fizemos um cálculo em termos de - éramos jovens - carreira e pensámos que o impulso seria muito maior se fôssemos para Bangui.
Como é que a sua mulher adapta a carreira a estar consigo? Ela tem uma carreira paralela?
Ela, em Maputo, ainda conseguiu trabalhar na Embaixada da Bélgica, mas a partir da nossa ida para Bangui ela passou a ser o suporte, digamos assim, acompanhava-me, mas não trabalhava.
Isso acontece muito com os funcionários internacionais, um dos dois tem de fazer uma opção.
É sempre uma questão muito difícil, há sempre um dos dois que tem de se sacrificar porque é impossível fazer uma carreira conjunta, ou então é possível quando se trabalha numa das sedes - Nova Iorque, Genebra, Viena ou Nairobi -, mas quando se anda de um lado para o outro como era o nosso caso, é absolutamente impossível.
E criar duas filhas em África nessas circunstâncias. A segunda nasce em Maputo?
Não, a segunda nasceu no período em que eu ainda estava em São Tomé, mas nasceu em Bruxelas.
Portanto, quando chega a Maputo já tem duas meninas?
Sim, sim. Peggy, a mais nova, tinha então 6 meses. Ela e a Leslie foram depois connosco para Bangui, onde estivemos quatro anos. De Bangui fomos para Banjul, para a Gâmbia, e elas aí já não foram.
Em Bangui elas eram pequenas e andavam na escola?
Sim, sim. Andavam na escola francesa.
Mas elas para a Gâmbia já não vão consigo?
A partir da nossa missão em Bangui vão para um internato em Inglaterra, e passaram toda a sua vida escolar restante no Reino Unido. Foi uma opção muito difícil, devo dizer que foi, provavelmente, a opção mais difícil que nós tivemos de tomar. A mais nova foi para um internato quando tinha 9/10 anos e passou toda a sua vida escolar, o resto da escola primária e a escola secundária, internada em colégios.
Mas sentiu que era a forma de lhes dar alguma estabilidade?
Era a única maneira de lhes garantir uma educação que fosse de alguma qualidade. Elas poderiam ter ido connosco para a Gâmbia, mas não havia condições para garantir uma educação minimamente válida.
Quando as pessoas muitas vezes falam que os diplomatas e os funcionários internacionais têm bons salários, esquecem este tipo de constrangimentos.
Quem não passou por isso não compreende o que significa separar-se dos filhos quando eles são pequenos, no nosso caso, uma tinha 9/10 anos e a outra tinha 12/13. É de facto uma decisão que do ponto de vista da família, do ponto de vista afetivo, é uma decisão muito difícil de tomar. Eu lembro-me de que quando elas vinham ter connosco durante as férias, a emoção de as ver, a emoção de estar com elas, era uma coisa enorme.
Banjul, estamos agora a falar da África anglófona, nova experiência.
Sim, sim. Banjul correu bastante bem, pois eu tinha uma relação excecional com o governo da altura, nós conseguimos fazer alguns programas de desenvolvimento que foram considerados pioneiros no início dos anos 1990. Aliás, foram duas ou três vezes apresentados à comunidade internacional em Genebra. Por causa disso, eu saí de Banjul em 1994, um mês antes do golpe de Estado que lá ocorreu, para dirigir um dos vários programas das Nações Unidas que era o programa da Tanzânia.
Mais um país de língua inglesa.
Exatamente. Uma das razões por que eu fui para a Tanzânia foi o sucesso de Banjul e a outra foi por que era preciso alguém que fosse para lá para se ocupar dos refugiados que estavam a chegar do Ruanda, porque isto foi na altura da crise do Ruanda. Eu chego à Tanzânia quando centenas de milhares de refugiados chegaram ao país. Lembro-me perfeitamente de numa das primeiras visitas que fiz à zona da fronteira ter levado a minha filha mais nova - ela estava de férias - e nós fomos de avioneta de Dar es Salaam até à zona da fronteira, que é bastante longe, e uma das primeiras coisas que fizemos foi ir ver o rio que faz a fronteira com o Ruanda. Uma das primeiras coisas que ela viu, e nessa altura ela tinha 14 anos, foram centenas de corpos a boiarem vindos do Ruanda, todos mortos à catanada. Ela nunca mais se esquecerá.
Esse foi o genocídio dos tutsis pelos hutus. Dos países onde esteve, estou por exemplo a pensar na Serra Leoa de onde chegaram também imagens atrozes - havia aquela prática de cortarem os braços - foi sobretudo aí que esteve envolvido num processo de pacificação?
Exato. Na Serra Leoa o ambiente era diferente porque, por um lado, já se estava num processo de reconciliação nacional, havia ainda alguns focos de insubordinação, eu não diria de rebelião, mas que era preciso resolver. Nós resolvíamos conversando com as pessoas e tendo reuniões com as pessoas, com os jovens rebeldes. Na Serra Leoa foi sobretudo traumatizante ver como é que aquela população tinha sido afetada pela guerra civil, não só em termos das mutilações, mas também em termos da pobreza extrema que se vivia na capital e também em várias partes do país.
Quando fala de reconciliação, aí a presença da ONU é essencial para garantir que aquelas pessoas, que andaram a matar-se umas às outras, parem de o fazer?
Pois, aí a presença das Nações Unidas teve duas funções. Uma delas era garantir a estabilidade e a segurança do país, e essa função foi desempenhada com sucesso; a outra era tentar reconstruir a administração pública e a economia do país, e organizar, digamos assim, um processo político que fosse credível e que levasse à eleição dos novos líderes de uma nova Serra Leoa. Também foi extremamente interessante porque essas eleições em 2007, que eu organizei - aliás a organização começou em 2006 -, tinham dois campos bem definidos, o campo do presidente que era constituído fundamentalmente por gente vinda do sul do país e com uma forte composição étnica e, por outro lado, o campo do principal líder da oposição que era fundamentalmente de gente do norte do país. A minha grande preocupação era fazer que isto não levasse a uma guerra entre as populações do norte e as populações do sul ou a um massacre.
Quando olha agora, passados 13 anos sobre essas eleições, consegue ver que ficou um legado positivo? Pelo menos não se fala de novos conflitos.
A Serra Leoa foi um caso interessante porque foi, provavelmente, um dos primeiros países em África onde as eleições levaram à vitória da oposição, o que era extremamente raro. Aliás, o presidente Robert Mugabe, com quem eu trabalhei muitos anos, sempre me disse que se houvesse um governo africano que perdesse as eleições era porque esse governo africano era dirigido por idiotas.
O líder zimbabuano nunca perdeu.
Ele não era idiota, nem nunca perdeu as eleições e sabia como organizá-las.
E digamos que não acabou mal de todo, apesar de ter sido destituído com 93 anos... É uma figura que em 1980 é apresentada como um líder visionário, capaz de fazer um compromisso com os brancos para proteger a possibilidade do Zimbabué, mas depois termina a vida visto como um déspota. Como é que olha para esta personalidade?
Eu trabalhei quatro anos diretamente com Robert Mugabe. Conheci-o bem e à maneira como ele via as coisas. Ele era fundamentalmente uma pessoa que pensava que tinha uma missão histórica e que enquanto fosse vivo seria ele a dirigir o país. A questão do poder era, para ele, uma questão fundamental. A partir do momento em que sentiu que a oposição era mais forte do que o partido do governo, e a partir do momento em que sentiu, no final dos anos 1990, que os zimbabuanos brancos estavam, na grande maioria, a apoiar a oposição, ele não tinha outra solução senão esmagar por um lado o poder económico dos brancos para que não houvesse contribuições financeiras nem contribuições intelectuais por parte da população branca e, por outro lado, tinha de criar todas as condições para que a oposição não ganhasse as eleições. Então, assistimos gradualmente, sobretudo nos anos 2000 e 2001, ao aniquilar de toda a base económica que sustentava a economia mais desenvolvida do Zimbabué que estava controlada pelos brancos e que, em certa medida, financiava a oposição. A ideia central não era destruir a economia controlada pelos brancos, a ideia principal era destruir a economia que financiava a oposição que, por acaso, era controlada pelos brancos.
Em termos de ONU, Nova Iorque e Genebra, o lado mais central da organização, também fez parte da sua vida?
Eu estive dois anos e meio em Nova Iorque como diretor das operações para África. Tinha a exclusividade operacional, digamos assim, em relação a África.
Quem era o secretário-geral na altura?
Kofi Annan.
Aí viveu a estrutura centralizada.
Exato. Essa foi, sobretudo, uma experiência que me permitiu conhecer bem como é que funciona o secretariado e como é que funciona a sede. Depois, mais tarde, quando estive na Serra Leoa e estive como representante especial para outras coisas, percebi bem como funcionava o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que é muito diferente do secretariado e da sede. Ou seja, eu tive a vantagem, ao longo dos anos, de conhecer perfeitamente como funcionava a máquina e depois de conhecer bastante razoavelmente como funcionava o órgão de decisão que é o Conselho de Segurança.
Estamos no ano em que se celebram os 75 anos da ONU, que é um produto da Segunda Guerra Mundial e, portanto, o Conselho de Segurança e os membros permanentes são os vencedores da guerra. E o poder de veto de qualquer um deles trava qualquer coisa que se queira fazer de transformadora? A solução não seria um alargamento do Conselho de Segurança e acabar com os vetos?
Há duas questões aqui. Por um lado, a da representatividade do Conselho de Segurança, e eu estive muito implicado na discussão e no trabalho da tentativa de mudar a representatividade do Conselho de Segurança na questão do veto. Na altura pensou-se que a queda do Muro de Berlim era o momento certo. Pensou-se que seria possível ter um Conselho de Segurança mais representativo. Surgiram imediatamente vários problemas, nomeadamente quem é que representava África, seria o Egito, seria a Nigéria, seria a África do Sul... quem é que representava a América Latina, seria o México, seria o Brasil...
O Brasil, apesar da dimensão, não é consensual.
Exatamente.
E a Índia também não é consensual na Ásia?
Não, de modo algum. Exatamente. Então, surgiram este tipo de problemas. No caso da Índia lembro-me perfeitamente de que havia uma oposição muito forte de um vizinho da Índia contra a presença desta no Conselho de Segurança de uma maneira permanente. Não estou a falar da Índia com direito a veto, estou a falar só como membro permanente. Existem várias propostas relativas ao alargamento do Conselho de Segurança, mas nenhuma delas tem asas para voar.
A Economist trazia um trabalho há poucos dias sobre o direito de veto, que estava a ser pouco usado a seguir à queda do Muro de Berlim e que, nos últimos anos, tem sido muito usado. Isso significa que a ONU está a ficar paralisada?
O Conselho de Segurança, neste momento, está paralisado. A verdade é essa. Esse é um dos grandes problemas, atualmente, das Nações Unidas, da credibilidade das Nações Unidas. As divisões no seio do Conselho de Segurança são enormes, sobretudo em relação aos grandes conflitos. Nomeadamente, em relação à Síria. Vários direitos de veto foram exercidos no que diz respeito à situação e à proposta de solução da crise da Síria; a mesma coisa em relação à Líbia e, também, em relação a outras questões.
Sobretudo a China e a Rússia contribuem com muitos vetos. Vê alguma explicação para essa insistência?
A situação do Conselho de Segurança mudou radicalmente em 2011, quando foi o início da crise na Líbia. A resolução foi aprovada naquela altura pelos cinco membros permanentes. Depois, quando foi levada à prática, nomeadamente pelos europeus e através da intervenção militar de alguns países da NATO, foi uma interpretação e uma implementação que foram consideradas abusivas por parte da Rússia e, certamente, também por parte da China, e isso dividiu bastante o Conselho de Segurança. Desde então, desde 2011, temos verificado que o Conselho de Segurança, em relação às grandes questões internacionais, está muito dividido e eu diria mesmo que está paralisado. Eu continuo a considerar que o início da crise na Líbia foi um momento de viragem fundamental nas relações internacionais.
Faz o contraponto ao período entre a queda do Muro de Berlim e esse momento e o depois?
É isso, exatamente. Devo dizer que em 2011 e no período anterior havia uma esperança de alguma cooperação, nomeadamente com a Rússia, e eu lembro-me de que um dos exercícios mais importantes da Aliança Atlântica, que era o exercício para formação dos comandantes das diferentes operações, convidou comandantes russos a participarem nesse exercício. Depois, a seguir a 2011 há uma viragem total nas relações entre a Rússia e o Ocidente, viragem essa que levou a que a Rússia já não participasse nesse tipo de iniciativas de formação. A crise da Líbia em 2011 não só levou a uma alteração fundamental nesse relacionamento, como também houve uma mudança de política fundamental da China em relação a África, ou seja, a política chinesa em relação a África mudou radicalmente depois da experiência de 2011 e de tudo o que lhes aconteceu na Líbia. Finalmente, é o começo da desestabilização da região do Sahel e o começo do aparecimento do terrorismo fundamentalista no Sahel e na África Ocidental.
Porque é que a questão da Líbia é um momento de viragem também para a China?
Porque a China estava fortemente investida na Líbia e, de repente, foi apanhada de surpresa porque os investimentos que tinha feito no país, não só foram todos por água abaixo, como a própria China não tinha capacidade na área da segurança para poder sustentar e para poder defender esses investimentos. A partir daí, a partir de 2011, a China resolve que quando investe fortemente num determinado país, também deve investir paralelamente na área da segurança, ou seja, o investimento deve ser acompanhado por uma intervenção de defesa e segurança de modo que os dois pilares se sustentem.
Do ponto de vista do sistema da ONU, a China passou, desde então, a ser o segundo maior contribuinte e também contribui muito mais com capacetes azuis. Está tudo relacionado?
É evidente. Tudo isso faz parte do mesmo pacote de decisões e da mesma política que a China adotou em relação à sua presença internacional, nomeadamente na sua presença em África.
Estas guerras políticas dentro do Conselho de Segurança não são novidade, mas com a pandemia percebeu-se também que mesmo uma agência técnica como a OMS podia ser palco de disputa entre os Estados Unidos e a China. A OMS sai fragilizada desta pandemia?
Em certa medida sim, pois a OMS é fundamentalmente uma agência técnica dentro do sistema das Nações Unidas e, de repente, foi apanhada no emaranhado das tensões diplomáticas que existem ao nível internacional. Ou seja, o jogo político internacional apanhou, digamos assim, a OMS, que era uma agência que não estava preparada para tratar destas questões.
Esteve mais de três décadas na ONU e trabalhou com vários secretários-gerais. Foi uma surpresa António Guterres surgir no bloco dos favoritos e depois chegar a secretário-geral?
António Guterres foi eleito secretário-geral quando eu já tinha saído. Em certa medida, a vitória foi uma surpresa. Uma surpresa por várias razões, por um lado porque havia uma espécie de convenção não escrita que diria que o Secretariado-Geral poderia ser atribuído a alguém do leste da Europa e, por outro lado, em 2016, na altura em que ele foi eleito, havia uma enorme pressão para que o novo secretário-geral das Nações Unidas fosse uma mulher. Essa pressão vinha de várias fontes, de gente muito influente, e o facto de António Guterres conseguir ser eleito só mostra evidentemente que ele era um candidato excecional.
Para se chegar a secretário-geral, apesar daquela votação de todos os membros do Conselho de Segurança, é essencial ser-se consensual entre os cinco membros permanentes?
É fundamental, pelo menos, não ter a oposição de nenhum dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. O então comissário das Nações Unidas para os Refugiados tinha conseguido manter um certo equilíbrio em relação a esses cinco membros permanentes e, mais tarde, quando ele faz a apresentação em Nova Iorque da sua candidatura, foi extremamente habilidoso na maneira como fez o seu discurso, como apresentou as suas ideias e não apareceu a nenhum dos cinco membros permanentes como um candidato que pudesse pôr em causa os interesses desses membros.