De Bush a Trump. Como o Irão se mantém no Eixo do Mal dos EUA

Em 2002, o presidente Bush colocava a República Islâmica ao lado do Iraque e da Coreia do Norte na lista de inimigos dos EUA. Hoje, o assassínio do general Soleimani, herói dos iranianos, ameaça deteriorar a situação com Teerão, mesmo se os líderes vieram acalmar as coisas. Venezuela, Cuba e China também fazem parte do Eixo do Mal de Trump.
Publicado a
Atualizado a

Foi George W. Bush quem, no seu discurso do Estado da União de 2002, ainda com os atentados de 11 de Setembro frescos em todas as memórias, cunhou a expressão Eixo do Mal. Para o presidente republicano, integravam este grupo de países inimigos dos Estados Unidos o Irão, o Iraque e a Coreia do Norte. Nos anos seguintes, a ideia deste eixo maléfico, inspirado na expressão "Império do Mal", usada por Ronald Reagan em 1983 para se referir à União Soviética, voltou aos palanques por várias vezes, com países a entrar e sair da lista. O próprio Donald Trump, num discurso nas Nações Unidas em setembro de 2017 juntou a Venezuela ao Irão e Coreia do Norte para estabelecer a sua troika de "Estados vilões". Mas não se ficou por aqui e de Cuba à China, são vários os inimigos da América que o presidente americano tem vindo a identificar.

O ataque que no dia 3 resultou na morte do general Qassem Soleimani, o líder das al-Quds, a unidade de elite dos Guardas da Revolução iranianos, e a consequente resposta do Irão ao lançar mísseis contra duas bases iraquianas onde se encontravam estacionados militares americanos vieram mostrar que o Irão não só se mantém na lista dos maiores inimigos dos EUA 18 anos depois de Bush lá o ter colocado mas também surge como potencial palco de um conflito no terreno.

Irão: de regime pária à morte do "homem mau"

Aliado dos EUA durante o regime do xá Reza Pahlavi, com a Revolução Islâmica do ayatollah Khomeini, o Irão passa a inimigo da América. A tensão atinge o auge logo em novembro de 1979 com o sequestro de 52 pessoas durante 444 dias na Embaixada dos EUA em Teerão. Nos últimos 40 anos os episódios de tensão têm-se sucedido, entre aviões abatidos, suspeitas sobre o programa nuclear iraniano e sanções. Uma longa desconfiança, portanto, mas, com Barack Obama na Casa Branca, o mundo chegou a acreditar na aproximação entre Teerão e Washington. Sobretudo depois da assinatura do acordo sobre o programa nuclear iraniano em 2015.

Mas mal chegou ao poder, Trump deixou bem claro que com ele as coisas iam ser diferentes. "Chegou a hora de chamar a atenção do mundo para outro regime desonesto" cujos líderes cantam "Morte à América" e prometem destruir Israel, lembrou Trump no tal discurso na ONU em 2017. E logo nessa altura prometeu abandonar o acordo sobre o nuclear - "o pior acordo da história", segundo ele -, o que viria a acontecer em maio de 2018. Tomada essa decisão, chegou a falar-se num eventual encontro entre Donald Trump e o presidente iraniano Hassan Rouhani. Mas quando os iranianos abateram um drone americano que garantiam estar no seu território, em junho de 2019, e apreenderam um petroleiro britânico, a relação voltou a azedar.

A tensão subiu ainda mais com os recentes ataques contra bases iraquianas onde estão estacionados militares americanos e culminou com as milícias xiitas iraquianas apoiadas por Teerão a atacarem a Embaixada dos EUA em Bagdad. A resposta de Washington chegou no dia 3: um míssil matou o general Qassem Soleimani, líder dos Guardas da Revolução e considerado um herói no Irão. Uma morte que Trump classificou como a de "um homem mau". Se dúvidas houvesse sobre a importância desse ato, os media americanos recordam que se na era Obama houve mais de mil execuções sumárias de suspeitos de terrorismo, desde 1943 e a morte do general japonês Isoroku Yamamoto em retaliação após o ataque do Japão contra Pearl Harbor que os EUA não executavam um alto dirigente de um país soberano. A diferença? Na altura, os dois países estavam oficialmente em guerra. Depois da resposta iraniana, contra bases com militares americanos no Iraque, Trump veio pôr água na fervura, afirmando estar disposto a fazer a paz com quem a quiser. Resta saber se as coisas vão ficar por aqui. E com o Irão a puxar os cordéis de várias milícias e grupos armados na região, nada parece menos certo.

Coreia do Norte: a detentora do saber nuclear

Logo em 2001, Bush acusava a Coreia do Norte de ser "um regime que arma [os aliados] com mísseis e armas de destruição maciça, enquanto os seus cidadãos morrem de fome". Passados 16 anos, Trump voltava a incluir a Coreia do Norte na lista de inimigos da América, garantindo que Pyongyang - onde Kim Jong-un entretanto sucedera ao pai Kim Jong-il - "tem um interesse em ver estes criminosos armarem-se com a arma nuclear". E rematou: "O rocket man está em missão suicida para ele e para o seu regime". A crítica não ficaria sem resposta de Kim, que chamou "velho errático" a Trump e entre trocas de acusações, lançamentos de mísseis balísticos e um sexto ensaio nuclear norte-coreano, o mundo temeu a iminência de uma guerra. Mas tudo se distendeu em 2018, com Trump e Kim a protagonizarem não um nem dois mas três encontros - o primeiro em Singapura, em junho de 2018, o segundo em Hanoi, em fevereiro do ano seguinte, e o terceiro na Zona Desmilitarizada entre as duas Coreias, em junho de 2019. Mas a verdade é que os esforços para retomar o processo de paz continuam parados. E parece incerto que a Casa Branca esteja disposta a retirar a Coreia do Norte da lista dos países inimigos.

Cuba e Venezuela: má vizinhança a sul

Foi Condoleezza Rice quem em 2005, na sua audiência no Congresso para secretária de Estado, juntou Cuba à lista de Bush do Eixo do Mal. Mas com Obama, as relações com a ilha, então ainda sob domínio dos Castro - a Fidel sucedera no poder o irmão Raul -, evoluíram num sentido muito positivo, com Obama não só a reunir-se com Raúl Castro mas também, em março de 2016, a tornar-se o primeiro presidente americano a visitar Cuba em 54 anos. Trocaram-se prisioneiros, abriram-se embaixadas, normalizaram-se as viagens e reforçaram-se algumas trocas económicas, mas o embargo imposto pelos EUA em 1962 continua em vigor até hoje. E com a chegada de Trump ao poder, em 2017, o republicano rapidamente voltou a impor algumas das restrições que tinham sido levantadas e voltando às sanções. "Não ficaremos em silêncio perante a opressão comunista", afirmou o presidente, uma posição que se mantém mesmo depois de Raúl Castro ter passado o poder a Miguel Días-Canel em 2018.

A proximidade entre Cuba e a Venezuela também não tem contribuído para as boas relações. Já Hugo Chávez em 2006 contrapunha ao Eixo do Mal de Bush o "Eixo do bem" da nova esquerda latino-americana, que incluía Bolívia, Chile, Cuba, Equador, Uruguai e Venezuela. Trump, que em 2017 se mostrava disposto a "ajudar os venezuelanos a recuperar a sua liberdade, regressar à democracia", afirmava que os EUA estavam prontos a "agir para impedir o governo venezuelano de prosseguir o seu objetivo de impor o autoritarismo".

Nos últimos meses, com a Venezuela em crise política e social, Trump não deixou de ameaçar o país agora governado por Nicolás Maduro (apesar de Juan Guaidó também reivindicar a presidência, sendo reconhecido pelos EUA e vários países europeus, inclusive Portugal) e os que o apoiam, como Cuba, não pondo de parte a opção militar.

China: a guerra comercial que ameaça o mundo

Se nunca foi colocada em nenhuma lista oficial de inimigos dos Estados Unidos, a China não deixa de ser hoje a grande rival da América. E se o presidente Donald Trump gosta de repetir que "adora a China" e se não só recebeu o presidente chinês, Xi Jinping, no seu resort de Mar-a-Lago, como visitou Pequim, com direito a jantar na Cidade Proibida, em junho de 2019, a verdade é que os EUA e a China têm protagonizado uma guerra comercial que tem deixado o mundo em suspenso.

Foi ainda em 2018 que Trump começou a impor tarifas e outras barreiras comerciais aos bens chineses para travar o que considera serem "práticas comerciais injustas" - uma medida que o milionário defende desde os anos 80.
Claro que esta "guerra" comercial entre as duas principais potências económicas mundiais não poupa o resto do mundo. Portugal, por exemplo, está a ser pressionado por causa do 5G, com o próprio secretário de Estado, Mike Pompeo, a deixar o alerta contra a 5G chinesa numa passagem por Lisboa em finais de 2019.

Para já a guerra comercial entre a China e os EUA parece não estar prestes a passar à fase seguinte. O próprio Trump já veio dizer que um acordo comercial com Pequim está "muito próximo". Mas não deixa de ameaçar os chineses com novas tarifas caso o acordo não se venha a concretizar.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt