"Prometeram-nos algo que é irrealista: uma vacina em alguns meses"
A suspensão da fase 3 dos ensaios clínicos da vacina contra a covid-19 que está a ser desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford é um acontecimento "comum" no processo de desenvolvimento de uma vacina. Mas vem mostrar que os prazos que estão a ser apontados para a disponibilização de uma vacina são "irrealistas", diz Miguel Castanho, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular (IMM) . E este percalço terá como provável consequência, acrescenta, um atraso relativamente aos prazos que estavam a ser postos em cima da mesa para disponibilização de uma vacina e que apontavam, no melhor dos cenários, já para o final deste ano.
O investigador diz que a deteção de um caso de reação adversa grave entre os indivíduos que estão a testar a vacina (mas que não se sabe ainda se está correlacionado) "não surpreende". "É relativamente comum isto acontecer no desenvolvimento de uma vacina, de um medicamento" e é, aliás, uma das razões que explicam o longo e moroso processo de investigação e testes. "Uma vacina, em média, demora 15 anos a ser desenvolvida. Não é porque os cientistas sejam todos incompetentes ou todos preguiçosos, é porque estes casos acontecem, é preciso repensar, reanalisar os dados, voltar atrás. Eventualmente é preciso reformular", diz o bioquímico do IMM. "O que acontece é que nos prometeram a vacina em tempo recorde, prometeram-nos algo que é irrealista: uma vacina em alguns meses, estando o recorde mundial de obtenção de uma vacina em quatro anos", sublinha Miguel Castanho.
A cientista chefe da Organização Mundial de Saúde, Soumya Swaminathanaúde, veio dizer ontem que só os grupos de risco deverão ter acesso a uma vacina em 2021. Para a maioria da população só deverá ficar disponível em 2022.
A vacina da AstraZeneca é precisamente a que está na linha da frente das atuais negociações na União Europeia (UE) no sentido de adquirir uma vacina para todo o espaço da UE - é uma das que estão em fase mais avançada e já foi objeto de um contrato, a nível europeu, que contempla 300 milhões de unidades destinadas aos países da UE. Deste total, 2,3% caberão a Portugal - 6,9 milhões de vacinas. Se "vier a ser autorizada e estiver disponível" a vacina poderá ser disponibilizada num período que vai "desde o final deste ano, princípio de 2021, até meados de 2021", disse na última segunda-feira o presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, na reunião sobre a situação epidemiológica no país que voltou a juntar especialistas e decisores políticos.
Na tarde desta quarta-feira o Infarmed emitiu um comunicado sublinhando que "se aguardam as conclusões sobre a reação adversa e a sua relação com a administração da vacina". Voltando a garantir que "nenhuma das vacinas para a covid-19 poderá ser disponibilizada sem ter sido sujeita a uma avaliação de segurança e eficácia", a autoridade nacional do medicamento diz que "esta suspensão é demonstrativa do rigor" deste processo. O mesmo disse o presidente da instituição, Rui Santos IVO, durante a conferência de imprensa da DGS, garantindo que a avaliação que agora se seguirá sobre este caso de reação adversa "faz parte das boas práticas da investigação clínica".
Uma opinião partilhada por Miguel Castanho, e também pelo virologista Pedro Simas: "Isto demonstra que o sistema está a funcionar e que se pode confiar" na futura vacina que vier a ser disponibilizada. E a confiança é um dado fundamental - "a vacinação é a melhor e mais eficiente medida de saúde pública a seguir à agua potável".
Miguel Castanho considera que esta suspensão dos ensaios da vacina da AstraZeneca vai refletir-se não só nesta vacina, mas também noutras."Acho que o que vai acontecer agora é um atraso no desenvolvimento das vacinas em geral, não só porque esta era uma das mais avançadas, uma das candidatas a ser das primeiras, como pelo facto de a outra vacina que estava a par desta, a vacina russa, usar o mesmo princípio de funcionamento. E se se criam reservas em relação a esta, também se criam reservas em relação à russa."
Já quanto às restantes não se cria uma dúvida automática, acrescenta, na medida em que seguem outras fórmulas. "Mas tal como aconteceram problemas nesta, também podem acontecer nas outras."
Pedro Simas é mais otimista e diz esperar que os ensaios possam ser retomados em breve, o que significaria que foi afastada a hipótese de uma relação entre a reação adversa e a vacina. "Se se vier a demonstrar que o caso não teve nada que ver com a vacina, o atraso é insignificante. Se houver provas de que é uma reação adversa à vacina, ou uma causa provável, então aí a vacina não podia prosseguir", sublinha o epidemiologista, mas lembrando que há outras também já numa fase avançada de ensaios.
De acordo com os dados mais recentes da Organização Mundial de Saúde há atualmente 179 vacinas em desenvolvimento, das quais 34 estão em fase de avaliação clínica (ou seja, já estão a ser testadas em pessoas) e nove estão na última fase de testes, o patamar prévio antes de serem sujeitas à autorização das autoridades de saúde. Mas dizer que estão na última fase está muito longe de ser sinónimo de que a vacina está iminente.
"A fase 3 não é um proforma, é precisamente ao contrário. É quando aparecem os dados reais, quando se faz a prova dos nove", diz Miguel Castanho, explicando as três fases dos ensaios clínicos.
Na fase 1, que é uma fase preliminar, "só se testa segurança e princípio de ação" - se não há efeitos adversos graves em ninguém, sendo que o universo testado é limitado e composto por indivíduos jovens e saudáveis. Por outro lado, esta primeira fase serve também para testar se a administração da vacina levou à produção de anticorpos (o que não é um sinónimo automático de imunidade, que só será testada mais tarde).
Acontece que há muitos efeitos adversos que são graves, mas não são muito comuns. É na fase 2 e, sobretudo na 3 que esta hipótese é testada: "Só na fase 2/3 é que vamos testar essas formulações em muita gente. Se houver um efeito adverso que é relativamente raro ele aparecerá. Estatisticamente, se existir, vai aparecer." E não é totalmente improvável que isso aconteça: "Perdi a conta ao número de candidatos a vacinas contra o VIH que falharam na fase 3. Morrer na praia, infelizmente, não é uma coisa rara no desenvolvimento de medicamentos e de vacinas."
A informação de que os ensaios da vacina da Universidade de Oxford foram suspensos devido a uma reação adversa grave num voluntário, no Reino Unido, foi avançada pelo site de jornalismo de saúde Stat News, citando um porta-voz da farmacêutica segundo o qual os ensaios foram suspensos para proceder a uma "revisão dos dados de segurança". A notícia original não avança qual o tipo de reação adversa em causa - embora diga que o paciente deve recuperar -, mas o The New York Times noticiou entretanto que se trata de mielite transversa, uma doença neurológica da medula espinal que é relativamente rara. Agora, trata-se de saber se a doença está relacionada com a vacina.
Segundo o editor de saúde da BBC é a segunda vez que os ensaios clínicos desta vacina são suspensos.
Miguel Castanho fala numa "politização" em torno da questão das vacinas e repete que "muito provavelmente os prazos para a criação da vacina vão estar mais próximos dos prazos normais e não serão prazos absolutamente recorde, como nos criaram a expectativa".
"No início da pandemia falava-se numa vacina para setembro, para este mês. Entretanto esses prazos têm vindo a ser dilatados e agora estávamos no final do ano." Prazos com muito pouco de científico: "Trump até já queria a vacina para antes das eleições, como se estivéssemos a falar de algo que fosse próprio do calendário político. A questão da vacina tinha chegado a uma politização tal que se achava que o vírus devia obedecer a um calendário político."
Numa resposta às preocupações que se levantam sobre eventuais pressões de Trump para autorizar uma vacina antes das presidenciais de novembro, nove empresas que estão a trabalhar no desenvolvimento de vacinas divulgaram esta terça-feira um acordo que reflete um compromisso público de respeito pelo rigor científico. "Nós, as empresas biofarmacêuticas signatárias, assumimos o compromisso de continuar a desenvolver e a testar potenciais vacinas contra a covid-19 no respeito por elevadas normas éticas e princípios científicos rigorosos", declararam em comunicado conjunto os diretores gerais das farmacêuticas AstraZeneca, BioNTech, GlaxoSmithKline, Johnson & Johnson, Merck Sharp & Dohme, Moderna, Novavax, Pfizer e Sanofi.