Neurocirurgião de Coimbra investigado por mortes suspeitas

O inquérito foi aberto depois de uma denúncia, com base em informações e relatórios médicos do hospital universitário de Coimbra, ter chegado ao MP e à PJ. O neurocirurgião é especialista em tumores cerebrais - e há mortes entre os casos sob suspeita.

Um neurocirurgião do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) é suspeito de negligência médica. Em causa estão as mortes de vários pacientes, dois deles em janeiro passado. Um tinha 29 anos, o outro, 40. O médico em causa é chefe da equipa especializada em tumores cerebrais e foi nestas cirurgias que a sua atuação começou a deixar em alerta outros profissionais do hospital e as equipas médicas que o acompanhavam: haveria práticas desadequadas, nomeadamente em violação do legis artis (o conjunto de regras científicas e técnicas que o médico tem obrigação de conhecer).

De uma equipa com cerca de uma dezena de anestesistas, só três, dos mais antigos, continuam a apoiar as suas cirurgias. ​​​​​​O neurocirurgião (cujo nome o DN opta por não revelar, uma vez que o caso ainda está em investigação) tem 62 anos.

A situação agravou-se de tal forma que vários anestesistas especializados em neurocirurgia se têm recusado em operar com esse médico. De uma equipa com cerca de uma dezena de anestesistas, só três, dos mais antigos, continuam a apoiar estas cirurgias.

A situação ter-se-á agravado de tal forma que vários anestesistas especializados em neurocirurgia se têm recusado a operar com esse médico. E a denúncia foi feita à PGR com base na informação de outros médicos e pessoal do hospital que não conseguiram ficar em silêncio perante o agravamento da situação nos últimos dois anos. Reuniram informação e relatórios que sustentaram a queixa.

A queixa, dirigida à procuradora-geral da República (PGR), Lucília Gago, e ao diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ), Luís Neves, tem a assinatura da ex-eurodeputada Ana Gomes, que confirmou ao DN a sua intervenção pessoal. "Limitei-me a fazer chegar o caso às autoridades, não conhecendo diretamente os envolvidos, por ter achado que era grave e merecedor de investigação", justificou. Em causa poderão estar crimes de homicídio por negligência.

A Procuradoria confirma que "a denúncia foi junta a inquérito que já se encontrava a decorrer termos no Departamento de Investigação e Ação Penal de Coimbra". Em coordenação com o MP, a PJ daquela cidade está no terreno a ouvir testemunhos e a recolher informações

A Procuradoria confirma que a denúncia foi junta a um inquérito que "já se encontrava a decorrer no Departamento de Investigação e Ação Penal de Coimbra". Em coordenação com o MP, a PJ daquela cidade está no terreno a ouvir testemunhos e a recolher informações.

Questionado sobre as suspeitas, o o conselho de administração do CHUC disse não ter conhecimento, "oficialmente, da existência da situação descrita", respondeu o porta-voz daquela unidade. Ficou também sem resposta o pedido de contacto com o médico visado, impedindo o contraditório à denúncia

Alertas começaram há dois anos

A confirmarem-se, as denúncias são gravíssimas. Um dos profissionais de saúde que contribuiu para a queixa formal disse ao DN que "existe gente a morrer ou deixada com complicações muito graves após operações a tumores cerebrais no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, por negligência, numa base semanal, sem que ninguém faça nada". De acordo com outra fonte do hospital, "há jovens com tumores cerebrais operados no CHUC que morreram em circunstâncias não esclarecidas logo nas primeiras horas após a cirurgia, e sem que nenhuma explicação seja dada às famílias".

As denunciadas más práticas médicas já foram alvo de queixas internas por parte de outros neurocirurgiões, mas estes acabaram por ser afastados da equipa de tumores encefálicos. Segundo o que vem escrito na denúncia que está a ser investigada, boa parte das situações suspeitas têm sido expostas por escrito, e isto já acontece pelo menos desde 2018. As queixas foram enviadas à hierarquia do hospital, do diretor clínico à administração, mas nada mudou, e o neurocirurgião continuou a operar.

o Conselho de Administração do CHUC não tem conhecimento, oficialmente, da existência da situação descrita

Estas suspeitas são conhecidas pelos médicos e enfermeiros do serviço de neurocirurgia. "Numa certidão de óbito [passada por um elemento da equipa cirúrgica], a causa da morte apontada foi edema do pulmão. Nunca é referido o facto principal que causou a disfunção cardiorrespiratória do doente, documentada, que foi a isquemia aguda do território das duas artérias cerebelosas póstero-inferiores, que irrigam parte do tronco cerebral, e que foram inadvertidamente laqueadas durante a cirurgia por um cirurgião que, violando a legis artis, nem usou microscópio cirúrgico - quando a utilização deste equipamento é obrigatório internacionalmente nestas cirurgias", explica uma das fontes médicas.

Há testemunhos de verdadeiros horrores, documentados com fotografias e relatórios prontos a entregar às autoridades. Um deles, narrado por um dos anestesistas, descreve "a hipertensão e bradicardia que o médico provocou ao puxar o tumor agarrado ao tronco cerebral. O anestesista teve de baixar a hipertensão para salvar o doente. O doente ia morrendo na sala. Morreu depois... A anestesista e as enfermeiras da sala presenciaram tudo. Ele foi avisado, foi mandado parar e não parou. A anestesista participou do médico à chefe e a partir daí quase todos os anestesistas se recusaram a anestesiar doentes para aquele médico", sublinha uma outra fonte envolvida.

Uma das queixas sobre esta alegada má-prática foi narrada pela própria chefe de equipa de anestesistas, num e-mail enviado ao diretor de serviços, baseada nos testemunhos das anestesistas e enfermeiras presentes na sala.

A chefe de equipa de anestesistas narrou esta situação num e-mail enviado ao diretor de serviços, baseada nos testemunhos das anestesistas e enfermeiras presentes na sala. O DN contactou essa responsável, que não quis falar sobre o tema, mas não nega ter feito esta denúncia, não desmentiu.

O prolongamento da situação explica-se por questões internas, segundo as testemunhas. "Existe um clima de medo entre médicos e enfermeiros, porque têm assistido há meses a muitas situações trágicas, toda a gente sabe que foram feitas denúncias e nada acontece. Aquele doutor manda muito. Nas últimas semanas, talvez porque o médico tivesse sabido que estava a ser investigado, a pressão sobre o staff tem sido enorme, tentando fazer que não falem às autoridades ameaçando que podem perder o emprego. Era bom que a justiça pensasse nisso. Se as testemunhas não forem protegidas, nunca vai parar esta corrupção", alerta um dos médicos que falou ao DN. Entretanto, questiona, "quantos doentes com tumores cerebrais vão ter de morrer mais para que esta situação se modifique e os doentes possam ser operados com segurança e dignidade?".

Nas últimas semanas, talvez porque o médico tivesse sabido que estava a ser investigado, a pressão sobre o staff tem sido enorme, tentando fazer com que não falem às autoridades ameaçando que podem perder o emprego.

Na denúncia que foi entregue na PGR e na PJ, são elencadas outras situações que sustentam as denúncias: as biopsias e a remoção dos tumores serão parciais e raramente totais, prejudicando a sobrevida e a qualidade de vida dos doentes sobreviventes; o banco de tumores, destinado à investigação científica, não terá amostras suficientes porque as que são enviadas pelo médico são tão pequenas que mal chegam para o diagnóstico. Esta situação será mesmo conhecida pelos doentes, e boa parte deles, os que têm possibilidades económicas, têm vindo a procurar outros serviços em Lisboa e no Porto. "A lista de espera deste neurocirurgião já tem cerca de 70 doentes, o mais antigo dos quais de 2017. Só quem não tem outra hipótese é que se mantém ali", salienta uma fonte do CHUC.

Cirurgias sem avaliação externa

Os médicos lamentam que "não se faça avaliação de resultados das cirurgias, para detetar padrões e corrigir erros. Não se conhecem taxas de mortalidade [número de mortes por cirurgia] e de morbilidade [sequelas graves na sequência da cirurgia]".

O DN pediu ao CHUC para facultar o número de doentes atendidos por este neurocirurgião, número de cirurgias realizadas e respetivas taxas de mortalidade e morbilidade para, desta forma, poder aferir se estas taxas são mais ou menos elevadas do que a de outras unidades hospitalares. O CHUC não respondeu. Foi feito o mesmo pedido aos centros hospitalares do Porto, de Lisboa Central e Lisboa Norte. Os respetivos porta-vozes informaram que esses dados não estão recolhidos nem tratados estatisticamente.

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