À espera da reforma. Há quem esteja dependente dos filhos para viver
Mário Domingues de Oliveira já fez 66 anos, mas nem precisaria de lá chegar para ter direito à pensão de reforma, pois os 46 anos de descontos para a Segurança Social deveriam chegar, à partida, para lhe garantir algum descanso, depois de uma vida dura. Todos os dias espera por notícias do Centro Nacional de Pensões, como se as vagas da praia da Aguda, em Gaia (onde mora), lhas pudessem trazer.
É assim desde há um ano, quando recebeu a última prestação social do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), pois que foi na condição de desempregado que terminou uma longa vida como operário, a maior parte do tempo na construção civil. Mário começou a trabalhar aos 11 anos, logo na construção. "Era tudo ao negro, como se costuma dizer", conta ao DN, enquanto recorda que lá andou até aos 14. Nessa altura - ainda um menino -, foi "para o mar", trabalhando nos barcos de pesca até aos 17 anos. Foi nessa altura que arranjou emprego numa fábrica têxtil, onde acabaria por ficar 23 anos. "Foi até a fábrica fechar. Assim, acabei por me agarrar outra vez à construção civil." Para ganhar "mais alguma coisa do que o ordenado mínimo nacional", Mário Oliveira procurou uma empresa que fizesse trabalhos no estrangeiro. Trabalhou nas obras debaixo de temperaturas negativas, em países como a Alemanha, Holanda ou Bélgica, onde se ganhava "um bocadinho mais". "Chegava a ganhar 1500 ou 1700 euros", mas os descontos eram feitos em Portugal. Quando eram.
Na última empresa em que trabalhou, o operário da construção sabia dos atrasos no pagamento, mas só na Segurança Social viria a ter noção do valor da dívida, embora, a ele e aos colegas, os descontos sempre lhe fossem feitos. Só não chegavam à Segurança Social. "Foi quando a firma fechou que fui para o fundo de desemprego", recorda ao DN. Entretanto, já vira nos jornais a notícia a respeito das longas carreiras contributivas. Ainda assim, esperou por agosto (fazia anos a 14) e a 28 entregou toda a documentação nos serviços da Segurança Social de Espinho. Desde junho (quase há um ano, portanto), "o que me vale é a minha filha mais nova. É ela que me está a ajudar", admite o antigo operário, pai de três filhos. "Mas não é justo eu estar a sobrecarregar a minha filha, quando trabalhei tantos anos. Tenho direito à minha reforma". No simulador, Mário conseguiu perceber que iria auferir cerca de 600 euros mensais de pensão de reforma. "Não sendo muito, dava para eu viver."
"Nos últimos meses tenho-me dirigido duas vezes por mês à Segurança Social, mas apenas me dizem que tenho de aguardar", escreveu Mário Oliveira no Portal da Queixa, no dia 24 de abril passado. A reclamação é apenas uma das 266 registadas entre maio e novembro de 2018, num de total de 501 num ano (maio de 2018-maio de 2019) invocando a falta de resposta do Centro Nacional de Pensões. É um "bolo" em que os principais motivos apresentados não dizem apenas respeito ao atraso nas pensões de reforma (205 queixas) mas também aos atrasos na atribuição de pensões de sobrevivência, viuvez e alimentos (141) e ausência de esclarecimento por telefone, e-mail ou fax, por parte dos serviços (29).
Os números que foram revelados nesta semana pelo Portal da Queixa, refletem um crescimento significativo de reclamações: "as queixas dispararam 88% face ao período compreendido entre 5 de maio de 2018 e novembro de 2018. Os dois períodos em análise mantêm em comum o principal motivo das reclamações: os atrasos na atribuição das reformas", divulga o portal, numa nota de imprensa.
"No Portal da Queixa, a relação dos utilizadores, enquanto cidadãos, com os organismos públicos, adquire uma importância acrescida face à sua relação com marcas privadas, tendo em conta que devem ser estes, os organismos públicos, a prestar um serviço de acordo com os padrões de qualidade exigidos e assumirem o referencial de confiança", considera Pedro Lourenço, CEO do Portal da Queixa. "Por essa razão, têm sido inúmeras as entidades e os organismos do Estado que passaram a interagir com os cidadãos através do Portal da Queixa, possibilitando uma relação de proximidade e fomentando a literacia digital, ao mesmo tempo que demonstram publicamente a sua capacidade de resolução de problemas, garantindo a eficácia e reduzindo a inércia muitas vezes apontada como principal handicap do serviço público", sublinha aquele responsável.
Para além da subida do número de reclamações, o Portal da Queixa detetou - através dos casos reportados na plataforma - "que há pessoas a aguardar uma resposta do CNP há, praticamente, três anos". Para completar este quadro pouco abonatório para aquele organismo do Estado, há ainda outro dado: a página do CNP no Portal da Queixa reflete a falta de resposta entre a marca/serviço e o consumidor, uma vez que aquela entidade pública "apresenta um Índice de Satisfação de 9,3 em cem e apresenta uma taxa de solução e resposta de apenas 7,9%, alusiva aos últimos 12 meses".
Entre as reclamações apresentadas fica evidente a indignação pela longa espera por uma resposta ou resolução do problema, no que respeita à questão das reformas.
José David completou 60 anos a 21 de fevereiro último, 47 dos quais a trabalhar, quase sempre para a mesma entidade patronal - o conhecido hotel Albatroz, em Cascais. Tinha apenas 13 anos quando ali chegou, mal acabara de sair da escola. "Vim como mandarete. E tive a sorte de a empresa começar logo a fazer descontos, ao contrário de muitos da minha idade", relatou ao DN, ele que hoje é empregado de mesa no mesmo local - apenas com um interregno de cinco anos, o tempo em que trabalhou em Inglaterra, também na hotelaria.
No último 25 de abril, assinalou a sua liberdade com uma reclamação no Portal da Queixa: "Gostaria que alguém me informasse de quanto tempo mais é preciso para me dizer o porquê do atraso do meu pedido feito em 30/11/2017, ao abrigo das longas carreiras contributivas. Até hoje só sei que enviaram o meu processo para a convenção Portugal - Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, tendo o Processo dado entrada na convenção em 2/3/2018." José David está convicto de que "foi aí que o processo estancou". Foi lá várias vezes, mas ninguém consegue dizer-lhe a razão do atraso, nem quando será deferido.
Também José Caridade Pires conhece bem o que é viver sem resposta por parte dos serviços. Foi bancário a vida toda, primeiro na Caixa Geral de Depósitos, depois no BCP. Tem 67 anos. A 4 de janeiro de 2018, entregou nos serviços da Segurança Social de Ponte de Lima "o pedido da pensão unificada a que tenho direito. Até hoje não obtive qualquer resposta ao solicitado. Não mereço isto após tantos anos de trabalho", desabafou no Portal da Queixa.
"Ao princípio ia lá todas as semanas. Agora desisti, porque ninguém me sabe dizer nada", conta ao DN. José Caridade teve a sorte de não depender exclusivamente dos serviços em causa para sobreviver, uma vez que acordou com o banco "que fossem suportando o pagamento, e depois, quando vier a reforma, faço a restituição desses valores".
No último debate quinzenal do Parlamento, na semana passada, o primeiro-ministro voltou a ser confrontado com os atrasos no pagamento das pensões, alegadamente por causa da falta de funcionários nos serviços. António Costa - que tem vindo a ser regularmente questionado sobre o assunto, deu a mesma resposta: "há uma carência enorme de recursos humanos na Segurança Social", atirando a culpa para o anterior governo, da coligação PSD/CDS.
"Retirámos da mobilidade 600 funcionários que aí tinham sido colocados na legislatura anterior, abrimos um novo concurso para 155 técnicos e reforçámos a capacidade, quer por prestadores de serviços, quer através da mobilidade interna, quer por via do PREVPAP [Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública]", justificou, acrescentando que "a previsão que temos é que até ao final deste semestre tenhamos resolvido as situações de atraso". Daqui por um mês, portanto.
Os últimos dados revelados pelo Instituto da Segurança Social, em final de fevereiro, apontavam para 57 mil pedidos de reforma à espera de resposta. Entretanto, no ano passado a Provedoria de Justiça recebeu 920 queixas de atrasos na atribuição das pensões, um número que é três vezes mais do que as participações apresentadas em 2017. Os utentes queixavam-se de estar à espera há nove ou dez meses por uma resposta, muito acima dos 90 dias previstos. Em alguns casos, o pedido estava pendente há mais de um ano.
O DN questionou o Instituto da Segurança Social a este respeito, mas até ao momento ainda não obteve respostas.