Pandemia eurocética?

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Os títulos dos dois relatórios agora divulgados pelo European Council on Foreign Relations (ECFR) são quase autoexplicativos do impacto da pandemia na União Europeia: "Crise de confiança: como os europeus veem o seu lugar no mundo" e "Como evitar que a Alemanha se torne eurocética".

Sim, os 27 enfrentam uma crise de confiança. Sim, há uma quebra no entusiasmo dos alemães com o projeto europeu (dos franceses também, diga-se). Sim, estes dois pontos devem alarmar os que se preocupam com o futuro da UE. Sim, a situação é especialmente séria para um país como Portugal que, saído de uma ditadura de meio século e deixando para trás um império com meio milénio, apostou forte no projeto europeu para se consolidar como uma democracia próspera (foi logo em 1977 que Mário Soares submeteu o pedido de adesão à então CEE). E sim, a súbita fragilidade da UE, depois de dar a impressão de que o trauma do Brexit estava ultrapassado, surge evidente no pior dos momentos, ou seja, em vésperas de o presidente Joe Biden visitar a Europa para relançar uma aliança de democracias que sofreu com os tempos de Donald Trump à frente dos Estados Unidos.

Afirma o historiador José Eduardo Franco, numa entrevista no DN a propósito do Dia de Portugal, que o nosso país é "um país inviável que sempre se viabilizou". Sem querer parecer abusivo, quase que se poderia dizer algo parecido da UE, afinal uma união inviável que sempre se viabilizou. O problema nesta comparação é que Portugal tem quase 900 anos e uma coesão que os 27 nunca conseguiram nos seus 64 anos de história.

Nascida em 1957 do idealismo de algumas grandes figuras, mas também do pragmatismo de quem assistiu à destruição causada pela Segunda Guerra Mundial e quis evitar novos conflitos, a atual UE assenta muito na confiança entre alemães e franceses, os tradicionais inimigos no coração do continente, e na capacidade de este eixo franco-alemão criar uma dinâmica que convença outros das vantagens da união. Itália e Benelux acreditaram desde o primeiro momento, outros, como Irlanda, Portugal ou Croácia, juntaram-se depois e a verdade é que até hoje só o Reino Unido entrou para depois sair, e o Reino Unido, país insular, sempre quis estar com um pé na Europa e outro fora.

O desapontamento que os estudos do ECFR mostram da parte dos alemães é devidamente sublinhado. Mas a parte positiva é que os autores dos dois estudos não dão como definitivo o alastramento do euroceticismo alemão da periferia política para o centro nem o colapso da confiança dos alemães na UE.

Especialmente mau para o sentimento europeísta parece ter sido o sucesso relativo do Reino Unido na vacinação contra a covid-19 em comparação com a UE, ou seja com o primeiro-ministro britânico Boris Johnson, campeão do Brexit, a fazer melhor do que a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen. A compra centralizada de vacinas por Bruxelas, para evitar concorrência entre os 27 e obter melhores condições de fornecimento junto das farmacêuticas, acabou por se virar contra o idealismo europeu, e injustamente. De 2020 para 2021, nos inquéritos do ECFR, a Alemanha passou a liderar a lista de países cuja opinião pública considera que a integração europeia já foi longe de mais. Mesmo assim, estamos a falar de um terço da população. Uma maioria continua convicta da UE.

No fim de semana passado, eleições regionais na Saxónia-Anhalt resultaram na vitória dos democratas-cristãos da CDU e não num triunfo da AfD, o partido de extrema-direita. Foram boas notícias para quem acredita que a UE é vital e que uma UE sem Alemanha não faz sentido. Mas as atenções terão agora de estar todas focadas em setembro, nas legislativas alemãs.
A chanceler Angela Merkel está de saída após quatro mandatos, e cabe aos políticos do campo pró-europeu, sejam os democratas-cristãos órfãos de Merkel ou outros, ganharem o entusiasmo dos votantes para um projeto europeu que, há provas disso, tem sido uma benesse para a Alemanha. Até ver, a melhor fórmula para uma Alemanha de sucesso é uma UE de sucesso. Para Portugal, e basta pensar no importante que é o pacote de recuperação europeu, só posso dizer o mesmo.

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