As propostas de Van Dunem para combater o "terrorismo doméstico"

Quando procuradora-geral distrital de Lisboa, a atual ministra da Justiça fez uma análise do problema e propôs uma série de medidas. Vão da inclusão do termo femicídio no Código Penal à alteração das estatísticas da Justiça, passando pela intensificação do uso das normas legais em vigor. E põe a hipótese de que a violência doméstica seja o crime que mais mata em Portugal.
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"Parece-nos que o peso dos homicídios em contexto de violência doméstica (mulheres em conjugalidade e na família, menores e outros vulneráveis em coabitação, vítimas terceiras associadas às mulheres) no contexto dos homicídios dolosos simples e qualificados não andará longe dos 35% a 40% dos homicídios dolosos participados. O que nos interessaria ver demonstrado, ou infirmado, cientificamente, é se a violência doméstica extrema é ou não o fator homogéneo com mais peso nos homicídios dolosos, considerando todas as pessoas que morrem por causa do laço doméstico."

Também necessário é aferir "a perspetiva de género, ou seja, o peso dos homicídios com origem na violência contra as mulheres na conjugalidade, segundo uma ideia de domínio perdido por parte do agressor, que vitimiza não apenas as mulheres cônjuges ou ex-cônjuges e semelhantes, mas os outros que as rodeiam (...). Se a vida é o valor mais precioso, esta análise parece determinante das decisões de política criminal".

Estes parágrafos pertencem a um relatório de julho de 2015 da Procuradoria Distrital de Lisboa, assinado pela então procuradora-geral distrital Francisca van Dunem, desde novembro desse ano ministra da Justiça.

Extenso (71 páginas), aprofundado, articulado, por vezes sarcástico (como quando admite que seja por falta de habilidade que não consegue obter do Citius os dados que crê fundamentais), elenca faltas várias no sistema de recolha de informação quer do MP - para o qual advoga "a implementação de um módulo de auditoria a desenvolver no quadro dos serviços de inspeção, numa perspetiva temática [da violência doméstica e de género, entenda-se], visando a avaliação da qualidade da intervenção" - quer das estatísticas da justiça; fala das medidas legalmente previstas das quais é preciso fazer mais uso - desde logo a possibilidade que a lei estatui desde 2009 - e mesmo desde 1999, frisa, tendo em conta a lei de proteção de testemunhas - de recolher as declarações das vítimas para memória futura.

Fala também da necessidade de usar mais, no combate ao "terrorismo doméstico" (expressão da juíza desembargadora Teresa Féria, que cita), as medidas de coação previstas na lei - ou seja, aquelas que são pedidas pelo MP ao juiz de Instrução Criminal no início do processo, e cujo prazo legalmente previsto nos casos considerados de risco é de 48 a 72 horas após a queixa -, propondo desde logo "o incremento da aplicação da teleassistência [monitorização da vítima e contacto permanente com os serviços], que apenas da vítima e do MP depende", e faz "uma chamada de atenção para a necessidade de recurso à proibição de contactos, enquanto medida de coação e pena acessória, que não se confunde nem se sub-roga ou substitui por outras medidas, designadamente as que se referem a programas para agressores."

Adstrita à proibição de contactos, que está incluída naquilo que a lei denomina de "imposição de conduta", está desde 1991 - ou seja, há 28 anos - previsto o afastamento do agressor da casa de família. Uma medida cuja aplicação as associações no terreno dizem "irrisória" (o que se passa quase sempre é que são as vítimas a sair, muitas vezes para casas-abrigo, esses "campos de refugiados" da violência doméstica, como lhes chama Elisabete Brasil, da União de Mulheres Alternativa e Resposta), e em relação à qual a PGR não dispõe, ainda hoje, de dados.

Falta que foi apontada, recentemente, pelo grupo de trabalho para a definição de uma estratégia de combate à violência doméstica, nomeado em março de 2018 pela anterior procuradora-geral, Joana Marques Vidal. Em resposta ao DN, a PGR assume "a necessidade de entre as medidas a implementar estar a criação de mecanismos de comunicação internos do MP quanto à promoção e aplicação de medidas de coação".

Colocar o femicídio no Código Penal

Ainda no sentido de um melhor conhecimento da realidade, Van Dunem lamentava, em 2015, que no crime de homicídio qualificado (artigo 132.º do Código Penal) não tenha sido aditado, nas alíneas que qualificam o crime, o femicídio - "entendido como a morte de mulheres pelo facto de o serem no contexto de conjugalidade ou de intimidade." E explicava: "A alínea b) igualiza o homicídio conjugal independentemente do sexo, embora mais mulheres morram vitimizadas por homens em contexto de conjugalidade do que o inverso (ou do que em qualquer outra hipótese de conjugalidade)."

Sugeria também que, "tal como sucede com os homicídios em contexto de violência doméstica (VD), ver-se-ia hoje como boa hipótese de trabalho a agregação da distribuição de inquéritos por crimes sexuais rectius [ou seja] contra a liberdade e contra a autodeterminação sexual aos da violência doméstica. (...) Importaria estruturar a informação em termos que permitissem aferir melhor o peso e o significado do homicídio cuja raiz seja a VD e, em particular, a violência contra as mulheres; sobre o peso da violência sexual extrema no contexto da violência doméstica e as consequências jurídicas a retirar daí em termos de (re)definição dos tipos (...)." Está aqui pois Van Dunem a, mais uma vez, frisar a necessidade de encarar a violência de género de forma agregada.

Aliás, a sensibilidade do relatório para a dificuldade da apreensão do fenómeno global da VD e para a sua complexidade é notável. Comentando que o apuramento dos homicídios neste contexto não é simples, lembra que, "nalguns casos, o homicídio tem como vítima terceira pessoa e não a vítima típica (...) embora o contexto seja o da vitimização por causa da relação conjugal atual terminal ou pretérita de uma mulher: tenha-se presente o caso do homicídio da advogada que patrocinava a mulher do agressor no divórcio, ocorrido em maio de 2014 em Estremoz". E, acrescente-se, o homicídio da sogra (e da filha), no caso do Seixal.

É essencial, pois, frisava a atual ministra, "que os registos no Citius e do SGI [Sistema de Gestão de Inquéritos da PGR] sejam rigorosos em todos os parâmetros porque disso depende a correta apreensão do fenómeno, e dela, o desenvolvimento das estratégias adequadas e a alocação de proporcionais recursos humanos. Na organização das procuradorias, parece também ajustada uma associação de distribuição de inquéritos entre a VD e os homicídios consumados ou tentados participados em contexto de violência doméstica - pressupondo de resto que os inquéritos por VD sejam já concentrados em secções ou em magistrados determinados e não 'carteados' por todos os magistrados na circunscrição".

A questão da especialização dos magistrados do MP em fase de investigação é referida como muito importante e parece haver a sugestão de que deveria ser possível também na fase de julgamento.

Lei por cumprir há 20 anos

Van Dunem refere também a alta percentagem de arquivamentos neste tipo de crime. E o facto de a lei desde 1999 prever "gabinetes de atendimento e apoio à vítima, sempre que possível, nos DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal)", para acrescentar: "São normas que não conheceram concretização, o que é negativo, sobretudo para as vítimas, porque o fenómeno, complexo, não para de revelar novos aspetos, que requerem conhecimentos de especialistas. O MP tenta prover a si mesmo os conhecimentos diferenciados e, às vítimas, o apoio que as robusteça, através de parcerias que estabelece com entidades terceiras (...). Mas estas iniciativas, da maior valia, não têm a virtualidade de desonerar a administração do encargo assumido legislativamente."

A crer no comunicado conjunto "sobre homicídios em VD" que na quinta-feira governo, PGR e Comissão para a Igualdade de Género divulgaram após uma reunião "sobre questões críticas associadas aos homicídios ocorridos neste ano e à problemática da violência doméstica", esse encargo assumido há 20 anos irá enfim conhecer concretização: "Aperfeiçoar os mecanismos de proteção da vítima nas 72 horas subsequentes à apresentação de queixa nos órgãos de polícia criminal, através da criação de gabinetes de apoio às vítimas nos DIAP (...)."

Também se promete "agilizar" a recolha, tratamento e cruzamento de dados relativos ao fenómeno, e "reforçar os modelos de formação", com o respetivo financiamento, que "passarão a ser comuns à PSP, GNR, magistrados e funcionários judiciais", passando a formação a ser "mais centrada em casos concretos". Por exemplo a partir do trabalho da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, que começou a publicar relatórios em 2017 e dos quais resulta, em todos os casos analisados, que a justiça e o Estado falharam às vítimas - e se recomenda, a partir de cada caso, o que é preciso mudar na resposta. Aliás, o coordenador dessa equipa, o procurador Rui Carmo, irá agora coordenar outra, "uma equipa técnica multidisciplinar", para "concretizar estas medidas".

O que estão a dizer é "vamos cumprir a lei, porque não a estávamos a cumprir", comenta, confessando irritação, Elisabete Brasil, desde 1997, com a UMAR, a trabalhar com vítimas de VD. Daniel Cotrim, há 17 anos na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, suspira. "Finalmente vai-se avançar com medidas que estão na lei e não eram aplicadas. Porque tudo tem sido dito e apesar de tudo o que é dito e tomado como decisão não se aplica. Agora é começar a trabalhar."

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