Direitos Humanos: os voluntários que entram nas prisões para ajudar os reclusos e as suas famílias

Grupo de pessoas católicas que visita presos nas cadeias do distrito do Porto vai receber o prémio Direitos Humanos 2018, da Assembleia da República.
Publicado a
Atualizado a

"Não queremos saber qual o crime, se um recluso precisa de ajuda nós ajudamos. Não há juízo nem distinção. Seguimos o lema cristão: Deus condena o pecado mas perdoa e recupera o pecador." Estas palavras de Manuel Almeida dos Santos procuram definir a vocação dos onze voluntários que todas as semanas entram pelas quatro prisões existentes no distrito do Porto para ouvir, dar conforto e ajudar, no exterior, a resolver problemas familiares dos reclusos. São estes homens e mulheres católicos que dão corpo e alma à Obra Vicentina de Apoio ao Recluso (OVAR), uma organização fundada em 1969, prestes a fazer 50 anos, que na segunda-feira irá receber o Prémio Direitos Humanos 2018, da Assembleia da República.

A OVAR é uma obra especial das sociedades vicentinas, a única exclusivamente vocacionada para o apoio a reclusos "homens e mulheres, jovens e mais velhos, portugueses e estrangeiros, desde a pena mais leve até aos 25 anos de cadeia, de qualquer religião". Os voluntários, pelo menos uma vez por semana, visitam os quatro estabelecimentos prisionais do distrito/diocese do Porto: Custoias, Santa Cruz do Bispo (nas vertentes masculina, feminina e inimputáveis), Paços de Ferreira e Vale do Sousa. No total são 3200 reclusos.

A primeira condição para entrar como voluntário é ser vicentino. "Há uma série de características que são exigidas: deve manter periodicidade no voluntariado, deve ter uma postura low-profile, não deve querer evidenciar-se e deve ter interiorizado que irá ajudar quem precisa independentemente do que fez", resume Manuel Almeida dos Santos, presidente da direção. Depois todos têm de ser credenciados pelo bispo do Porto e terem autorização da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), após a qual recebem um cartão de acesso às cadeias.

As visitas consistem em conversas com os presos, em articulação com os assistentes religiosos (capelães) das prisões. Em regra, o grupo junta-se numa sala onde os reclusos aparecem, por livre iniciativa. "Não escolhemos, o recluso é que vem ter connosco. A palavra passa dentro da prisão e eles vão aparecendo. Falamos e identificamos os problemas, sejam do preso ou relativos à família. Cada caso é um caso. Por vezes têm necessidade de roupa ou produtos de higiene. Mas o principal é que têm alguém para falar, a nossa principal missão é ouvir. Pode parecer irrelevante, mas é o mais importante", explica o dirigente para quem "a partilha de ideias é uma luz ao fundo do túnel para suportarem com mais coragem. Se não houver motivação ficamos desumanos. É preciso haver esperança e conforto".

Se o recluso é a peça nuclear é na sua família que muitas vezes o apoio é dirigido. "Muitos dos pedidos deles são para apoio aos filhos, em material escolar, por exemplo. Mas há muito pedido para ajudar a pagar contas, seja de renda de habitação ou da luz. Por vezes são problemas difíceis, com meses de atraso, e tentamos ajudar no pagamento ou nos contactos com as entidades para a negociação da dívida. Também damos cabazes de alimentos." Outra situação comum na OVAR é possibilitar viagens de famílias que vivem fora do distrito para as visitas ao recluso. "A prisão é um grande fator de desestruturação da família."

Sem qualquer dependência do Estado, estes voluntários vivem com os donativos que chegam de conferências vicentinas e de paróquias. Sempre com a preocupação de não interferirem com o trabalho da DGRSP. No interior das prisões há muita coisa que devia mudar, assim como na reinserção social do reclusos. "São temas que iremos abordar na entrega do prémio na Assembleia", garante Manuel Almeida dos Santos.

Faltam os jovens voluntários

A atribuição do prémio vai despertar mais interesse pela causa e a OVAR precisa de sangue novo. Não há jovens no grupo, o mais novo elemento já tem mais de 40 anos. Manuel Almeida dos Santos está há 20 anos ligado a estes voluntários. Foi dirigente dirigente nacional da Amnistia e de outras organizações de direitos humanos, até que considerou ser altura de prestar mais atenção aos presos. Aos 72 anos, este engenheiro reformado mantém a energia para liderar a OVAR. Tal como Rosa Angélica, de Vila Nova de Gaia, que chegou ao grupo através de outro vicentino e 12 anos depois mantém-se ativa e empenhada. "Depois de entrar numa cadeia já não se sai da mesma forma. Podia ser um filho meu a estar ali, é que penso", diz ao DN.

O espírito do grupo de voluntários é contagiante, assegura. Lembra-se de um dia em que um dos reclusos confessou estar com frio durante uma visita. "Um dos nossos voluntários tirou a camisola que vestia para dar ao preso. Aquilo ficou-me na mente. São pequenos gestos em que a pessoa vê nos outros sensibilidade", conta a antiga funcionária de uma empresa têxtil.

Com a mesma idade, 70 anos, Conceição Cruz resistiu mais a integrar o grupo. "Na paróquia [Paranhos, no Porto] convidaram-me mas sempre pensei que não era mim, que não tinha perfil nem capacidade", recorda. Passou quase um ano até que a insistência deu frutos. "Disse que sim e fiquei rendida. Há cinco anos que nunca falho uma visita, vou sempre a Santa Cruz do Bispo."

Em 2013, a família - marido, filhas e netos - estranhou a opção. "Então agora vais visitar presos? Mas também eles aceitaram bem e agora até é o meu neto que se oferece para me levar à prisão."

A lembrança para a namorada

"Ver uma cara nova a entrar é como um bálsamo para um recluso. A maioria não tem visitas e agarram-se a nós. Muitos são jovens, o que impressiona, e senti que estava mesmo a ser útil. Fazemos pequenas coisas, na ligação ao mundo cá fora", diz a reformada. Na memória ficou um pedido que certo dia um jovem recluso lhe dirigiu. "Um rapaz falou comigo por causa do Dia dos Namorados. Contou-me que gostava muito de oferecer uma lembrança à namorada naquele dia. Aceitei logo ajudá-lo. Deu-me os contactos dela, disse o que gostava de oferecer e fui ter com ela, com a lembrança. Ele ficou muito feliz, e são estas pequenas coisas que para eles são muito importantes."

Além de Manuel, Rosa e Conceição, há mais oito pessoas na OVAR, incluindo funcionários públicos, economistas e uma voluntária com fluência em várias línguas para falar com estrangeiros. Sempre com o objetivo de dar, sem pedir retorno. "Não queremos que fiquem em dívida. A nossa ajuda é desinteressada e dentro de um espírito de fraternidade", aponta Manuel Almeida dos Santos.

A terminar, o presidente diz estar satisfeito com o Prémio Direitos Humanos, sem nunca perder a humildade. "Não é o nosso objetivo a distinção. Nem sabemos a razão da atribuição, não nos candidatámos ao prémio."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt