A história de um palácio na Arrábida que ninguém quer salvar
O amarelo desbotado das paredes dá o mote para o estado de degradação completa em que se encontra o Palácio da Comenda. A localização, num pequeno promontório da Arrábida aos pés do rio Sado, não se revelou até agora suficiente para que alguém agarrasse este palacete de veraneio do início do século passado, onde se diz que Jacqueline Kennedy veio recuperar-se da morte do marido, em 1963. E onde - isso é garantido - a irmã de Jackie, a princesa Lee Radziwill, e Truman Capote passaram uma temporada. Mas ao glamour e à história da casa, aliás apaixonante, já lá iremos. Antes disso, é preciso perceber o que está, ou não, a ser feito para a salvar.
A propriedade de 600 hectares, pertença da família Xavier de Lima desde os anos 1980, está à venda por 50 milhões de euros. Mas o tempo passa e ninguém pega nesta joia da arquitetura portuguesa assinada por Raul Lino. O acesso à propriedade é agora escancarado e quem quer passeia-se pela casa imensa, uns para verem a vista fabulosa, outros para a vandalizarem - as paredes estão grafitadas, os azulejos têm sido roubados, há buracos no chão, paredes e tetos a cair, janelas e portas partidas...
Há quase três anos que a Câmara Municipal de Setúbal iniciou o processo de requalificação do Palácio da Comenda como Monumento de Interesse Municipal. No decorrer dos trâmites legais, a autarquia remeteu o dossiê à Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). "Tendo a tutela entendido que o bem possui efetivamente um carácter de excelência, não só no panorama do conjunto da obra do arquiteto Raul Lino mas por se revelar uma obra especialmente importante enquanto gesto de atenção à natureza e à paisagem, que extravasa claramente o interesse local, deliberou pela abertura de procedimento de classificação de âmbito nacional.
Conclui, aliás, o extenso e fundamentado parecer técnico da DGPC que 'o seu desaparecimento (da casa da Quinta da Comenda), por não conseguirmos cuidá-la, seria lamentável enquanto civilização'", diz fonte do departamento de urbanismo da câmara, em resposta às questões remetidas pelo DN.
O imóvel está, pois, em vias de classificação pela DGPC desde junho do ano passado - Anúncio n.º 78/2017. Mas, nesta fase, não está decidido se será um imóvel de interesse público ou de interesse nacional. "A aferição desse valor é feita numa fase posterior do decurso do procedimento", responde, por seu turno, a Direção-Geral do Património Cultural.
E acrescenta ainda. "Este processo está a decorrer, aguardando-se o envio de mais elementos para que se possa dar continuidade à elaboração da informação a submeter a parecer da Secção do Património Arquitetónico e Arqueológico (SPAA) do Conselho Nacional de Cultura."
Enquanto não há decisões, o palácio vai-se degradando a olhos vistos, representando já uma ameaça para a segurança de quem se aventura a visitá-lo, já que muitos não se limitam a apreciar a vista nas varandas imensas sobre o rio, com os olhos postos em Troia, e decidem subir os cinco pisos do edifício.
A classificação do palácio por si só não é, contudo, suficiente para o salvar. Porque a DGPC limita-se ao reconhecimento do valor patrimonial e, não sendo dona do imóvel, não poderá fazer qualquer intervenção. Neste caso trata-se de uma propriedade privada, pertencente aos herdeiros do empresário Xavier de Lima - está à venda por 50 milhões e embora a descrição seja tentadora ainda não mudou de mãos. "O Palácio, composto de cinco pisos e 26 quartos, está potencialmente vocacionado para um projeto de hotelaria da mais alta qualidade a nível mundial", dizem os anúncios. Alguns fazem também referência à praia privada.
Pedro Vieira, do Clube da Arrábida, faz questão de sublinhar que este assunto foge ao âmbito de atuação daquele organismo, mas mesmo assim não deixa de expressar a sua opinião pessoal: "É uma dor de alma ter uma joia da arquitetura como aquela a degradar-se, quando podia acolher um hotel de charme de primeiríssima, mas tratando-se de uma propriedade privada ninguém pode fazer nada."
A história do Palácio da Comenda começa com uma paixão pelas paisagens da serra da Arrábida. Ernest Armand, nascido numa família de políticos parisienses, cedo abraçou a carreira diplomática. Em 1870 é enviado como ministro plenipotenciário em Lisboa. Durante os oito anos que permaneceu em Portugal apaixonou-se pelas paisagens da Arrábida e comprou a propriedade da Comenda a Henrique Maria Albino, que a tinha recebido em herança.
Em 1872, a propriedade estava definitivamente na posse da família Armand, responsável pela construção da casa hoje ameaçada pelo abandono. Nessa altura, já ali existia a casa velha. Mais de 20 anos depois de ter adquirido a propriedade, o conde d'Armand doou-a ao seu único filho varão, Abel Henri Georges Armand. Com cinco filhos e querendo retirar todo o partido da geografia local, o já conde, por morte do pai, decide-se pela reconstrução da casa e adapta-a à sua condição aristocrática e às necessidades impostas pelas suas relações com as melhores famílias europeias.
Decide então entregar a tarefa a Raul Lino, um jovem arquiteto que começa a distinguir-se por ter construído moradias para personalidades das artes ou da alta sociedade como Rey Colaço, Silva Gomes, Jorge O'Neill ou José Relvas. Não sem antes lhe fazer uma exigência, que o próprio Raul Lino viria a contar: "O que me surpreendeu foi o conde Armand dizer-me que não desejava que eu fizesse um só traço do projeto sem ter primeiro gozado uma noite de luar no sítio onde tencionava fazer a sua casa."
A conceituada revista de arquitetura A Construcção Moderna dedica um artigo à casa, uma construção feita "num pequeno promontório, de luxuriante vegetação, sobranceiro ao rio Sado, em Setúbal, posição extremamente pitoresca, como podem atestá-lo aqueles que tem visto as ridentes margens do belo rio, junto à linda cidade de Bocage" e onde, acrescenta, o conde pretendia "vir passar um ou dois meses em cada ano, fugindo ao burburinho de Paris, sua habitual residência, para se entregar neste remanso do ocidente às doçuras da vida campestre".
Há autores que situam cronologicamente a Casa da Comenda em 1909, mas sabe-se pela A Construcção Moderna que o projeto é de 1903. Em 1908 a obra estava concluída porque a revista A Architectura Portugueza publica artigo de Henrique das Neves intitulado "A casa do sr. conde Armand na quinta da Comenda, próximo a Setúbal". Henrique das Neves redige uma verdadeira ode à arquitetura de Lino, rejubilando com a forma como a obra tira partido da sua implantação natural. Destaca sobretudo as varandas: "Aquelas varandas!... Lá se nos foram os olhos n'elas (...) Como o olhar se me absorvia n'aquelas varandas!"
Depois da morte do pai, e após os tempos difíceis da I Guerra Mundial, a casa passa para o novo conde, Roger Ernest Armand, que mostrava preocupações pelo ordenamento do território, face à ameaça de urbanização das paisagens naturais. Havia que evitar "deformações" nessa mesma paisagem, "e no conjunto artístico das construções que, pelo seu elevado número e proporções extravagantes, têm convertido, num aglomerado incompreensível, panoramas tão belos como os da Côte d'Azur".
Um dos principais intentos, aliás, levados a cabo ainda por seu pai, foi precisamente o de preservar a riqueza da flora, através da construção de um grande parque, no qual não só mantinha as espécies existentes como mandou plantar outras novas. No final, Roger Ernst enviou a Raul Lino um cheque no valor de 1950 escudos, relativo aos honorários, agradecendo os conselhos dados pelo arquiteto e elogiando a qualidade do projeto... mas fazendo também um reparo à qualidade da madeira do chão.
A Casa da Comenda passa a ser cenário de verões repletos de glamour. Fosse na presença da própria família Armand e do círculo da melhor aristocracia europeia e portuguesa, fosse como estância de veraneio de outras famílias a quem cediam a casa, fosse a personalidades mais mediáticas, como a princesa Lee Radziwill, irmã da viúva do presidente norte-americano J. F. Kennedy, e do seu inseparável amigo Truman Capote, que no verão de 1965 ali terão passado uma temporada - lê-se no memorando da Câmara Municipal de Setúbal que sustenta o processo de classificação do palácio.
O conde Roger Ernest terá morrido no início da década de 80. No final dessa década a propriedade é adquirida por António Xavier de Lima, que introduz uma série de alterações na casa, "bastante desqualificadoras da arquitetura de Raul Lino, que havia perdurado intacta até aí", mas ainda assim facilmente identificáveis.
Depois da morte do construtor, o Palácio da Comenda fica ao abandono e é posto à venda por 50 milhões. Quem quer salvá-lo?