E se houvesse McDonald's em 1914?
A McDonald's anunciou o fecho dos mais de 800 restaurantes que tinha na Rússia e ajudou assim a cumprir-se, embora com duas semanas de atraso, a célebre Teoria dos Arcos Dourados. Foi muito falado na década de 1990 o livro O Fim da História e o Último Homem, tão otimista sobre o triunfo do liberalismo ocidental no pós-Guerra Fria que o autor, o americano Francis Fukuyama, mais tarde teve de o semirrepudiar. Mas em termos de otimismo O Lexus e a Oliveira, sobre os méritos democratizadores da globalização num mundo já sem Guerra Fria, não ficava atrás. Perante o fim da União Soviética e do Bloco Comunista, o autor, o colunista do The New York Times Thomas Friedman, explicava que à medida que o capitalismo (visto como a outra face da democracia) se expandia, as guerras praticamente tornavam-se impossíveis. Se havia McDonald's num país, argumentava, é porque este já tinha uma razoável classe média e as classes médias não gostam de guerras, logo os políticos por elas eleitos não fazem guerras.
O livro de Friedman é de 1999, mas a teoria ele tinha já proposto num artigo de jornal em 1996. Logo houve quem se apressasse a descobrir exceções, como a invasão do Panamá pelos Estados Unidos em 1989, mas como o objetivo era prender um presidente acusado de narcotráfico afinal não seria bem uma guerra, mas uma espécie de operação policial. Pior foi o bombardeamento ainda no ano do lançamento do livro da NATO sobre a Jugoslávia, pois Belgrado tinha restaurante McDonald's. A teoria podia ser muito atraente, mas era falsa.
Israel e Líbano em 2006 voltaram a desafiar a Teoria dos Arcos Dourados, assim como a Rússia e a Geórgia em 2008. E agora, a não ser que consideremos retroativamente a recente decisão da multinacional americana de sair de Moscovo e São Petersburgo e de mais umas quantas cidades, a invasão da Ucrânia pela Rússia desacreditou de vez a teoria nascida do otimismo de Friedman, natural naqueles anos de Casa Branca e Kremlin tão próximos que há uma célebre fotografia de Bill Clinton e Boris Ieltsin a rirem-se como velhos amigos.
A Rússia teria 847 McDonald's e a Ucrânia 108 quando a guerra começou a 24 de fevereiro. Se tivermos em conta as respetivas populações (142 milhões versus 43), os russos até estavam mais rendidos à fast food do que os ucranianos, tidos como mais pró-ocidentais no seu projeto de vida, daí a ambição de integrar NATO e UE. Mas, na realidade, o que se percebeu há muito é que no choque atual entre NATO e Rússia a propósito da Ucrânia não é, como há meio século, comunismo e capitalismo que se defrontam, mas sim duas esferas de influência com diferentes capacidades de atração. A maioria dos ucranianos antes desta guerra, e mais ainda antes da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, só sonhavam com o Ocidente porque este lhes prometia mais prosperidade. Afinal, o rendimento médio anual na Ucrânia era de 3725 dólares contra os 63 593 nos Estados Unidos e 32 997 na UE. Já na Rússia era de 10 126 dólares, apesar de tanto petróleo e gás.
A paz regressará e os restaurantes McMcDonald's mais rapidamente ainda, mas desta guerra, como de outras, fica uma certeza: a globalização só por si não garante a paz e o capitalismo muito menos (também o comunismo não evitou o conflito entre soviéticos e chineses). Relembro que a Primeira Guerra Mundial aconteceu numa época de grande abertura dos países ao mundo exterior e que Inglaterra e Alemanha até eram grandes parceiros comerciais. Se já houvesse restaurantes McDonald's em 1914, Londres e Berlim certamente teriam.