Aniquilar
Os dicionários sugerem "aniquilar", "arrasar" ou "dar cabo" como correspondente português a anéantir, verbo que, assim mesmo, sem maiúscula inicial, serve de título ao mais recente livro de Michel Houellebecq. Quem conhece romances anteriores do escritor francês, seja A Possibilidade de Uma Ilha ou Submissão, terá uma ideia do cinismo com que descreve a França das últimas décadas e como faz previsões sombrias sobre o futuro do país, mas a própria escolha de anéantir como título é já por si um manifesto, um manifesto de denúncia dos males da sociedade. Em alguns casos, como quando fala do desemprego crónico no norte ou dos bairros salafitas que rodeiam as grandes e médias cidades, até está sobretudo a falar dos males da sociedade francesa, mas quando o seu diagnóstico se centra em temas como as relações conjugais, a doença ou a velhice então as palavras de Houellebecq parecem adquirir um valor universal, ou pelo menos ocidental.
Recomendo a leitura de anéantir, e não tardará muito estará disponível a edição em português (tem sido a Alfaguara), pois o francês, muitas vezes considerado um escritor maldito, tem os seus fiéis por cá. Sem querer desvendar demasiado o que se pode encontrar nas mais de 600 páginas (na edição da Flammarion) direi que há ciberterrorismo e política como pano de fundo, e no que diz respeito sobretudo à política por vezes haverá que perceber as alusões do autor a personalidades que mesmo nunca nomeadas são óbvias no contexto francês.
Decadência, dirão alguns, é o verdadeiro tema de anéantir. Decadência de França, decadência da sociedade europeia, decadência da sociedade ocidental. Na realidade o que me chocou mesmo foi a forma crua como a velhice é abordada. Nomeadamente a velhice associada a doença, a velhice avançada que é muitas vezes uma espécie de antecâmara da morte. Que Houellebecq aborde o tema sem deixar de nos dar alguma esperança sobre um lado mais luminoso da vida, algo que nos dignifica como humanidade, não anula que denuncie um sistema que esconde os velhos, que os remete para hospitais ou para-hospitais onde o pessoal médico está esgotado pela falta de recursos e de meios humanos e que, mesmo as famílias mais unidas, e que até contam com alguma tranquilidade financeira, têm dificuldade em contornar. É preciso tempo, é preciso disponibilidade, é preciso atitude mental.
A idade média em França anda já acima dos 40 anos e aqueles que têm mais de 65 ultrapassam em número aqueles que têm menos de 18. Dizem as estatísticas que, dos 67 milhões de franceses, um em dez tem hoje mais de 75 anos. No resto da Europa a situação é idêntica, até em países como Portugal em que a riqueza é bem menor do que a de França. Então, se todos vamos a caminho de velhos, até Houellebecq (fará 66 anos neste mês), que vamos fazer para garantir vida condigna a todos? Como nos prepararemos para uma sociedade com maior percentagem de velhos do que nunca na história? Como adequar os recursos às necessidades daqueles que merecem o nosso respeito e um dia seremos nós? Como evitar que o egoísmo geracional, dos jovens que fecham os olhos ao sofrimento de pais e avós, traga uma situação inadmissível?
Leia o livro. É muito mais rico do que esta minha reflexão e certamente pode ser folheado sem se ficar com esta estranha sensação de preocupação com os mais velhos que me atingiu a mim. Um grande livro é certamente, por nos fazer pensar.