Amanhã, dia 10 de dezembro, no 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, o município de Lisboa irá descerrar uma placa evocativa da permanência na nossa capital da filósofa Hannah Arendt (1906-1975). Trata-se de uma iniciativa não apenas justa como muito oportuna. Dividamos o que é possível dizer neste breve espaço, primeiro nos factos e depois no seu significado..A chegada a Lisboa, no início de janeiro de 1941, de Hannah Arendt e do seu marido Heinrich Blücher, culmina um longo processo de exílio, iniciado com a detenção em Berlim pela Gestapo, logo a seguir à subida de Hitler ao poder em 1933. Libertada por falta de provas, a brilhante estudante de Filosofia, que a sua origem judaica condenava para já ao ostracismo, foge para França, onde vive nos círculos dos exilados alemães, até que o exército de Hitler vai ao seu encontro. Munidos de um passaporte de urgência para os EUA, Arendt e Blücher conseguem tomar o comboio para Lisboa, via Barcelona e Madrid, em Portbou, a mesma localidade onde o amigo e grande pensador Walter Benjamin, sem passaporte, se suicidaria. Arendt ficara em Lisboa, instalada na Rua da Sociedade Farmacêutica, n.º 6 (onde amanhã será inaugurada a placa), até à sua partida para Nova Iorque, a 10 de maio de 1941, no paquete Guiné, da Companhia Colonial de Navegação. Segundo a biógrafa Sylvie Courtine-Denamy, o casal desembarcou com 25 dólares no bolso. Nenhum dos dois sabia falar inglês, contudo a hospitalidade dos EUA de Roosevelt permitiria a esse país que alguns dos mais inspiradores estudos de filosofia política do século XX tivessem sido escritos em língua inglesa, por uma refugiada que se tornaria cidadã norte-americana..O significado desta passagem por Lisboa de Arendt é múltiplo. Portugal foi uma plataforma de salvação para milhares de fugitivos. O salazarismo, embora autoritário, sempre recusou embarcar no paganismo racial antijudaico. Talvez a memória da perseguição aos nossos sefarditas (tristemente oficializada por D. Manuel I) - tinha descapitalizado o país de capitais e inteligência na altura em que deles mais necessitava - tivesse ficado inscrita nalgum limbo comportamental coletivo. Não é coisa pequena também que Lisboa se associe à sobrevivência da autora de uma obra cuja profundidade e alcance só agora estão a ser compreendidos..Já em 1943, Arendt escreveu sobre o sentimento de abandono e a desesperança sofridos pelos refugiados: "Perdemos o nosso lar, ou seja, a familiaridade da nossa vida quotidiana. Perdemos a nossa profissão, ou seja, a segurança de termos alguma utilidade neste mundo. Perdemos a nossa língua materna, ou seja, as nossas reações naturais, a simplicidade dos gestos e a expressão espontânea dos nossos sentimentos." Em 1958, deu à estampa a magistral obra Condição Humana. Em 1968, publicaria a coletânea de estudos biográficos, com o significativo título Homens em Tempos Sombrios (as duas obras referidas estão traduzidas para português pela Relógio D"Água)..Num tempo em que os Estados, que deveriam proteger os cidadãos, os esmagam debaixo dos seus escombros, Arendt mostra-nos como o pensar pode ser um ato de resistência. Sem jamais cair num repugnante humanismo lamechas, Arendt ensinou-nos que os direitos humanos - hoje tão ameaçados por poderosos e perigosos ídolos - só têm sentido se forem acompanhados pela coragem e pela resiliência fraterna para defender e preservar a nossa dignidade..Professor universitário
Amanhã, dia 10 de dezembro, no 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, o município de Lisboa irá descerrar uma placa evocativa da permanência na nossa capital da filósofa Hannah Arendt (1906-1975). Trata-se de uma iniciativa não apenas justa como muito oportuna. Dividamos o que é possível dizer neste breve espaço, primeiro nos factos e depois no seu significado..A chegada a Lisboa, no início de janeiro de 1941, de Hannah Arendt e do seu marido Heinrich Blücher, culmina um longo processo de exílio, iniciado com a detenção em Berlim pela Gestapo, logo a seguir à subida de Hitler ao poder em 1933. Libertada por falta de provas, a brilhante estudante de Filosofia, que a sua origem judaica condenava para já ao ostracismo, foge para França, onde vive nos círculos dos exilados alemães, até que o exército de Hitler vai ao seu encontro. Munidos de um passaporte de urgência para os EUA, Arendt e Blücher conseguem tomar o comboio para Lisboa, via Barcelona e Madrid, em Portbou, a mesma localidade onde o amigo e grande pensador Walter Benjamin, sem passaporte, se suicidaria. Arendt ficara em Lisboa, instalada na Rua da Sociedade Farmacêutica, n.º 6 (onde amanhã será inaugurada a placa), até à sua partida para Nova Iorque, a 10 de maio de 1941, no paquete Guiné, da Companhia Colonial de Navegação. Segundo a biógrafa Sylvie Courtine-Denamy, o casal desembarcou com 25 dólares no bolso. Nenhum dos dois sabia falar inglês, contudo a hospitalidade dos EUA de Roosevelt permitiria a esse país que alguns dos mais inspiradores estudos de filosofia política do século XX tivessem sido escritos em língua inglesa, por uma refugiada que se tornaria cidadã norte-americana..O significado desta passagem por Lisboa de Arendt é múltiplo. Portugal foi uma plataforma de salvação para milhares de fugitivos. O salazarismo, embora autoritário, sempre recusou embarcar no paganismo racial antijudaico. Talvez a memória da perseguição aos nossos sefarditas (tristemente oficializada por D. Manuel I) - tinha descapitalizado o país de capitais e inteligência na altura em que deles mais necessitava - tivesse ficado inscrita nalgum limbo comportamental coletivo. Não é coisa pequena também que Lisboa se associe à sobrevivência da autora de uma obra cuja profundidade e alcance só agora estão a ser compreendidos..Já em 1943, Arendt escreveu sobre o sentimento de abandono e a desesperança sofridos pelos refugiados: "Perdemos o nosso lar, ou seja, a familiaridade da nossa vida quotidiana. Perdemos a nossa profissão, ou seja, a segurança de termos alguma utilidade neste mundo. Perdemos a nossa língua materna, ou seja, as nossas reações naturais, a simplicidade dos gestos e a expressão espontânea dos nossos sentimentos." Em 1958, deu à estampa a magistral obra Condição Humana. Em 1968, publicaria a coletânea de estudos biográficos, com o significativo título Homens em Tempos Sombrios (as duas obras referidas estão traduzidas para português pela Relógio D"Água)..Num tempo em que os Estados, que deveriam proteger os cidadãos, os esmagam debaixo dos seus escombros, Arendt mostra-nos como o pensar pode ser um ato de resistência. Sem jamais cair num repugnante humanismo lamechas, Arendt ensinou-nos que os direitos humanos - hoje tão ameaçados por poderosos e perigosos ídolos - só têm sentido se forem acompanhados pela coragem e pela resiliência fraterna para defender e preservar a nossa dignidade..Professor universitário