O índio de Viseu

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Visitei há dias o Museu Grão-Vasco, em Viseu. E é impossível não ficar fascinado com A Adoração dos Reis Magos, do português Vasco Fernandes (O Grão-Vasco) e do flamengo Francisco Henriques. Esta obra, datada de 1501-1506, traz a primeira referência ao Brasil na arte ocidental, pois Baltazar surge representado como um índio, reconhecível pelo toucado de penas. A sua pintura terá acontecido pouco depois do Descobrimento, por Pedro Álvares Cabral, daquela que começou por ser chamada a Terra da Vera Cruz e certamente foi reação à carta de Pedro Vaz de Caminha a D. Manuel I a descrever a população indígena como propensa a receber o cristianismo, ideia que só podia ser, dado o curto espaço de tempo lá passado pelos portugueses antes de a Armada rumar à Índia, um desejo e não uma convicção, mesmo que o Brasil seja hoje o país com mais católicos no mundo.

Creio que os portugueses nunca mais perderam o fascínio pelo Brasil. Como colónia, teve uma história atípica. A família real portuguesa chegou a lá viver, o Rio de Janeiro foi capital do Império Português e a própria independência, da qual ontem se celebraram os 200 anos, foi proclamada por um príncipe português. A escravatura, essa, demorou demasiado a ser abolida.

Nestes dois séculos como país independente, um dos cinco maiores do mundo, o Brasil nunca deixou de surpreender. Foi monarquia quando nas Américas as repúblicas eram a regra, seguindo o exemplo dos Estados Unidos. Foi terra de imigração para gente tão diversa como os italianos, os libaneses, os alemães ou os japoneses. Enviou soldados para a Europa para ajudarem a derrotar o nazismo. Esteve na criação das Nações Unidas e ter o seu presidente direito a discursar sempre em primeiro durante as sessões anuais é fraca compensação para não ser membro permanente do Conselho de Segurança, como merece pelo seu contributo para a paz. A sua Amazónia é linda e um tesouro ambiental prezado por todo o mundo. A sua cultura, popular como erudita, é imensa. A pujança da sua economia, da agroindústria, à aviação, promete muito. E todos os defeitos que tem, e as desigualdades sociais, mais a criminalidade são exemplos, não desmente que um dia, quando a sigla BRIC estava muito na moda, o editor da revista Monocle, o hiperviajado Tyler Brûlé, tenha dito que o estilo de vida mais cativante de entre essas potências emergentes que dão pelos nomes de Rússia, Índia e China era o do Brasil. O B da sigla, com o seu clima tropical, a atitude descontraída do povo, a qualidade da gastronomia, a beleza da música e muito mais.

Sim, Stefan Zweig chamou ao Brasil o país do futuro e, desde então, não falta quem cite o escritor austríaco para mostrar otimismo, acreditando na profecia, ou pessimismo, dizendo cinicamente que nas terras descobertas por Cabral (ou achadas) o futuro está sempre a ser adiado. E toca a falar mal dos políticos, de direita como de esquerda.

Parece que agora há crescente fascínio dos brasileiros por Portugal, já são a maior comunidade imigrante. É curiosamente a inversão da História, pois durante séculos, antes e depois de 1822, foram os portugueses a procurar no Brasil o Eldorado, basta pensar na família de Carmen Miranda, que a levou com meses para o Rio de Janeiro, não imaginando que a menina nascida em Várzea de Ovelha se tornaria símbolo do país de adoção. Bem, como D. Pedro, nascido em Queluz e chegado ao outro lado do Atlântico com 10 anos, bem a tempo de se apaixonar pela terra a quem daria a independência depois de um Grito do Ipiranga, que simplifica aquilo que foi um processo histórico bem mais complexo, com papéis importantes desempenhados pela imperatriz Leopoldina, por José Bonifácio, até por D. João VI, que, irritado com as Cortes Liberais, regressou contrariado a Lisboa, mas não sem antes dizer ao primogénito que, a ter de perder o Brasil, antes para ele que para os bandidos, leia-se republicanos, como o venezuelano Simon Bolívar.

Talvez por a independência ter sido de início assunto de família dos Bragança, entre um filho e um pai que se queriam, o reconhecimento foi rápido. Logo em 1825. Claro que a Inglaterra pressionou, assim como a Áustria, que preferiu defender os interesses da filha do seu imperador à ideologia da Santa Aliança. Mas a Espanha demorou meio século a reconhecer a independência do Peru, e isso serve de comparação.

O Brasil tem o seu caminho, assim como Portugal o tem. Mas a língua em comum, com diferentes sotaques é certo, aproxima. Que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa estivesse ontem ao lado do presidente Jair Bolsonaro na festa é um belo testemunho dessa proximidade e do que temos a ganhar com o fascínio mútuo. O tal índio na pintura viseense do século XVI, e os castelos medievais portugueses, que os brasileiros que nos visitam, ou que por cá fazem a sua vida, tanto apreciam. Parabéns, Brasil, país com muito passado, país com muito futuro, certamente.

Diretor-adjunto do Diário de Notícias

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