Conceição Calhau: "Os grupos de dietas no Facebook são perigosos e fora da lei"
Conceição Calhau é licenciada em Ciências da Nutrição e doutorada em Biologia Humana. Coordena a nova unidade de Lifestyle Medicine da NOVA Medical School - Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, onde é também professora de Nutrição e Metabolismo. Na Ordem dos Nutricionistas ocupa o cargo de presidente do Conselho Jurisdicional.
O ponto de partida para esta entrevista foi a publicação na revista científica The Lancet, de dois papers que juntam informação recolhida em oito estudos com mais de 15 mil pessoas que foram seguidas durante 25 anos, sobre o consumo de hidratos de carbono. As conclusões podiam não ser surpreendentes se não estivéssemos inundados de opções de dietas alimentares por vezes bastante radicais no que ao consumo de alguns alimentos diz respeito, como é o caso dos hidratos de carbono ou da proteína animal.
Conceição Calhau explica por isso que a nutrição deve ser vista e encarada - por todos, profissionais incluídos - como uma disciplina assente na evidência científica e não em ondas ou modas de dietas que fogem ao que a ciência dita como sendo a mais equilibrada forma de alimentação. Por isso falámos sobre blogues de comida, grupos de dietas no Facebook e, claro, da mais recente moda: a dieta paleo. Diz Conceição Calhau: "A dieta do Paleolítico é muito interessante, mas alguém anda a caçar os animais a correr atrás deles?"
Nunca como agora se escreveu tanto sobre dietas, alimentação, nutrição, nutricionistas, são contas de Instagram, Facebook, bloggers, livros...
Mas isso não é escrever, esse é o problema maior. Uma coisa são estes papers publicados na revista científica Lancet e que abordam cientificamente o papel dos hidratos de carbono na alimentação, outra...
Mas às tantas está tudo misturado.
É de facto um problema, porque se calhar os papers da Lancet não são tão divulgados, o que aparece mais é isso que está a dizer: blogues, Instagram, Facebook... E hoje em dia isso é uma preocupação imensa. Porque se talvez há uns 10-15 anos, as pessoas chegavam aos profissionais de saúde basicamente naives, agora já vão com preconceitos, já vão com informação que vão buscar sabe-se lá onde, que nem o próprio profissional de saúde está preparado, nem sabe do que a pessoa está a falar. E, portanto, hoje em dia, é moda escrever sobre alimentação. E é completamente perigoso. Eu tenho imensa dificuldade em acompanhar aquilo que possam ser as dietas da moda, não faço a menor ideia. Porque são blogues, é Facebook e isso é ruído. E depois as pessoas acham de facto que a dieta do vizinho é que vai fazer bem.
Estes dois papers que saíram na Lancet estão muito concentrados na questão dos hidratos de carbono. E toda a gente tem teorias sobre isto. Há pessoas que deixam completamente de os comer... Esta investigação traz alguma novidade?
Achei curioso porque publiquei este estudo no LinkedIn e um professor escreveu-me uma mensagem a perguntar: "O que é esta moda de não comer hidratos?" E eu disse, professor, isto nem é novo, porque vem mostrar o U: muito poucos hidratos de carbono faz mal, muitos hidratos de carbono faz mal. Já toda a gente sabe que em termos de alimentação tudo tem um U: a deficiência ou carência fazem mal, o excesso também faz mal. Aliás, o Paracelsus no século XV dizia que o veneno é definido pela dose - exceto o cianeto - mas de facto aqui a questão é a dose.
Porque o maior problema, o mais generalizado, é a obesidade, que é o que a maioria das pessoas hoje em dia tem. Esse problema tem que ver com a forma como nós nos alimentamos e nos movimentamos. A dieta do paleolítico é muito interessante, mas alguém anda a caçar os animais a correr atrás deles? Faz a atividade física de braços e pernas que se fazia? Ninguém. Nós temos um aparelho locomotor que não é trabalhado, o que quer dizer que se acumula. E então toda a gente agora anda a imaginar: então como é que nós podemos continuar a comer e não engordar ou perder peso? Isso não existe. Nós temos é de comer de acordo com as necessidades e temos de aumentar as necessidades, que é aumentar a massa muscular. Agora, sem movimento...
Daí a nova abordagem desta unidade universitária de lifestyle e medicina?
Todos os diagnósticos e intervenção têm de ser integrados. Vai desde a alimentação ao exercício físico como base. Depois, qualquer patologia que esteja associada, temos de integrar as especialidades médicas adequadas. Temos de ter o exercício físico aqui, porque um plano alimentar, reeducar a pessoa em termos de alimentação, sem exercício físico, dificilmente vamos conseguir alterar o metabolismo. Porque nós precisamos de ter mais massa muscular, que é o tecido que gasta mais energia. Eu quando faço uma corrida neste corredor, se tiver muito tecido adiposo ou se tiver muito músculo, o gasto é completamente diferente. Porque a célula muscular gasta imensa energia, o tecido adiposo é de reserva.
É tudo uma questão de mais ou menos calorias?
Toda a gente anda sempre muito preocupada com as calorias. De quantas calorias é que eu preciso? Depende da composição corporal: se tenho mais tecido adiposo ou se tenho mais músculo. Daí que no caso dos idosos seja difícil darmos os nutrientes todos, porque eles vão perdendo massa muscular. Dificilmente se consegue cobrir todas as necessidades de micronutrientes comendo pouco.
A questão aqui é que as pessoas depois vão atrás das modas e pensam: vou restringir em quê? Tenho três coisas com valor calórico: são os hidratos de carbono, a proteína e as gorduras. Então decidem: agora vamos tirar os hidratos de carbono para continuar a comer proteína e gordura. Este paper conclui, e bem: perante tudo isto, as pessoas fazem uma movimentação dos hidratos para a proteína e para a gordura de origem animal - que também já se sabe que está associada a todas as doenças e mais algumas. Não estou a dizer mal do alimento animal, mas daquilo que é o exagero, que é: vou comer muita proteína, ainda por cima de origem animal.
É mau, muito mau até, segundo o que se lê nestas publicações científicas...
O primeiro impacto das alterações na alimentação é sobre as bactérias intestinais. Umas alimentam-se mais de proteínas, outras de gordura, outras de hidratos. E se eu estiver uma semana a comer só gordura, só proteína, o impacto maior é para as bactérias, não é para as minhas células do fígado e do tecido adiposo. O impacto nas bactérias intestinais é imediato. Vou logo ficar com mais bactérias que se alimentam daqueles substratos. As bactérias que se alimentam mais dos hidratos de carbono, daquilo que são as fibras alimentares (não estou a contar com os hidratos muito refinados: farinha muito refinada, o arroz branco) são as bactérias boas. Isto para dizer que quando tenho muita proteína animal - e isto é uma matéria atual - primeiro proliferam as bactérias más e depois estou a dar um ingrediente que as bactérias convertem num metabolito e esse metabolito é muito associado ao risco cardiovascular. Mas estes papers não me surpreenderam absolutamente nada.
Pode concluir-se que pior do que uma dieta baixa em hidratos de carbono é uma dieta hiperproteica?
Sim. Aliás, é uma das conclusões desta publicação. Por um lado, o ideal é que 50% a 55% do valor calórico total ingerido seja de hidratos de carbono, mas não hidratos quaisquer. Ou seja, dentro desta percentagem, nunca deve haver mais de 50 gramas de açúcar. Idealmente não exceder os 25 gramas de açúcar por dia. Mas a outra conclusão que tiram é que a fonte das proteínas e das gorduras é igualmente determinante na saúde. Ou seja, quando eu tenho uma dieta low carb, mas vou às proteínas de origem vegetal em vez de recorrer à proteína animal, já não tenho tanto risco de aumento de mortalidade. O aumento da mortalidade está imediatamente associado às dietas que são baixas em hidratos de carbono e altas em alimentos de origem animal.
Isso é basicamente o paleo...
Eu dantes, nas minhas aulas, gostava muito de ir buscar ao paleo exemplos, mas agora já nem me atrevo, porque agora o paleo já é interpretado de outra forma. Quando explicamos a diferença entre o omega 3 e o omega 6 - que é uma gordura muito menos interessante que se encontra nos óleos alimentares e na carne - dizemos que no paleolítico a razão entre o consumo de um e outro era muito menor do que agora. Agora comemos por exemplo 14 vezes mais omega 6 do que omega 3, quando a razão devia ser de 2 para 1, de 3 para 1. O paleolítico é exemplo para explicar apenas que a nossa alimentação evoluiu no sentido mau.
E os cereais?
O cereal em natureza faz parte, deveria fazer parte da nossa alimentação. Quando falamos de alimentação diversificada, o que queremos dizer? Se olharmos para a roda dos alimentos e todos os dias ingerimos face à proporção, à partida estaria tudo bem. Mas se eu não variar dentro da roda, também vou ter deficiências alimentares. Muitas vezes as pessoas exageram numa só coisa: vou só comer ananás, ou vou só comer brócolos. Eu acho que isto é a maneira que as pessoas têm de continuarem a estar fixadas na comida, mas agora tentar achar que aquilo é diferente... Se as pessoas pensassem menos na comida (risos), mas está tudo focado!
Estamos a atravessar um momento de loucura com a comida...
Porque toda a gente acha que perder peso é focar na comida. Não, é comer menos. É fazer mais exercício e comer menos. Comer menos e bem, mas comer o que necessitamos. Depois fazem estes erros, estes comportamentos errados que têm impacto nas bactérias intestinais, um impacto muito irreversível, que depois exige uma estratégia para recolonizar as bactérias. Já está demonstrada a relação entre a qualidade das nossas bactérias intestinais e o risco de depressão; de obesidade já está mais que demonstrado; de risco cardiovascular; de cancro.
O comportamento alimentar leva à modificação das bactérias e há uma adaptação do metabolismo. Se eu como menos de uma coisa agora, não estou à espera que o metabolismo responda. Ele vai sendo poupado. Nós temos os genes da sobrevivência, adaptamo-nos sempre e, portanto, depois é muito difícil ir a uma consulta e conseguir resultados. Até porque as pessoas quando vão a uma consulta até já experimentaram "ene" coisas diferentes dessas dos blogues, que nem consigo imaginar, e depois chegam completamente modificadas. O metabolismo já está modificado.
O que é que isso quer dizer?
Quer dizer que quando eu estou a ingerir proteína que diz na tabela que para um grama de proteína tem quatro calorias, isso é um valor químico. Eu posso ingerir aquela proteína e ter quatro calorias e outra pessoa pode ingerir e ter duas calorias só. Porque o metabolismo, as vias metabólicas, dão prioridade para uns num sentido, para outros noutro. Aqueles valores calóricos dos rótulos são valores químicos, é uma combustão em laboratório.
Eu como 200 calorias e tem um impacto, outra pessoa come 200 calorias e tem um impacto diferente. Porque se eu tiver mais músculos, estou a gastar mais, e aquelas calorias não aparecem. E, portanto, são essas diferenças de metabolismo que as pessoas não têm noção quando nos chegam já completamente desreguladas.
Mas se calhar pode haver pessoas que estão a ler esta entrevista e pensam: eu fui a uma consulta a um nutricionista e saí de lá com um plano sem hidratos... entre os nutricionistas existem muitas correntes? As pessoas estão baralhadas sem saberem o que devem escolher...
Bom, o nutricionista, cumprindo o código deontológico, tem de exercer a sua atividade com base na evidência científica. Depois, não serão tanto os nutricionistas mas o indivíduo que têm à frente. Ou seja, de facto eu posso dizer que para um indivíduo, num determinado contexto, numa circunstância de vida, num determinado período, até é benéfico cortar os hidratos de carbono. O que estes papers mostram são as atitudes de comportamento global. Muitas vezes o que pode acontecer é fazer um reset. Vou retirar isto para depois podermos reequilibrar.
Mas como saber escolher o nutricionista?
Só essa ideia preocupa-me enquanto presidente do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Nutricionistas, que é eu já estar a ter a noção de que a opinião pública é essa: os nutricionistas dizem uma coisa... é a descredibilização da profissão.
A profusão de pessoas que de repente falam de comida, fazem um livro, abrem grupos de Facebook em que se paga para entrar em grupos de dietas... As pessoas ficam divididas e baralhadas. Faz sentido estarem 30 pessoas num grupo a receber instruções para dietas?
As coisas proliferam e é completamente impossível de controlar tudo. O meu conselho é que de que não recorram a esse género de serviços, de todo, de todo! Qual é a segurança? Acontece um dano na saúde de uma dessas pessoas, vamos reportar a quem? A pessoa tem de ter uma cédula profissional, tem de ter responsabilidade de trabalho daquilo que faz. Isso é uma coisa completamente fora da lei. E perigosa. No sentido de que nós nem sabemos quem está do outro lado.
Tudo o que é recomendação e intervenção tem de ser de acordo com um diagnóstico. Eu posso fazer uma recomendação de saúde pública que é dizer: a população em Portugal está com deficiência de iodo, que é uma das minhas preocupações e de facto está. Vamos ter uma política para iodizar... Agora, uma coisa é aquilo que é o macro, outra coisa é este indivíduo que tem esta patologia, estes fatores de risco, este estilo de vida. Se a pessoas acorda às 07.00 da manhã ou se acorda ao meio-dia, porque trabalha à noite, torna logo tudo completamente diferente. É preciso saber se caminha mais ou menos. Tudo isso tem de ser ajustado, por isso é que a intervenção é individual. Nem nunca vemos médicos a fazer isso em redes sociais: "Tem colesterol elevado então tome este medicamento." Ninguém anda em blogues a fazer estas intervenções.
A nutrição está num momento de descredibilização?
Estamos num momento em que realmente quanto mais alto se sobe maior é a queda e já estamos nessa fase de descredibilização da nutrição. No outro dia estava numa reunião sobre microbiota e sobre as análises e alguém diz: "Ah, isto é que é a sério, estas análises, não são lá como aqueles testes que são 'as tangas dos nutricionistas'."
Está a falar dos testes à intolerância alimentar? São uma tanga?
Completamente. Tem de ser um diagnóstico médico a dizer se a pessoa tem ou não intolerância à lactose, que é importante ser feito, e se tem ao glúten. A maioria das pessoas o que tem é uma série de bactérias intolerantes a uma série de coisas. Isto daqui a 3 ou 4 anos já vai ser ouvido de forma diferente.
Como é que isso se faz?
Para já temos de fazer uma identificação do microbiota em termos de análises, identificar as bactérias predominantes. E depois entra um jogo de adicionar hortofrutícolas e mais probióticos, que são as bactérias vivas, àquele organismo. Se não comermos hortofrutícolas não há milagres. Quem é que come 400 gramas de vegetais por dia?
É isso que é suposto?
Entre vegetais e fruta, sim. Vegetais, o que é que se come? Alface. É uma relvazinha, tem de se variar. Quem é que varia durante a semana dentro dos verdes? Portanto, as pessoas querem ter bactérias saudáveis não dando alimento a essas bactérias saudáveis. São bactérias que se alimentam mesmo da fibra e produzem ácidos gordos, que depois previnem o cancro do cólon, que são os responsáveis pela regulação dos nossos genes. Toda a gente sabe que tem de comer hortofrutícolas, mas toda a gente come muito pouco. Nós defendemos em termos de intervenção clínica, que o prato tem de ser preenchido assim em T: com vegetais, carne, peixe e hidratos de carbono. No Reino Unido vende-se pratos como os dos bebés, com divisórias, para ter a noção de prato e das doses, porque eles comem tudo embalado. O prato já vem com um T desenhado.
As hortofrutícolas podem comer-se de todas as maneiras? A sopa também serve?
A sopa é outra coisa, mas o prato tem de ser em T - metade do prato deve ser de hortofrutícolas, um quarto proteína, um quarto hidrato de carbono -, até para reduzir a carne e o hidrato de carbono, mas não é reduzir para 15% do valor calórico, é para reduzir de 70% a 50%, 55%.
Isso significa o quê em termos práticos?
Depende das calorias de cada um. Podemos estar a falar em 100 gramas ou 300 gramas de hidratos, que acabamos por reduzir a um elemento. Se eu comer tudo refinado, pão branco, sem fibra e sem vitaminas, é muito mais pobre, e estou a falar de hidratos de carbono na mesma.
O trigo é o cereal que mais se come, não é?
Exatamente, mas o problema não é o trigo, é o facto de as pessoas terem uma alimentação muito à base de trigo. O esparguete passou a ter um peso muito grande na semana alimentar, as crianças gostam muito de massa. É só massa e pão, é tudo trigo. Não é a onda antitrigo, mas o trigo passou a ser quase o único cereal que se come.
O que é que fazemos?
Temos de tornar isto numa discussão pública e política. Por um lado, a procura faz a oferta e se mudarmos a opinião, se formarmos a opinião pública, podemos ter mudanças. Nunca tinha visto o Ministério da Saúde com tantas medidas relativamente à alimentação, é a primeira vez que o vejo. Quase sempre o ministério vem em discursos políticos falar da alimentação, mas na prática nunca tinha visto, sobretudo o secretário de Estado, tão preocupado com as questões da alimentação: é despachos sobre a desnutrição hospitalar, sobre a demência, sobre o açúcar, as gorduras trans, sobre o sal... quem é que tinha feito medidas destas? Isto quer dizer que já começa a ser uma preocupação política. Se não temos políticas a condicionar o consumo, não é de livre escolha que as pessoas vão escolher bem. Toda a gente sabe que tem de comer menos sal.
Mas algumas dessas políticas incomodam as pessoas...
Quase todas incomodam. A questão de tirar o croquete do hospital, que tanta polémica deu... infelizmente, se não condicionamos não temos outra hipótese. E as medidas políticas não foram inovadoras, foram a cópia daquilo que é feito noutros países.
A do açúcar foi um sucesso...
Em termos hospitalares, porque eu própria era cliente, uma coisa que me revoltava é que não tinha escolha. Proibir o croquete faz-se porque se chega a uma montra e a única coisa que se vê é croquetes, rissóis, bolos... eu é que não tinha liberdade de escolha. Isso acontecia no bar da Faculdade de Medicina, uma vergonha, não se via fruta, iogurtes ou pão, era só empadas, folhados, bolos.
Mas a lei do sal...
Foi vetada. Ainda estamos com algumas dificuldades, mas vamos ver se conseguimos reduzir no pão, que é um alimento que se consome em média 180 gramas por dia em Portugal. E como é dos principais vetores do sal, pode ter um impacto importante. Outro vetor é a sopa, que é dos alimentos com mais sal. Porquê? Porque há aquela ideia de que as pessoas gostam menos de sopa, portanto têm de a tornar mais... As minhas filhas gostam imenso de sopa, mas se as levar a comer sopa fora de casa elas queixam-se que são salgadas. No hospital, se a dieta for meio sal é a sopa com sal e o resto sem sal. Por isso, muitas vezes, temos de condicionar os ambientes obesogénicos. As pessoas não têm outra hipótese. Uma das medidas da DGS foi a retirada do saleiro da mesa - que se percebe o princípio, mas devia ser ao contrário: proibir a utilização de sal na cozinha e ser o cliente a adicioná-lo, porque se a comida for salgada eu não posso fazer nada, tenho de comer assim.
Com tanta informação sobre o açúcar, como é que ainda há crianças que levam para a escola pacotes de Oreos para o lanche?
Muita gente não sabe mesmo ler rótulos e não percebe o que é pior. Não percebem a diferença entre um pão-de-leite embalado e um pão normal. As pessoas não sabem interpretar e em relação a isso ainda há muito caminho a fazer. Estão obcecadas com o valor calórico, comparam valores, mas depois se é da gordura, da proteína, de açúcares simples não sabem, e depois não sabem fazer as escolhas.
Quando vamos comprar um alimento para uma criança devemos olhar para onde?
Açúcar, gordura e sal.
E como é que temos noção do que é que é muito ou pouco?
Pois... a sinalização do semáforo ajuda nisso. A DGS tem publicado online a aplicação do semáforo. A aplicação ajuda imenso.
Passemos dos alimentos às embalagens. O plástico é agora uma grande preocupação: para o ambiente e para a saúde.
Porque as pessoas passaram a usar plástico em tudo e a usar mal. Ainda neste ano fui ao centro nacional da embalagem, a entidade que vai dar o selo de qualidade do plástico. E vim de lá ainda mais preocupada. Quem produz uma embalagem tem de cumprir a legislação, o problema é quem é que vai fazer os testes e em que condições? Por exemplo, esta garrafa de plástico, não há dúvida de que é para ter água, portanto o teste de segurança que está na lei é o teste de migração dos aditivos do plástico para a água. Deve dizer aqui algures que se deve manter isto em local fresco, da luz, calor e etc... Agora, quanto tempo é que isso está ao sol, nas paletes? Quantas vezes é que as pessoas vão utilizar a garrafa? Que testes de migração é que foram feitos nos copos de plástico que se vendem no supermercado? Posso usar para pôr mousse de chocolate, para pôr um chá quente?
Se for uma empresa séria, vai pedir os testes todos, mas isso sai muito caro e o que é que a entidade que dá o selo me disse? "A maioria das vezes eles vêm cá comprar um teste e nós passamos o certificado do teste que foi feito, mas quem faz a fiscalização não vai ver se aquela coisa vai ser usada para aqueles fins todos." As cápsulas de café, por exemplo, há azuis, amarelas, vermelhas... há marcas que pedem os testes de migração para todas as cores, há outras que pedem só para o amarelo. O certificado diz que foi à cápsula amarela, mas quem vai fiscalizar vê que tem lá um certificado e passa. Se tudo for cumprido é seguro, o problema é que as pessoas dão mau uso. E o problema é o plástico mau que é vendido nas chamadas lojas chinesas... nos testes de migração aquilo migra tudo, porque o plástico está carregado de aditivos.
E nunca se deve aquecer, não é?
Eu prefiro o princípio da precaução, que é não usar para aquecer. Eu compro uma embalagem dita marmita, vou imaginar, a empresa fez todos os testes: água quente, fria, matriz ácida, matriz alcalina... porque depois posso pôr uma sopa, uma coisa com vinagre, posso pôr ene coisas lá dentro. Como é que eu sei se os testes de migração foram feitos naquelas condições todas? Principalmente a temperatura e o PH, que são o que mais interfere no dano do material. O que o CNE diz é que eles pedem o teste de migração de água fria. Os testes são caros, para que é que vou pagar se tenho um certificado de segurança? O princípio da precaução é não usar nada de plástico para aquecer, ponto. Nem ponho nada quente dentro do plástico.
E, depois, usar o menos possível...
Sim, até porque não tenho noção na embalagem de nenhum código de como foi feito o teste ou não. Muitas vezes a própria embalagem prefere não ter essas indicações. Olho para o copo de plástico de uma máquina de café e não sei se naquele plástico foi feito o teste de quente. Agora, que as pessoas fazem xixi, e têm lá os aditivos do plástico no xixi é verdade, de onde eles vêm não sei.
Assim para resumir: é possível fazer uma lista de cinco mandamentos para cumprir as regras mínimas da boa alimentação?
Um dos mandamentos é comer menos, menos doses. Quando falamos em excesso de peso ou obesidade, se reduzirmos a dose é importante aumentar o exercício físico e cumprir o básico de fazer uma alimentação diversificada e dar mais peso aos hortofrutícolas, porque o inquérito alimentar nacional mostrou que estamos a comer muito pouco de leguminosas e muito pouco de hortofrutícolas; e muito de carne vermelha, muito mais do que é recomendado. Em termos de hidratação, a população portuguesa está a beber muito pouca água. Tendo por base os dados nacionais, temos de pensar nestes chavões: hidratação; comer menos açúcar, menos sal e menos gordura; comer doses mais pequenas; fazer mais exercício físico.
E a nível da confeção?
Comida de tacho. A comida de tacho é a confeção mediterrânica. Comermos o rancho e tudo isso é comida de tacho, é não estar a fazer muita sofisticação. Não fazer fritos nem grelhados... a maior parte das pessoas acha que o cozido e grelhado é que são saudáveis. O cozido, a não ser que seja a vapor, estamos a lavar, e por isso fica mais pobre o alimento. O grelhado vai tirar a gordura - as pessoas estão obcecadas com a gordura - se for peixe é gordura saudável e ainda criamos as risquinhas pretas que são carcinogénicas. O grelhado não é propriamente mais saudável.
Fazemos o quê? Cataplanas? Caldeiradas?
Sim, sim. Mas comida de tacho é tudo lá para dentro com refogado, ervas aromáticas, tomate, azeite. No fundo não é um cozido, porque tem molho mas é um molho saudável.
Comida a vapor é bom?
Sim, porque não estamos a adicionar nada.
E nas compras? A regra é comprar da época, mais local...
Sim, claro. Depois temos o problema dos biológicos, porque também é moda tudo o que é natural vende muito. O cianeto também é natural... o biológico, também temos de perceber de onde vem. Se vem de longe, qual é o interesse de eu estar a comer um biológico que vem da China? Não é por ser da China, é por vir de longe. Para preservar um produto para chegar aqui bonito... o único interesse do biológico é que não usaram pesticidas, mas nutricionalmente pode ter ficado mais pobre. Portanto, tenho um bocadinho de resistência ao chavão biológico. Quando vejo biológicos a granel não gosto. Sei lá se não puseram lá metade biológico ou não biológico. Daí a obrigatoriedade de estar tudo embalado.
Mas é um bom compromisso comprar produtos nacionais, da época, nos mercados?
Sim, mas devia haver uma legislação mais apertada relativamente à utilização de pesticidas porque estar a comprar as maçãs de Alcobaça e se elas tiverem muito glifosato também não interessam muito. Em relação à alimentação, estamos numa baralhação muito grande.
Para quem quer perder peso qual o conselho que dá?
Comer menos. E uma coisa importante: o jejum noturno, de 12h, entre a última vez que comeu à noite e a primeira vez que come de manhã. Aproveitar a noite para fazer o reset metabólico. O fígado tem uma capacidade de dar glicose ao sangue durante a noite e ele nunca é mobilizado, porque eu volto a comer à meia-noite e depois logo de manhã. Depois, é uma obsessão de termos de comer de três em três horas, tipo Tamagochi. As pessoas andam a comer de hora a hora, estão obcecadas de que têm de comer antes de ir para a cama e depois acordam logo que comem, não há um jejum, um período para ficarmos resistentes.
Doze horas sem comer é o ideal?
É o jejum noturno. A luz e a atividade física regulam os relógios biológicos. Há uma central que regula a fome e o sono, que está muito ligado ao olho, termos ou não luz, e que depois vai regular outros relógios periféricos. No tecido adiposo há células que têm genes que são os relógios locais, portanto não é verdade dizer "a minha barriga não sabe que horas são". Sabe. Comer uma coisa ao pequeno-almoço ou à meia-noite tem um impacto completamente diferente. Se tivermos sempre noites mal dormidas vamos ter mais risco de diabetes por exemplo, porque o impacto da glicose no sangue é diferente. Todos os processos metabólicos têm uma hora. Se estivermos de luz acesa há muita coisa que fica desregulada neste relógio.
Mas para isso tínhamos de comer às 20h00 e depois às 08h00?
O melhor é: está a escurecer e faço a minha última refeição. Depois devia ir dormir. O que é que os nossos avós faziam? As pessoas normalmente passam o dia sem comer, a fazer dieta e à noite é o desvario. Depois acumula: nós comemos para desgastar a seguir, não para repor o que gastamos. Se fizer uma aula de exercício físico e a seguir comer, o que gastei veio do músculo, mas depois vou dar o excesso para a reserva, para o tecido adiposo.
E um conselho para quem está à procura de acompanhamento profissional?
Tem de ser uma equipa multidisciplinar, tem de ser o exercício físico e a nutrição associados, portanto profissionais de saúde que consigam trabalhar em equipa. De certeza que vou perceber que para além de modificações em termos alimentares eles têm de estar associados a mais exercício físico, até porque libertam endorfinas que dão prazer e estas endorfinas, em vez de serem produzidas com a comida, são produzidas pelo exercício físico. Portanto, a longo prazo, o exercício vai reduzir o apetite. Se não houver esta associação é muito mais difícil.
Tem de se fazer um retrato da pessoa?
Exatamente, um diagnóstico.
Para si não faz sentido traçar um plano alimentar e de exercício só com uma conversa?
Não, tenho de ver análises e ver como é que a pessoa metabolicamente está. São algumas análises, depende do quadro. Tenho de perceber se tenho muito perfil proteico no sangue, se tenho resistência ou não à insulina. Só de conversa, não. A conversa vai ser importante para perceber como é que posso trabalhar os erros alimentares mais grosseiros que identifico e que posso recomendar correção. É preciso perceber se as bactérias intestinais daquela pessoa são mais das boas ou das más, traçar o perfil inflamatório, etc. É um quadro metabólico alargado para perceber de que forma vamos intervir.
Mesmo que seja uma dieta para perder cinco quilos?
Há pessoas que nem têm excesso de peso, mas podem estar metabolicamente mal. Os magros também podem estar mal. Normalmente, o peso é um indicador, mas o importante é sabermos como está o metabolismo