O rapaz que retrata idosos com uma máquina de escrever
Quando André Pereira entrou pela primeira vez numa das salas de visitas do Lar do Centro Social Paroquial dos Pousos, não sabia bem o que o esperava. Levava debaixo do braço a sua máquina de escrever (uma Remington da década de 1930) e propunha-se ir ali fazer "retratos escritos" aos utentes daquela estrutura residencial. Habituado a fazê-lo desde 2013, primeiro através da agência de publicidade onde trabalhava, em Lisboa, e depois por conta própria, descobriu nesta pandemia como poderia ficar mais rico, sem no entanto conseguir ganhar a vida com isso. Aos 35 anos, tem ainda dificuldade em se definir como escritor, mesmo quando soma já dois livros publicados, e tanta coisa escrita. Mas o trabalho que está a fazer com a terceira idade enche-lhe a vida. Tem um jeito calmo, paciente, diz que chega a estar uma hora a olhar para uma pessoa sem que ela diga nada, e ainda assim consegue retratá-la. Mas quando o DN o acompanhou para mais uma série de retratos escritos, sob a capa do projeto O Que Te Quero Dizer, o dia fez-se de muita conversa, lágrimas e sorrisos. Naquela IPSS dos arredores de Leiria faz-se o que se pode para amenizar as marcas que nove meses de pandemia têm deixado nos idosos e nos que com eles trabalham todos os dias.
"Acho que andamos sempre um bocadinho à frente, até da legislação", revela o padre Luís Morouço, quando conta a forma rápida como o lar pensou nas salas de visita que assegurassem o distanciamento, mesmo antes das regras ditadas pela Direção-Geral da Saúde. "Pensámos logo no aproveitamento de um espaço que dava para o exterior, criando ali uma divisória de vidro. Mas depois percebemos que as pessoas não se ouviam, então instalámos um equipamento de som." E foi assim, através do microfone, que André Pereira desejou os bons-dias ao senhor Manuel da Costa, o "Manuel da loja", como todos o conhecem por ali. Do lado de lá, idêntica resposta.
Vai fazer um ano perto do Natal que a vida do comerciante mudou. Já tinha vendido a loja de vinhos e mercearia que manteve no centro dos Pousos, durante 48 anos, já se dedicava a gozar algum descanso na reforma, quando inesperadamente a mulher morreu. "De repente vi-me sozinho. Depois tive uns problemas de saúde e acabei por vir passar aqui os dias, ao centro de dia", conta Manuel, que à noite regressa a casa. Enquanto desfia peripécias da vida, André faz bater cada tecla da sua máquina, escrevendo em verso (e poucas palavras) o retrato escrito de "Manuel da loja".
Noutra sala já está Mariana Stoca, 83 anos. Desta vez não é preciso amplificador de voz, porque nesta sala de visitas a divisória tem alguns orifícios que permitem passar o som. E Mariana, que veio do Alentejo ainda menina e moça para servir em casa de uns senhores de Leiria, vai fazendo algumas peças em croché. Sorri muito, mas às vezes os olhos embaciam-se de nostalgia quando fala dos sete netos e quatro bisnetos, da falta que sente das visitas. André vai captando os gestos, o olhar, as memórias, vertendo-os nas teclas da velha máquina. Mariana conta como a infância foi interrompida pelo trabalho, aos 9 anos, em Campo Maior. Como perdeu a mãe em pequena, como era a vida no seio de meia dúzia de irmãos (os sobreviventes dos 14 filhos nascidos), de um rancho onde só resta ela. De como aprendeu a ler e escrever na casa dos senhores que eram professores, que lhe prometiam um emprego de contínua e o exame da 4.ª classe, que nunca chegou; do casamento com um vestido emprestado, da viuvez prematura. Da vida atribulada. E de como, afinal, é feliz no lar.
"Sinto-me mais livre aqui. Mando em mim e naquilo que eu quero", conta Mariana, que mora no Lar do Centro Social dos Pousos há quase dez anos. Quando André termina o retrato e lho lê, está para chegar uma verdadeira comitiva. São os companheiros do lar que da última vez foram retratados e agora vêm cumprimentar o escritor. O momento é um misto de festa e emoção, separado por um centímetro de vidro.
Mais tarde, a vida no campo há de permitir outra empatia e outra proximidade: Maria Gomes e Manuel Francisco, apoiados pela IPSS no domicílio, recebem-nos no pátio da casa, no lugar da Ramalharia. Ela fala freneticamente, ele conforma-se com as mazelas da idade. Estão ambos na casa dos 80, casados há 62 anos, e são um deleite para o retrato escrito de André.
"Têm-me aparecido pessoas de todas as idades. As pessoas que mais me têm fascinado em termos de matéria-prima para a escrita são os extremos etários. Ou são as crianças ou são os idosos. As crianças têm ali um vazio e uma fome de aprender, estão ali irrequietas sem saber o que lhes espera, e isso para mim é apaixonante; e os idosos... eu olho para eles e eles têm o peso do mundo nas rugas e nos olhos. Com eles há uma carga emocional muito grande." André explica assim o fascínio de um rapaz novo por quem já está no inverno da vida. Mas há ainda outro acrescento: "Infelizmente eles não são ouvidos. A nossa cultura ocidental não dá valor aos idosos, mete-os em caixotes, tradicionalmente." E naquele lar não foi essa frieza que encontrou.
Nestes idosos encontrou "o peso do mundo, mas também a fome de contar as suas histórias e a alegria que sentem em saber que alguém os está a ouvir, alguém está a olhar apenas para eles, de uma forma interessada, em querer saber o que têm para contar, dar-lhes importância, e não como 'coitadinhos, que estão tão velhinhos'", ressalva André. Conta que sempre gostou muito de falar com as pessoas "e ir além daquilo que elas me mostram. Já vinha mais ou menos à espera de encontrar esse iceberg escondido. Mas posso sempre surpreendido". Numa das vezes em que foi ao Centro dos Pousos, encontrou uma antiga professora de Germânicas que lhe declamou um poema de Goethe. E um professor de ballet, o senhor Correia, que está quase cego. É um dos membros dessa comitiva que vem ali para o ver, sabendo que voltou. "Prazer em vê-lo, senhor Correia", saúda André. "E eu em ouvi-lo", retorque o octogenário.
"Quem tem os olhos um bocadinho embaciados olha só para eles como velhos, pessoas que já não fazem falta. Mas eu tenho descoberto o oposto. Está ali a riqueza toda, como tão bem sabe a cultura oriental, e a africana também. Viveram e sofreram muito mais do que nós. Um mundo inteiro que nós não conhecemos, pela ilusão da falta de tempo. Porque hoje só conseguimos ter 15 segundos para uma história do Instagram, e se não cabe ali não perguntamos mais. Só que eles têm uma vida inteira para contar", acrescenta André Pereira.
A paixão pela escrita manifestou-se cedo, talvez desde sempre. E foi também desde cedo que nasceu o fascínio pela máquina de escrever, "o elemento-base da escrita", como considera.
André trabalhava numa agência de publicidade em Lisboa, já tinha sido jornalista. "Um dia fomos contactados pela Sonae para fazer uma ativação de marca na Feira do Livro, em 2013. Eu pensei em fazer uma caricatura, só que em vez de ser desenhada seria escrita: juntar o conceito do caricaturista-pintor com a escrita, e sugeri essa ideia. Inicialmente pensava em fazer o retrato com figuras públicas." Lembrou-se de nomes como Miguel Esteves Cardoso ou Rui Zink, mascarados, a fazer esse número. "Mas era muito caro. Então pensou em fazer com outros escritores ou guionistas, mas continuava a ser muito caro. E então não lhe restou alternativa: foi ele mesmo. "Na verdade era o que queria fazer, mas tinha muito pouco à-vontade", num registo de timidez que se mantém.
Afinal correu bem. Tão bem que as duas horas planeadas para cada dia daqueles fins de semana da feira cresceram para oito, rapidamente. Tão bem que a ideia ganhou o Prémio de Inovação da Sonae. Mas estava sempre sujeito aos eventos, e então decidiu aventurar-se sozinho, ele e a máquina de escrever. Em feiras, pedidos individuais, escolas, e agora lares. Ao mesmo tempo, foi fazendo parcerias com várias editoras e livrarias.
André não consegue ainda hoje (d)escrever-se a si próprio, descrever o que faz. "Tenho muita dificuldade em me caracterizar", diz ao DN. E ainda não arrisca dizer que é escritor. Mesmo que já tenha escrito dois livros - um de contos e um romance, e outros três livros como escritor-fantasma. Por estes dias anda envolvido no lançamento de uma nova edição desse primeiro romance, Lágrima, que retrata a dicotomia de reações entre um pai e uma mãe que perdem um filho.
"Mas ser escritor é uma coisa tão séria e tão importante, que eu não acho que tenha essa importância", sublinha. Se pintasse, talvez se denominasse facilmente pintor. "Mas olho para o Saramago ou para o Fernando Pessoa, para Mia Couto... e não consigo olhar para mim assim. Mesmo que escreva e ganhe dinheiro com a escrita."
Através do projeto O Que Te Quero Dizer, a ideia dos retratos escritos foi crescendo nos últimos sete anos. André Pereira diz que há nele "uma vertente egoísta, porque adoro escrever e dá-me um gozo enorme fazê-lo. Adoro sentir e fazer sentir as pessoas. E quando lhes leio os retratos, por exemplo, sinto que lhes fui tocar ali num nervo que não era ativado há muito tempo: as emoções". E é ele que se emociona quando percebe que os idosos que retratou há um mês hoje vieram revê-lo.
"Maquilham-se para me reverem, e isso para mim é a melhor sensação", conclui, sabendo bem que "não é possível viver disto". Gostava, mas sabe que "nenhuma arte gere essa riqueza". Ainda assim, sonhador como é, acredita que é preciso "alimentar as pessoas com o invisível, porque é o invisível que nos tem feito, por exemplo, ultrapassar esta fase do confinamento. Vivemos de ouvir música, de ler um livro, beber um vinho, é isso que nos vai mantendo a sanidade". A ele, a pandemia devolveu-lhe a aldeia onde nasceu, a Marrazes bairrista que até José Mário Branco cantou.
E aproximou-o dos mais velhos, como Mariana, que retratou assim, com a velha Remington comprada no OLX.
Toda a gente diz que é bonita,
Toda a gente
E toda a gente tem razão
Tem uma forma de falar quase aflita,
Intermitente, bonita,
Como a forma do coração.
E quietinha, arranjada,
Sem aparelho para ouvir,
Treme da mão enrugada,
Olha para mim,
Não diz nada,
E eu só consigo sorrir.