Uma verdade sobre o Brasil

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Escrever sobre o Brasil, ainda mais no dia em que o seu tremendo processo eleitoral entra na fase decisiva, implica reconhecer com humildade a sabedoria da frase do grande músico carioca Tom Jobim (1927-1994): "O Brasil não é para principiantes." O Brasil é vasto, complexo, incomensurável perante qualquer discurso redutor, mas acredito que existe uma verdade irrefutável, que embora afirme essa complexidade nos liberta do risco da completa desorientação e da total opacidade. Ela foi afirmada pela figura mais extraordinária da história comum que Portugal e Brasil viveram até 1822. Estou a referir-me a José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), um homem que foi e fez tudo na vida, sempre de forma única e extraordinária: sábio brilhante em várias ciências, académico reputado em toda a Europa, pioneiro da ecologia, soldado de Portugal contra as invasões napoleónicas (depois de a corte se ter exilado no Rio), visionário de um novo país próspero, justo e sustentável, de tal modo que o brasileiro comum, mesmo sem o ter lido, nele reconhece o luminoso "patriarca da independência". Foi este espírito livre que, em 1823, numa intervenção perante a Assembleia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil apresentou um esboço legislativo com 32 artigos, em que essa verdade fundamental do Brasil era enunciada. Bonifácio, que foi também um dos pais da metalurgia moderna, considerava que o problema maior da nova nação residia na sua extrema heterogeneidade, que se não fosse temperada por um projeto político comum trazia consigo o risco de o Brasil "se esfarelar ao pequeno toque de qualquer convulsão política". O desafio consistia em construir "em poucas gerações uma nação homogénea". Para tal importaria "combinar sabiamente tantos elementos discordantes e contrários e em amalgamar [sublinhado do autor] tantos metais diversos para que saia um todo homogéneo e compacto."
Em 1823, a urgência seria a proibição do comércio de escravos, como primeiro passo para a completa abolição da escravatura. Para José Bonifácio, a igualdade natural dos homens era um axioma e ninguém poderia ser deixado de fora - nem negros nem índios - dessa sólida alma fundida de um povo brasileiro a forjar pelo trabalho, pela disciplina, pela educação e o saber. No seu libelo contra a escravatura, Bonifácio enfatiza a miséria moral que esse crime generaliza nas elites das sociedades que a praticam. E tem toda a razão. Ainda hoje, nos EUA, as zonas mais retrógradas são aquelas onde a escravatura só foi extirpada a golpes de sabre. O Brasil intoxicou-se na escravatura até 1888, e tal como o patriarca previra, as suas elites mesquinhas e moralmente incompetentes voltaram costas ao futuro. O Brasil é hoje, quando se prepara o grande combate entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, uma liga metálica imperfeita à beira do ponto de fratura. A clivagem entre pobres e ricos não é apenas social, é física e cultural. A violência - traduzida em serem brasileiras 17 das 50 cidades mais mortíferas do mundo - torna infernal a vida quotidiana em grandes urbes como o Rio. Contudo, a verdade fundamental de José Bonifácio ajuda a ver claro: entre Haddad e Bolsonaro, o Brasil vai escolher entre prosseguir, mesmo com erros e imperfeições, a tortuosa construção de uma nação onde todos possam caber ou sucumbir na vertigem do ódio e da irracionalidade violenta. Os EUA irão sobreviver a Trump. Não é seguro que o Brasil pudesse resistir à rédea solta das pulsões suicidas com Bolsonaro no Palácio do Planalto.

Professor universitário

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