Vem aí o carteiro. Traz o correio e uma palavra amiga para quem vive só

O vermelho e o saco a tiracolo, ou a arrastar pelas ruas, identificam logo um carteiro. Também o passo apressado e o toque à campainha para alguém abrir a porta. Não levam "cartas de amor", mas avisos para pagar e publicidade. E muitas encomendas, cada vez mais com a pandemia. Nunca param, e até gostavam de um agradecimento público. Já da população, não sentem falta do carinho.
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Luís Miguel Rodrigues é carteiro há 23 anos, tinha 20 quando entrou para a empresa. Distribui nas zonas rurais de Palmela, faz 200 quilómetros por dia a percorrer aldeias e lugarejos. Chama pelo nome quem lá vive, sabe o que fazem e do que se queixam. É a única visita para muitos, o dinheiro que chega da reforma, a palavra amiga de quem vive isolado. Entristece-se como se fossem família quando deixam de aparecer à porta. Orgulha-se da profissão, sobretudo quando traz coisas boas no saco. "Sinto uma enorme satisfação quando levo boas notícias às pessoas, acredita?" Sentimentos idênticos a outros carteiros com quem o DN falou, embora haja menos contacto na cidade do que no campo, onde mais sentem que um "bom dia" faz toda a diferença.

"Sou carteiro com muito orgulho", apresenta-se Luís Miguel Rodrigues, o Miguel para quem recebe correspondência, sobretudo avisos e encomendas. Hoje em dia, são poucas "as cartas de amor", percebe-se pelo envelope e pelo peso, menos de 20 gramas. E isso acontece em todo o lado.

Destaquedestaque4342 carteiros

Os CTT têm 4342 carteiros, representando 35% do total de funcionários (12 472). Comemoraram nesta sexta-feira 500 anos do início da distribuição de correio. A pé, de moto, de carrinha ou de bicicleta, o ritmo de um carteiro é sempre acelerado... quando podem. "Nas zonas rurais temos de parar e dar atenção aos idosos, porque há muitos que passam a semana toda sozinhos e só veem o carteiro. Tento ir a todo o lado, digo isto de coração", explica Miguel.

Há muita gente que depende do que lhes leva todos os meses para sobreviver. "Nesta altura do mês [início] é quando começam a sair as reformazitas. Há pessoas que se levantam logo de manhã e ficam à espera de ver a moto ou a carrinha do carteiro. E, nós, com muita pena, temos de dizer: 'Oh, vizinha, ainda não veio hoje'." São os velhos que o esperam. "Os jovens abalam todos para as grandes cidades. E, com a pandemia, quem vivia sozinho mais isolado ficou. Quem é que lá vai a casa? O carteiro e as senhoras do apoio domiciliário."

Luís Miguel trabalhava num hipermercado antes de concorrer aos CTT. Tinha amigos da escola carteiros, fez as férias de alguns "por brincadeira". Gostou do trabalho, o ordenado e as condições eram bons, não hesitou em mudar de ramo quando apareceu a oportunidade. Entrou para o centro de distribuição de Palmela, para distribuir o correio na Quinta do Anjo.

Fez os testes de admissão e ficou no atendimento ao balcão, mais tarde passou para o "atendimento ao domicílio". Corria tudo num posto móvel para levar o serviço a quem não tinha condições para se deslocar às estações dos CTT. Vendia selos, cobrava a água e a luz, pagava reformas, recebia e entregava cartas. "Velhotes que deixaram de andar, que vivem em montes isolados e não têm transporte, alguns acamados. Não sabem ler nem escrever e põem o dedo em vez de uma assinatura. Isto é ajudar a população", descreve. Doze anos, até que a empresa acabou com o serviço, que agenciou ao comércio local, como papelarias e cafés.

Luís Miguel voltou à distribuição, está há oito anos em Pegões (há vários Pegões). Distribui correio de carrinha numa zona rural alargada, faz em média 200 quilómetros por dia. Mora perto de Setúbal, levanta-se antes das 05.00 para entrar às 06.00 e terminar às 15.30, mas diz que trabalha mais horas. Fazia outros giros de moto, mas a pandemia fez que circule apenas de carrinha, com máscara, viseira, luvas e desinfetante. Os carteiros nunca pararam.

"Custava-me ver na comunicação social a agradecerem a médicos, enfermeiros, pessoal de saúde, polícia, bombeiros, nunca agradeceram aos carteiros. Nós estivemos sempre na linha da frente. Com o estado de emergência, as pessoas ficaram em casa, compravam os bens e os medicamentos pela internet ou por telefone e nós entregávamos. E continuaram a receber o dinheiro da reforma, serviço que estava sujeito a uma taxa mas que os CTT deixaram de cobrar com a pandemia."

O trabalho aumentou bastante nestes oito meses. Luís Miguel passou a entregar produtos farmacêuticos, roupa, perfumes e calçado, a juntar aos "comprimidos da vida melhor", como chama ao Calcitrin, que é promovido na televisão e que tem sucesso entre os idosos. "Temos de distribuir o trabalho a mais entre todos. Se não fizermos trabalho de equipa, não funciona."

Os CTT estão com um volume de tráfego de época alta desde o início da pandemia, refere a assessoria da empresa. "Registou-se um crescimento muito relevante nos setores de alimentação, desporto e lazer, educação e cultura e eletrónica de consumo. Atualmente já sentimos que a nossa atividade está num novo normal, mas a procura pelo e-commerce [online] cresceu bastante devido à alteração dos hábitos de consumo dos portugueses." Acrescentam que a maior parte do tráfego continua a ser correio ("387,3 milhões de objetos no final de setembro") mas as encomendas aumentaram 34,5% em relação a 2019. Este tráfego totalizou os 17,8 milhões de objetos.

Os clientes agradecem e há muitos que o demonstram aos carteiros. Há quem insista em pagar comida ou bebida quando se cruzam com o Luís Miguel no café da terra. Ele recorda-se de uma senhora que foi tão insistente que lá aceitou um bolo. Não gosta de o fazer. "As pessoas têm dificuldades, a gente faz as ações de boa vontade, não estou a fazer à espera de uma recompensa."
A mesma senhora por quem chorou quando lhe disseram que tinha morrido.

Chegaram a dar-lhe galos vivos. Hoje em dia já não acontece, mas ainda recebe "um presentinho" pelo Natal.

Tem muitas histórias para contar, a maioria felizes - até as que começam mal. "Quando passou do escudo para o euro, ao fazer o pagamento de um vale, paguei a dobrar. Não conhecia bem as notas e dei notas de 20 euros como se fossem de dez. No dia seguinte, a pessoa veio devolver o dinheiro, e disse: 'Ó Miguel, parece que há aqui dinheiro a mais.' Entregou-me um envelope com tudo que eu lhe tinha dado. Dinheiro que me tinha faltado no dia anterior e que eu tive de repor. Gente séria", elogia.

O aumento das encomendas também se reflete diariamente no trabalho de Cátia Marques, 27 anos, que há seis resolveu ser carteira. É das mais novas nos CTT, empresa onde a grande maioria são homens (30% de mulheres em toda a estrutura).

Cátia Marques tinha 21 anos e procurava um emprego de verão. Fez um contrato de seis meses com os CTT e, depois, "foi uma bola de neve". Trabalhou em várias áreas, o que gosta mais é de andar de porta em porta a entregar correspondência. "Identifico-me mais com o contacto com o público, gosto do carinho dos clientes, andar na rua, ver pessoas novas, todos os dias é diferente."

Chega diariamente ao Centro de Distribuição de Alvalade às 07.00. Divide o correio pelos nomes das ruas, as cartas, encomendas e registos, mete tudo em sacos vermelhos com rodas (sacos de depósito), que leva numa carrinha até à sua zona de distribuição. Num dia médio, são dois sacos de depósito, nos de maior tráfego são três. Estes são os dias em que há revistas, as contas da água e da luz, a publicidade dos hipermercados e as reformas. Os volumes maiores seguem diretamente na carrinha para o destinatário. "No início da pandemia entreguei muitos artigos de ginásio, barras, pesos, agora menos", conta Cátia. Outro aumento que notou bastante foi das encomendas de café, uma tendência que se mantém.

Deixa um dos sacos num estabelecimento comercial local e, com o outro, inicia as entregas, por volta das 09.30. O segundo saco de depósito fica no Talho das Escadinhas, que Manuel Alves, 66 anos, abriu há 27 anos e que, agora, gere com o filho Filipe Alves, 35. Comerciantes que são uma grande ajuda para quem anda a distribuir correio. Também lá fica o que não conseguiram entregar se for muito volumoso e que irá na carrinha. "Isto é para os ajudar, têm tanta coisa para entregar", diz o pai.

Acompanhámos a Cátia Marques no giro A312, que começa na Rua de Ponta Delgada e acaba na Rua Pascoal de Melo, em Arroios, Lisboa. "Bom dia." "Correio." "Pode abrir a porta?" "Como está?" Frases que vai dizendo à medida que faz a distribuição, sempre em passo acelerado, entrando em vilas, muitas escondidas dos transeuntes.

Alzira Esteves, 85 anos, recebe a correspondência à janela. Cátia pergunta como está, Alzira responde: "Estou bem, ainda por cima, está uma manhã de sol." Perguntamos o que receberam, responde o marido, António Esteves, 83 anos: "Só recebemos cartas para pagar."

Rua acima, rua abaixo, cada vez com mais caixas de correio no exterior, mas ainda são muitos os prédios onde isso não acontece. É preciso tocar à campainha para alguém abrir a porta. Não se pode deixar correio por debaixo da porta. "Isso é abandono de correspondência, temos de entregar a carta em mão. Se não está ninguém, leva-se e tenta-se entregar no dia seguinte", explica Cátia Marques.

Mas há exceções, como num prédio onde pedem para pôr a correspondência debaixo da porta. Nas zonas empresariais têm mais correspondência para entregar, mas, em contrapartida, distribuem tudo, o que não acontece nas áreas residenciais. E quando a pessoa não está para receber uma carta ou encomenda registada, há que preencher um registo para o cliente a levantar na estação dos correios. Mais trabalho.

Isso não impede Cátia de preferir as ruas habitadas, por causa "do carinho" dos residentes, muitos idosos e a quem já tem ajudado a levar as compras a casa e que lhe ficam muito reconhecidos. Recorda um episódio na Estrada dos Arneiros, em Benfica, o bairro onde gosta mais de exercer a profissão. "Levava o Calcitrin a uma senhora todos os meses. Um dia diz-me: 'A menina está com cara de fome.' Foi lá dentro e voltou com uma cerveja e um croquete, tive de comer." Muita gente lhe oferece água nos dias de calor. Também já lhe deram chapéus e gabardinas nos dias de chuva.

E há dias em que acontecem acasos felizes, como quando a acompanhámos no giro. "Vou entregar a carta registada, subo as escadas, quem é que está à porta? A minha professora de História do 5.º ano", diz. Reconheceram-se logo, apesar da máscara que a Cátia usa devido à covid-19.

A volta acaba às 13.40, tempo para almoçar e voltar ao centro de distribuição de Alvalade. No regresso, há um trabalho similar ao da partida, desta vez, com a separação das encomendas e do correio postal que não conseguiu entregar, os registos que deixou para irem à estação dos CTT. Trabalho que deverá estar terminado às 16.00.

Raul Abreu, 62 anos, tem 40 de experiência, trabalha no centro de distribuição do Prior Velho. Nascido e criado em Lisboa, entrou para os quadros da empresa aos 22 anos, a 2 de abril de 1982. Seguiu as pisadas do pai, que fazia distribuição na Amadora. Ganhou ali o gosto pela profissão. "Ajudava o meu pai a fazer o giro e, um dia, o chefe perguntou-lhe se eu queria fazer um contrato. Assinei por seis meses, como boletineiro, entregava os telegramas. Agora praticamente não existe, é tudo por e-mail, é muito mais prático", admite Raul.

Um mês depois, concorreu para carteiro, o que conseguiu depois de estagiar durante um mês e passar numa prova escrita. Trabalha na área de Sacavém, onde tem feito vários giros: Sacavém, Portela, Catujal, Camarate, Bobadela, São João da Talha, a pé ou de moto. Conhece tudo na zona, que agora faz a pé por "já não ter idade para a moto".

Muita coisa mudou desde que começou. "As cartas são muito menos, agora é mais à base de encomendas, muita coisa vinda da China. O tráfego baixou nas cartas e aumentou nas encomendas e MS [encomendas urgentes]", explica Raul Abreu. Considera que também aumentou a responsabilidade: "Há mais cobranças, trabalha-se com mais dinheiro. Quando comecei entregávamos sobretudo correspondência. Apesar de ser do tempo em que cobrávamos os recibos dos telefones, era a parte dos TLP que fazia parte da empresa."

Faz a distribuição no Catujal, uma freguesia da capital portuguesa com muito campo. No fundo, tem um giro semirrural. O que lhe agrada mais. "Galinha de campo não quer capoeira", comenta, acrescentando:"Apesar de ter nascido em Lisboa, na Mouraria, gosto de andar ao ar livre e do convívio com as pessoas, embora agora seja mais complicado por causa da covid-19. É um serviço que faço com gosto."

Encontra sobretudo idosos e que lhe pedem favores, como ler a correspondência, o que não é permitido. "São pessoas com 70 e mais anos, não sabem ler, vivem sozinhas, privadas de tudo, tenho de as ajudar. Já têm pedido para levar uma carta para a estação, pagar a luz ou a água. Faço-o porque gosto e, também, para credibilizar a empresa, que me tem dado valor." E há quem lhe queira agradecer não só com palavras.

Raul Abreu entra no centro de distribuição às 07.00, faz o tratamento da correspondência, a revisão dos registos e das encomendas, às 09.30 vai para a rua. Regressa por volta das 15.00/15.30 para prestar contas. Pelo caminho, ou mesmo no final, almoça, às vezes, uma sanduíche e um café, "conforme está o serviço".

Em 40 anos de profissão já lhe aconteceu muita coisa, como pedirem-lhe, por exemplo, para ir à mercearia. "A senhora pensava que eu podia fazer esse serviço. Achei graça, disse que não estava previsto, mas fiz e ela ficou sensibilizada", explica. Também lhe aconteceu desaparecer uma encomenda, que se provou ter sido na própria estação dos correios. Ou ser assaltado, uma vez.

Está à beira da reforma pelos anos de descontos para a Segurança Social. Começou a descontar aos 14, dois anos depois de ter trabalhado numa oficina. Mas o primeiro emprego foi aos 10, numa mercearia. Quando entrou para os CTT, significava "um emprego estável e de futuro". No momento da saída, leva "o reconhecimento da empresa" e a "tristeza por deixar os colegas de serviço e as chefias". Concluindo: "Levo uma vida de que gosto."

César Santos pertence ao centro de distribuição de Rio Maior, tem 51 anos, é carteiro há 24. "Andava nas obras, com máquinas, houve a crise no setor e um amigo perguntou-me se queria fazer um contrato nos CTT. Vim para a empresa numa altura em que havia muita gente a reformar-se. E acabei por entrar para o quadro", recorda.

Andou praticamente 20 anos de moto a distribuir correspondência pelas aldeias, mas teve um acidente de trabalho e, atualmente, faz serviço nos CTT Expresso.

Garante que a pandemia triplicou o volume de entregas, as quais passaram a fazer em condições muito especiais. "Em março, parecia a Segunda Guerra Mundial. Toda a gente fugia de nós, queriam as encomendas mas não queriam que chegássemos perto. Depois, a empresa deixou de exigir a assinatura para provar que recebiam as coisas, deixávamos as encomendas à entrada de casa, afastávamo-nos e esperávamos que as viessem buscar. E vínhamos embora."

Serviço triplicado e que sente nunca mais ter baixado, o que obrigou a empresa a meter mais carros e mais duas pessoas para o CTT Expresso em Rio Maior. Também aqui, passaram a entregar roupa, ténis, aparelhos de ginásio, café e produtos de hipermercado. Mantém-se ainda a grande quantidade de café, roupa e ténis, produtos que as pessoas encomendam online.

Entre as histórias da sua profissão que poderia contar, lembra-se de um cerco que dois cães lhe fizeram. "Foi numa casa muito retirada da aldeia, normalmente as pessoas nunca lá estavam, tinham lá os cães. Nesse dia, surgiram de repente e estive duas horas à espera de que aparecesse alguém, não me deixavam sair, metido entre o muro e a moto. Não havia casas perto e, por fim, lá apareceu um vizinho a quem tinham mais respeito e consegui sair. Se não, tinha de esperar pelos donos. Os cães não são amigos dos carteiros, é por causa das motos e do capacete", assegura.

Não são episódios destes que lhe tiram o gosto pela profissão. "Nunca estamos no mesmo sítio, nunca estamos quietos, e eu sou desse género, não gosto de estar parado no mesmo sítio. Neste momento faço cem quilómetros por dia, grande parte da cidade e em sete ou oito aldeias à volta", conta. Entra às 07.30 e sai às 13.00, para voltar para um segundo turno, entre as 16.00 e as 18.30.

Gosta de trabalhar no meio rural, sente que é diferente a interação com as populações. Aliás, há cinco anos que deixou de trabalhar nas aldeias onde fazia a distribuição de moto e há quem ainda mande por um colega uma garrafinha e, até, chocolates. "Na cidade é mais difícil, não há tanto contacto nem as pessoas se afeiçoam tanto à gente. Nas aldeias, praticamente só nós e o padeiro é que passamos por lá. Há terras onde andei 16 anos. É muito tempo."

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