Portugal proíbe a blasfémia?

O Código Penal prevê "crimes contra os sentimentos religiosos". Juristas dividem-se: trata-se de criminalizar a blasfémia e, portanto, impedir a crítica às religiões, o que não tem cabimento num Estado laico, ou defender a liberdade religiosa? E essa defesa não é já garantida noutros tipos criminais?
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Pode ser crime em Portugal "dizer a um católico que a sua religião é um chorrilho de asneiras", ou "a uma pessoa que levava o andor da Nossa Senhora que aquilo que levava era um pedaço de madeira ou de barro"? E "zombar num jornal do ministério da Santíssima Trindade pelo facto de tal mistério ser uma monstruosidade", ou "publicar na imprensa uma caricatura do Papa com um preservativo suspenso no nariz"?

Para o juiz-conselheiro José Joaquim Almeida Lopes, que desempenhou funções no Supremo Tribunal Administrativo, a resposta é sim. Escreveu-o em 1998 no artigo "Os crimes contra a liberdade religiosa no direito penal português" (publicado na Revista Lusíada). Jubilado em 2008, o magistrado, que faz atualmente parte da direção da Associação dos Canonistas e do Tribunal Diocesano do Porto, considera ali que todas as ações descritas integram o tipo criminal descrito no número 1 do artigo 251.º do Código Penal ("Ultraje por motivo de crença religiosa").

Com pena de prisão até um ano, o tipo criminal em causa, descrito como o ato de "quem publicamente ofender outra pessoa ou dela escarnecer em razão da sua crença ou função religiosa, por forma adequada a perturbar a paz pública", ou "profanar lugar ou objeto de culto ou de veneração religiosa, por forma adequada a perturbar a paz pública", está na parte do Código Penal dos "crimes contra a vida em sociedade", na secção "crimes contra os sentimentos religiosos".
São dois apenas esses crimes, os descritos no artigo 251.º e no artigo 252.º. Este último, cuja epígrafe é "impedimento, perturbação ou ultraje a ato de culto", tem a mesma moldura penal que o 251.º, e criminaliza duas ações distintas: a de quem "por meio de violência ou de ameaça com mal importante impedir ou perturbar o exercício legítimo do culto de religião", e de quem "publicamente vilipendiar ato de culto de religião ou dele escarnecer".

Na interpretação de Almeida Lopes, estes crimes penalizam a blasfémia, definida como "dito ímpio ou insultante contra o que se considera sagrado" ou "palavra ou atitude injuriosa contra uma divindade ou religião". Uma interpretação que não só colide frontalmente com a natureza laica do Estado português como parece não ter tendência a vingar na justiça nacional - veja-se um dos exemplos que indica, o da caricatura do então papa com um preservativo no nariz, obra do cartunista António. Dada à estampa no Expresso em 1992, a propósito das declarações de João Paulo II, em África, condenando o uso deste método anticoncecional no combate contra a pandemia do VIH/sida, causou muita polémica à época. Mas não terá ocorrido a alguém apresentar queixa contra o cartunista e o jornal; tão-pouco o Ministério Público tomou a iniciativa - podia fazê-lo, já que se trata de um crime que não depende de queixa - de agir.

O facto de não ter existido processo no caso de António, porém, não significa que a lei não possa ser interpretada nos termos em que o citado juiz-conselheiro o faz. Foi aliás o que sucedeu no Brasil nos anos de 1990. O Código Penal daquele país inclui também crimes contra os sentimentos religiosos, no seu artigo 208.º, que tem uma redação muito semelhante aos seus congéneres portugueses - "Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso".

Intocado desde 1940, este artigo - a justificar a inclusão do país na lista dos 71 países, incluindo 17 europeus (Itália, Grécia, Finlândia, Espanha, Polónia, Irlanda, Liechtenstein, San Marino, Suíça, Rússia, Montenegro, Chipre, Alemanha, Andorra, Áustria, assim como Dinamarca e Malta, os quais após a conclusão do relatório revogaram as ditas leis; estranhamente Portugal não consta), que o relatório de 2017 Measuring the world's blasphemy laws/Examinando as leis de blasfémia no mundo, da Comissão dos EUA sobre a liberdade religiosa no mundo , indica como penalizando a blasfémia com prisão - foi o fundamento para a condenação de um ministro do culto evangélico Igreja Universal do Reino de Deus que em 1995, numa emissão televisiva, insultou e pontapeou uma imagem da Nossa Senhora da Aparecida, denominada pelos católicos santa padroeira do Brasil.
O então pastor comprou uma imagem especificamente para o efeito, dizendo durante o programa: "Nós estamos mostrando às pessoas que isso aqui não funciona, isso aqui não é santo coisa nenhuma (...) 500 reais - cinco salários mínimos - custa no supermercado essa imagem, e tem gente que compra! Agora se você quiser uma santa mais barata, você encontra até por 100 [reais] (...) Será que Deus, o Criador do universo, pode ser comparado a um boneco desse, tão feio, tão horrível, tão desgraçado!?"

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O episódio, que ficou conhecido como "chute na santa", valer-lhe-ia uma sentença de dois anos e dois meses de prisão pelos crimes de vilipêndio a imagem e discriminação religiosa. Muito mais recente, e também brasileiro, é o caso do especial de Natal de 2019 do programa humorístico Porta dos Fundos, na cadeia de streaming Netflix, alvo de vários processos (pelo menos sete) e providências cautelares por parte de igrejas e grupos religiosos com a acusação de "ofender a fé cristã e promover o discurso de ódio contra a religião".

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No sketch de 46 minutos, Jesus é homossexual e apresenta o namorado à família. Também na Assembleia Legislativa de São Paulo, deputados tentaram criar uma comissão parlamentar de inquérito para averiguar se estava em causa "crime contra o sentimento religioso", e o acesso ao programa foi interditado por decisão de um juiz do Rio de Janeiro, que acolheu os argumentos das providências cautelares de grupos religiosos, considerando que "a manutenção da exibição do vídeo humorístico possuiria a capacidade de provocar danos mais graves e irreparáveis do que a suspensão de sua veiculação", fundamentando-se no entendimento de que "o direito às liberdades de expressão, imprensa e artística (...) não poderiam servir de respaldo para toda e qualquer manifestação, quando há dúvidas sobre se tratar de crítica, debate ou achincalhe". Esta suspensão foi levantada esta semana por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. As ações principais ainda não foram julgadas.

Em Portugal também tivemos um sketch humorístico - sobre a última ceia, no programa Herman Zap, em 1996 - a dar azo a um inquérito do Provedor de Justiça suscitado por duas queixas, protestos da Igreja Católica e de Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PSD, que considerou estar perante "mensagens ofensivas". Mas nenhum processo criminal.

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O que do ponto de vista da penalista Inês Ferreira Leite é óbvio: "Não são aceitáveis incriminações de atos puramente simbólicos de pensamento crítico. No que respeita ao artigo 251.º, numa interpretação conforme à Constituição, só cabem os atos de ódio religioso que são adequados a perturbar a paz pública e incitar ao ódio. Mas a incriminação desse tipo de atos já está assegurada no artigo 240.º ["Discriminação e incitamento ao ódio e à violência", que prevê pena de seis meses a cinco anos para quem difamar, injuriar ou ameaçar "pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica"]. E das duas uma, ou estamos perante um crime de ódio religioso previsto no artigo 240.º ou trata-se de um mero conflito interpessoal que não tem aquela conotação do ódio a todos os cristãos, e aí entra o crime de injúria ou o de difamação".

Por este motivo, para esta professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro do Conselho Superior de Magistratura, a condenação do ministro brasileiro por ter pontapeado a imagem da santa não faz sentido - como não faz sentido existirem "crimes contra os sentimentos religiosos". "Os sentimentos religiosos não têm consagração constitucional; impor o respeito pela religião é inaceitável num Estado laico. Quando muito poder-se-ia falar de crimes contra a liberdade religiosa."

Ferreira Leite afirma de resto que no artigo 252.º se está perante uma norma flagrantemente inconstitucional: "Quando se pune "vilipendiar e escarnecer de ato de culto" está-se a punir a blasfémia. Não se pode dizer que a liberdade religiosa de alguém seja beliscada por alguém escarnecer ou mesmo vilipendiar um ato de culto."

A jurista acha pois que os dois artigos em causa ou são redundantes - os crimes que penalizam estão previstos noutras áreas do CP - ou inconstitucionais.

O constitucionalista Vital Moreira tem uma visão diferente: "Estes artigos têm de ter uma interpretação restritiva; não existe um crime de blasfémia, claramente, nem na interpretação nem na formulação, porque um Estado laico não defende valores religiosos só por serem valores religiosos - o ultraje à religião não é crime, os artigos não podem ser interpretados como pondo em causa o direito de opinião e de crítica da religião."

Questionado sobre se faz sentido estabelecer uma proteção acrescida à religião em detrimento de outras ideologias ou adesões como as políticas ou até desportivas, Vital Moreira assente: "Como constitucionalista não tenho dúvidas em reconhecer à religião uma densidade e profundidade pessoal maior do que a outras posições doutrinárias ou ideológicas - as pessoas terão um direito acrescido em ver protegida a sua religião." Não é o mesmo, acha, insultar uma pessoa pelas suas ideias políticas ou vilipendiar ou escarnecer de uma ideologia política e fazê-lo no que respeita à religião. "A diferença é a dimensão densamente subjetiva e mais profunda da crença religiosa."

Outro constitucionalista, Jorge Bacelar Gouveia, concorre: "O Código Penal protege mais a crença no sagrado. Valoriza mais a ideologia relacionada com o sagrado do que as ideias políticas ou desportivas." Admite que há "uma assimetria na penalização de atentados às crenças das pessoas", chamando a atenção para um aspeto curioso: "Do ponto de vista técnico, a formulação destes artigos do Código Penal tem problemas, porque por exemplo o budismo é uma espiritualidade, não uma religião."

Quanto a casos concretos, não tem dúvidas de que o sketch da Porta dos Fundos não deve ser visto como crime, nem a caricatura de João Paulo II com o preservativo no nariz: "Não se trata de ofender uma pessoa; essa é talvez a chave da questão, uma coisa é a liberdade de expressão no sentido discursivo ou abstrato, outra é imputar algo a alguém. Quem não é crente deve ser livre de poder criticar a religião ou determinados aspetos da religião ou posições religiosas. Outra coisa é escarnecer ou vilipendiar."

Mas que seria o crime de escarnecer e vilipendiar de ato de culto, e de que modo se distinguiria de crítica? Bacelar Gouveia tem dificuldade em responder. Mas chama a atenção para o facto de que a proteção das reuniões, manifestações ou comícios políticos está prevista numa lei de 1974 (pré-constitucional) e não no Código Penal. A qual, curiosamente, em contradição com a ideia deste constitucionalista e de Vital Moreira de que a lei portuguesa valoriza e protege mais a ideologia religiosa que a política, remete para o crime de sabotagem (artigo 329.º do CP), punido com pena muito superior à prevista nos crimes contra os sentimentos religiosos: de três a dez anos.

"É preciso ver", contextualiza Inês Ferreira Leite, "que o Código Penal em vigor corresponde em grande parte a um anteprojecto do Eduardo Correia, elaborado em 1962 mas nunca aprovado. Chegámos pois a 1975 com um código de 1852; havia uma urgência enorme em ter um novo. O que aconteceu foi que se entregou esse anteprojecto ao penalista Jorge Figueiredo Dias para ver o que manter e o que retirar. Os artigos 251.º e 252.º são uma herança de um Estado que não era laico".

E de um tempo em que as questões relacionadas com a religião eram vistas como dizendo respeito exclusivamente àquela que fora até 1911 a "religião do reino", e que após a emergência do Estado Novo passara a ser de novo oficial (senão na Constituição, pelo menos de facto): a católica. O legislador de 1982 (data da aprovação do novo CP) estava muito longe de imaginar polémicas com caricaturas de Maomé - como a que ocorreu em 2006, devido à publicação de várias, consideradas muito ofensivas pelo chamado "mundo muçulmano", num jornal dinamarquês - ou um massacre como o de janeiro de 2015 na redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo, cujo alegado motivo foram caricaturas do profeta islâmico. E da decapitação, em outubro deste ano, de um professor da mesma nacionalidade na sequência de ter, numa aula da disciplina de Cidadania e visando a discussão do direito à liberdade de expressão, mostrado algumas dessas caricaturas aos seus alunos, que incluíam muçulmanos - o que foi visto pelo pai de uma estudante como "desrespeito pela religião", levando-o a encetar uma campanha contra o docente que culminou no seu homicídio por um jovem de 18 anos.

Neste contexto, os crimes contra os sentimentos religiosos previstos no Código Penal deverão talvez ser alvo de maior atenção e debate (aliás em dezembro de 2019 foi feita no parlamento europeu uma pergunta à Comissão Europeia especificamente sobre as "leis contra a blasfémia e o insulto religioso" em vigor em vários estados-membros, que tem na eurodeputada do BE Marisa Matias uma das subscritoras) . Sobretudo quando, como vimos no início deste texto, há magistrados, como José Joaquim Almeida Lopes e seus congéneres brasileiros, a defender que deve ser criminalizado "meter a ridículo a crença ou função religiosa" assim como o ato de "achincalhar, zombar, ridicularizar ou fazer mofa da crença."

Algo que o Comité dos Direitos Humanos da ONU já considerou estar em contravenção com a Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos: "A proibição da exibição de falta de respeito por um areligião ou outro sistema de crença , incluindo leis de blasfémia, é incompatível com a Convenção (...). Não é admissível que essas leis discriminem a favor ou contra certas religiões ou sistemas de crença, e os seus aderentes em detrimento de outros, ou crenças religiosas sobre não crenças. Nem é admissível que tais proibições sejam usadas para prevenir ou punir a crítica de líderes religiosos ou o comentário sobre doutrina religiosa ou dogmas de fé" (comentário do Comité sobre liberdade de opinião e expressão, setembro de 2011).

E algo em que claramente encaixa o jornal Charlie Hebdo e muita outra produção humorística e não só - um perigo para o qual o advogado Francisco Teixeira da Mota alertava em dois artigos escritos em 2006 para o Público. Lembrando o crime de "falta de respeito à religião" do Código Penal de 1852, o jurista diz que os atuais "crimes contra os sentimentos religiosos" são a descendência daquele, concluindo: "A situação dos cartunistas dinamarqueses se tivesse ocorrido em Portugal poderia, sem muita surpresa, terminar com a sua condenação num qualquer tribunal nacional." Mesmo se considera que esse entendimento não seria conforme à Constituição nem à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, admite-o como possível: afinal, ferir os "sentimentos religiosos" é crime.

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