"A Turquia e o Azerbaijão vão controlar os gasodutos que vão do Cáspio para a Europa e, assim, a Europa fica dependente da Turquia"

Presidente da Arménia falou por Skype ao DN a partir do seu gabinete em Erevan e responsabiliza a Turquia pelo conflito com o Azerbaijão no Nagorno-Karabakh. Entrevista a <strong>Armen Sarkissian</strong> foi proposta pela Associação de Amizade Portugal-Arménia.
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Senhor presidente, pode explicar aos leitores portugueses a origem histórica deste conflito entre arménios e azeris?
Os arménios vivem no território chamado Planalto Arménio desde há milhares de anos e desde há milhares de anos que Artsakh ou Nagorno-Karabakh faz parte da Arménia histórica. Os arménios em Nagorno-Karabakh, como todos os arménios a viverem na sua pátria, tornaram-se cristãos no ano 301, foi o primeiro país no mundo. Claro que os nossos vizinhos, o Azerbaijão e a Turquia, vieram para esta área séculos depois mas isso é a história. Depois o povo de Nagorno-Karabakh sofreu ataques de Gengis Khan, de Timur e dos persas; foi invadido pelo Império Russo, pelo Império Otomano, mas conseguiu sempre manter a sua identidade arménia e fazer parte da Arménia sob diferentes formas. Diferentes zonas do território de Nagorno-Karabakh foram governadas por diferentes líderes, reis locais, etc. Foi só quando a União Soviética tomou conta da zona, que a liderança soviética, mais especificamente o senhor José Estaline, decidiu dar este território ao Azerbaijão. Não foi só este, mas também outro território de origem histórica arménia foi dado ao Azerbaijão. Houve uma ilusão nos líderes soviéticos, de que tinham um novo vizinho, a Turquia, e não o Império Otomano, e que esta nova Turquia dirigida por um novo líder - Atatürk - era um novo parceiro para os bolcheviques. Por causa disso, várias regiões de Primeira República Arménia foram oferecidas à Turquia e esta parte da Arménia histórica foi dada ao Azerbaijão. Assim, durante 70 anos - e apenas 70 anos - Nagorno-Karabakh fez parte da República Socialista Soviética do Azerbaijão. Mas mesmo durante o domínio soviético, com o enorme poder do governo soberano soviético, o Azerbaijão não mostrou qualquer sinal de tolerância, o Azerbaijão não mostrou qualquer de disposição de viver com os arménios e, então, começou a limpeza. Só para dar alguns números: nos anos 1920 a população de Nagorno-Karabakh era de 250 mil pessoas, das quais 95% eram arménias. Em 1989-1990, quando o povo de Nagorno-Karabakh ainda fazia parte da União Soviética, de acordo com a Constituição Soviética, disse que queria viver fora do Azerbaijão, declarou que queria ser independente - a Constituição Soviética permitia isso - a reação do lado azeri foi pogroms em Baku e noutros lugares, criando um milhão de refugiados arménios, dos quais alguns vieram para a Arménia, outros para a Europa, outros para a Rússia, outros para o Canadá, mas a população de Nagorno-Karabakh já tinha diminuído. O Azerbaijão sob domínio soviético já tinha demonstrado que não queria viver com os arménios e a política era expulsá-los. Como resultado destes pogroms, o Azerbaijão impôs o exército em vez de negociar com as pessoas e o primeiro conflito começou em 1989-1990, tendo um cessar-fogo em 1994, no dia 12 de maio. Durante a primeira guerra de Nagorno-Karabakh tudo foi muito difícil. Os arménios ganharam mais território, o cessar-fogo foi assinado e nas negociações sobre o futuro de Nagorno-Karabakh foi criada a República de Artsakh com a anuência da América, França e Rússia. Assim durante 26 anos houve negociações, diria que, em muitos aspetos, com bastante sucesso porque foram negociadas muitas questões, mas no dia 27 de setembro deste ano, o Azerbaijão decidiu, em conjunto com a Turquia, começar a guerra contra Nagorno-Karabakh.

Porquê regressar à guerra neste momento específico? Vê razões para tal?
Eles estavam a preparar-se para esta guerra desde há vários anos e isso mostra que não queriam avançar com as conversações de paz. Quando digo "eles", quero dizer "eles". É o Azerbaijão de um lado e a República de Artsakh do outro lado. Houve um cessar-fogo assinados pelas três partes - Azerbaijão, Arménia e Nagorno-Karabakh, esta última foi, por isso, reconhecida como uma parte. Existiu um reconhecimento da independência de Nagorno-Karabakh. Então o que aconteceu? Devido ao fator turco - à pressão da Turquia - os azeris começaram a guerra. Claro que o timing foi perfeito para eles, foi decidido, escolhido a dedo, porque é o momento em que a América está ocupada com as eleições; a Europa está ocupada com a covid, as incertezas económicas, o Brexit, etc.; a Rússia também está ocupada com a Bielorrússia, a Ucrânia, a Geórgia, entre muitas outras coisas. Assim, toda a gente está ocupada e este é um novo mundo onde não há uma única superpotência que possa, basicamente, obrigar a nada. Claro que as instituições internacionais, a começar pela ONU e até a NATO e a União Europeia não têm o poder ou não o exercem neste tipo de circunstâncias. Resultado: a guerra continua. Se não fosse a Turquia havia planos para um novo cessar-fogo dentro de uma semana ou duas, como já aconteceu antes, mas com a presença da Turquia, dos drones turcos, da força aérea turca, dos generais turcos a comandarem a luta... A Turquia levou para a zona alguns milhares de terroristas vindos da Síria, da Líbia, é este o cenário.

Como é que a Arménia apoia o Nagorno-Karabakh neste conflito? É o mesmo povo, embora oficialmente sejam países diferentes, mas estão juntos na guerra.
É uma coisa muito natural. Não há um exército oficial arménio em Nagorno-Karabakh, mas há tantos voluntários que querem combater, e há muitos arménios da diáspora que querem vir combater. Uma das principais razões para isso, não é só para proteger o nosso território histórico, os nossos irmãos, e para salvaguardar o nosso património, as nossas igrejas, a nossa história, mas também porque o envolvimento turco aqui torna tudo muito mais complexo e a cada arménio da Argentina a Portugal, da Califórnia a Moscovo, de França a Beirute, isto lembra o genocídio arménio pelo Império Otomano há 105 anos - as mesmas falsas razões, o mesmo objetivo. É um clássico, expulsar arménios do seu território histórico.

Como lida com as acusações de crimes de guerra a ambos os lados?
Eu penso que não tenho de lidar com o facto de nós estarmos dentro da guerra, correto? Em primeiro lugar, a guerra foi começada pelo Azerbaijão e, quando a começaram, começaram por atacar a capital de Nagorno-Karabakh, atacaram a cidade onde vivem os cidadãos civis, com grandes perdas de vidas de crianças e pessoas idosas. Na verdade, penso que quando falamos de crimes de guerra é uma coisa muito grave e tenho a certeza de que os casos contra o Azerbaijão serão levados a instituições e tribunais internacionais. O Azerbaijão foi o lado que começou a guerra. Os arménios não tinham qualquer intenção de começar uma guerra, não tinham. Foi o lado azeri que começou a guerra. Claro que cada vez que há um acordo de cessar-fogo em Moscovo, em Genebra, em Washington, os azeris são os primeiros a quebra imediatamente o cessar-fogo. O nosso país responde imediatamente nas relações públicas. Depois há a Turquia, o que é espantoso, que fala em nome do Azerbaijão. Isso mostra que não há qualquer intenção de paz do lado deles e que não há qualquer restrição nos meios deles quando usam armamento turco, soldados turcos, drones turcos, artilharia turca, tudo. Não têm qualquer limite, portanto pensar que eles não vão bombardear, que não vão cometer crimes reconhecidos internacionalmente, não é realista. No caso de bombardeamentos arménios em cidades do Azerbaijão, há uma diferença porque em Nagorno-Karabakh todas as unidades militares estão localizadas fora das povoações civis. Sabe porquê? Por uma razão simples, porque as pessoas estão ali para defender as suas casas e quando defendemos a nossa casa não pomos a arma lá dentro, levamo-la para fora. O Azerbaijão ataca alvos civis como aldeias e cidades, sabendo que não há unidades militares aí. No caso do Azerbaijão, há centros de drones, artilharia pesada e mísseis, localizados de facto na cidade. Em certos casos, o exército defensivo de Nagorno-Karabakh também atinge alvos civis, o que é uma infelicidade porque cada perda de uma vida civil, não importa de que lado, é uma grande tragédia. É uma grande tragédia, mas as minhas palavras são bastante simples, eu digo ao lado azeri: parem a guerra, comecem um cessar-fogo e voltem à mesa das negociações, porque não acredito que haja uma solução para qualquer conflito numa guerra. No fim, acaba sempre na mesa das negociações, seja um grande conflito ou um pequeno conflito, não importa.

Qual poderá ser a importância da Rússia na ajuda para se alcançarem novas negociações e a paz?
Penso que a Rússia é o Estado mais importante aqui por várias razões. Em primeiro lugar, a Rússia é um dos participantes do grupo da paz; segundo, a Rússia tem boas relações tanto com o Azerbaijão como com a Arménia. A Rússia está nesta área há séculos, conhece a Arménia muito bem, conhece o Azerbaijão muito bem. A Rússia tem também uma espécie de relação de amor-ódio com a Turquia, mas tem relações com a Turquia. Assim, a Rússia é o país mais bem posicionado para ser o mediador e para mediar um cessar-fogo. Porque é que o outro lado não quer um cessar-fogo? Penso que a razão é muito simples: porque não é um conflito entre o povo de Nagorno-Karabakh ou República de Artsakh e o Azerbaijão, é agora um conflito entre os dois mais a Turquia. A Turquia não está interessada em acabar com esta guerra porque tem a sua própria agenda em relação a este problema. O interesse turco nesta guerra é diferente, mas eles vieram para dar uma lição ao Azerbaijão: Se vocês não conseguem resolver o problema, nós resolvemo-lo por vocês. Eles vieram para dar outra lição aos arménios: Não tentem andar pelo mundo para implementar a agenda do reconhecimento do genocídio. Mas nós já o conseguimos, temos o reconhecimento do genocídio em muitos, muitos lugares, desde o Senado americano ao Parlamento alemão, em França, na Rússia, em muitos países. E há outra lição, que também é para a Europa, é para vocês, especialmente para a Europa do Sul, e cuja mensagem é bastante simples: a Turquia e o Azerbaijão vão controlar os gasodutos que vão do Cáspio para a Europa e, assim, a Europa fica dependente da Turquia. Além disso, têm ainda outra cartada que é a dos refugiados - existem quatro milhões de refugiados nas fronteiras da Europa - e esses refugiados são também da Síria. A Turquia criou este conflito, mas o problema agora é que a Síria é a criadora dos refugiados e a Turquia está a fazer bullying à Europa dizendo que vai mandá-los para aí. A Europa paga um preço alto à Turquia para acolher os refugiados - seis mil milhões que, obviamente não são usados para melhorar a vida dos refugiados, que são mais uma ferramenta nas mãos da Turquia. E há ainda os terroristas - sete mil terroristas que são treinados pela Turquia e usados na Síria, na Líbia e agora no Nagorno-Karabakh. Os terroristas do Afeganistão acabaram na Europa e em Nova Iorque. Lembra-se do 11 de Setembro? Portanto, o domínio turco é absolutamente negativo aqui. É por isso que há uma forte ligação entre a ameaça turca e a diáspora arménia, porque a maior parte da diáspora arménia foi criada depois do genocídio. Assim, apesar de já terem passado quatro ou cinco gerações, os arménios sentem a dor do genocídio e nunca o irão esquecer. É essa a razão para cada arménio no mundo, não importa onde esteja, apoiar a Arménia e Nagorno-Karabakh, porque não quer que aconteça outro genocídio.

Qual é a importância da diáspora arménia para tornar este conflito conhecido?
É muito importante que as comunidades arménias em todo o mundo passem a mensagem a todos os nossos amigos. E a mensagem é: temos de parar o Azerbaijão e impedi-lo de invadir Nagorno-Karabakh e temos de impedir a Turquia de tentar cometer outro genocídio e temos de impedir a Turquia de se tornar basicamente outra grande ameaça e um grande risco tanto político como económico para a Europa. Assim, as pessoas em Nagorno-Karabakh estão a lutar por vocês também.

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