À política o que é da justiça

Não consigo imaginar maior demissão das sagradas funções de cuidar do interesse público, pela parte da nossa classe política, do que o que se tem passado com o estado da nossa justiça.
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Não consigo imaginar expressão mais estúpida do que "à política o que é da política e à justiça o que é da justiça". Se for proferida por um político ou por alguém ligado à justiça deixa de ser apenas estúpido para se tornar perigoso.

Em primeiro lugar, não há, numa democracia liberal, nada mais importante do que o poder judicial. O funcionamento da justiça define, em larguíssima medida, a democracia e o Estado de direito. Não sobram assim dúvidas sobre o interesse para a comunidade do bom funcionamento da justiça.

Em segundo, parece que também é necessário lembrar aos políticos que representam o povo. Não são só eles, os juízes e demais magistrados também o representam. Simplesmente, os políticos têm um mandato direto e cumpre-lhes assegurar o bom funcionamento da justiça. São eles que têm de julgar se a justiça funciona bem ou não e agir em conformidade. É para isso que serve a política.

Não desconheço a maneira de deturpar estes conceitos, que são na sua essência valores sagrados da democracia: agita-se o fantasma da interferência do poder político nas decisões dos tribunais ou na prossecução da ação penal. Aliás, o que não tem faltado é esse tipo de acusações. Basta recordar a recente polémica sobre a autonomia do Ministério Público em que uma simples transposição de um preceito constitucional fez que o sindicato dos magistrados do Ministério Público iniciasse uma gigantesca campanha de desinformação.

O pretexto para voltar a este tema são as suspeições que recaem sobre três desembargadores.

Claro que os juízes não são seres especiais e a magistratura está tão exposta a pessoas menos honestas como qualquer outra profissão. Não há quem não o saiba. Simplesmente, esta situação é só mais um elemento a somar aos imensos problemas que vive a nossa justiça. Aliás, era preciso isto acontecer para sabermos do estado da justiça portuguesa? É este caso que, subitamente, desencadeia a falta de confiança dos cidadãos na justiça? Claro que não.

Vivemos, há muitos anos, com uma justiça que de tão lenta deixa de o ser; de casos que nos parecem tão evidentes de culpa ou de inocência que o seu esclarecimento público seria fundamental; da divulgação de peças jurídicas para manipular a nossa perceção; de despachos em que magistrados dizem que alguém é culpado mas não se acusou porque não houve capacidade de obter prova...; de sindicatos de juízes e magistrados do Ministério Público que mais não fazem do que tentar corporativizar ainda mais classes já muito corporativizadas e que reclamam para eles próprios todos os poderes soberanos; de pactos entre tabloides e setores da justiça que condicionam toda a justiça; de sentenças guiadas mais pelo sentimento da opinião pública do que pela lei; da sensação de aleatoriedade das sentenças; de um juiz que fica com todos os grandes processos, violando-se à vista de todos o princípio do juiz natural; etc., etc., etc. É, sobretudo, fundamental que se perceba que a opacidade e a inexistente política de comunicação na justiça é incompatível com os tempos que vivemos.

É duro mas é a realidade: a justiça está, em larga medida, descredibilizada e maior perigo para uma democracia não existe. Fica a porta escancarada para os julgamentos na praça pública feitos pela entente tabloides/alguns setores do Ministério Público, para qualquer justiceiro com jeito para computadores, para qualquer milionário com capacidade para comprar notificações de redes sociais e/ou acesso aos media tradicionais. Mais, a profunda crise da justiça não só ajudou a fazer crescer os populistas de serviço como os alimenta todos os dias. Não há suspeita que não os ajude, não há opacidade que não os faça medrar.

Voltemos ao princípio. A quem temos de pedir contas pelo estado da nossa justiça? Exatamente àqueles que se demitem de dizer o que quer que seja sobre o assunto. Os que dizem que a justiça deve ser deixada à justiça como se o seu bom funcionamento não lhes dissesse respeito. É fácil. A todos os partidos, ministros da Justiça, primeiros-ministros, Presidentes da República que têm assistido ao deteriorar do edifício judicial e fingem ou não ver ou, criminosamente, acham que não têm nada que ver com a administração da justiça. Que pensam que nos representam para tudo menos para um aspeto essencial da nossa vida em comunidade.

Olhando para todos os políticos (há exceções honrosas, sendo Rui Rio uma delas) que exercem e exerceram cargos políticos relevantes, hesito entre a incompetência criminosa, a cobardia e os joguinhos de politiquice.

A incompetência é fácil de explicar, tem que ver com a falta de compreensão do papel de um governante e das suas responsabilidades somado a uma eventual cegueira.

A cobardia está ligada ao receio dos poderes fácticos do sistema de justiça e das suas relações com alguma imprensa: uma primeira página com uma vaga suspeita ou uma acusação de interferência na justiça faz tremer qualquer político fraco, e há demasiados.

Os joguinhos ficaram bem à vista aquando da substituição de Joana Marques Vidal ou na utilização da figura de alguns magistrados para a luta partidária. Mais não são do que usar um pilar da democracia para obter vantagens conjunturais.

Não consigo imaginar maior demissão das sagradas funções de cuidar do interesse público, pela parte da nossa classe política, do que o que se tem passado com o estado da nossa justiça.

Ao longo dos anos, venho aqui escrevendo que o maior problema do nosso país é a justiça, não há setor que precise de uma reforma mais urgente.

Se a nossa classe política não perceber isso rapidamente, será a nossa democracia a estar por um fio.


O aviso do Presidente

Marcelo Rebelo de Sousa disse que não se pode começar a legislatura em ambiente de fim de ciclo e que eleições antecipadas estão fora de questão. Terá toda a razão, mas não faço ideia de como vamos sair do pântano político em que nos encontramos. O governo convenceu-se de que governa com maioria absoluta e atua como tal. Não negoceia com ninguém o que quer que seja e assume uma posição de intransigência que até num executivo com apoio maioritário no Parlamento pareceria desajustado. Compreende-se que o Presidente chame todos à atenção e evite acusar diretamente o governo, mas o recado tem um destinatário principal. Claro que aquilo que aconteceu na escolha do presidente do CES e do CSM também não deixa, sobretudo, o PSD bem na fotografia, mas é ao governo que cabe iniciar as negociações e mostrar abertura. Ou seja, tudo o que o governo do PS não faz.

Tenho medo

As horas e horas que levo de leituras, de assistir a debates na televisão, de telefonar a médicos para saber mais sobre o covid-19, têm-me deixado ainda mais confuso. Tenho de admitir que a única coisa de que tenho a certeza é de que estou com medo. Medo por mim, pela minha família, pela minha comunidade. Um medo que não se esgota na doença, mas também nas consequências que este vírus vai ter a nível económico e social. Com a necessária alteração dos nossos comportamentos virá uma nova forma de vida que não augura nada de bom. Esperemos que não se chegue a esse limite. Entretanto, resta-me acreditar nas autoridades do meu país, pedir para que me vão dando informações corretas e que nos ajudem. Que os políticos não caiam na tentação de aproveitar esta crise e os media não cedam às manchetes alarmistas. E que os deuses nos ajudem.

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