Homens livres

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Com as atenções centradas na Ucrânia em guerra, é natural que passem despercebidas as transformações no Cazaquistão, outra antiga república soviética que como país independente existe só desde 1991 e que também conta com uma importante minoria russófona. Mas se é verdade que a invasão russa da Ucrânia tem dominado a atualidade desde 24 de fevereiro, o ano até começou com o Cazaquistão nos telejornais, por causa dos protestos contra o aumento dos combustíveis se terem transformado em violência generalizada, incluindo em Almaty, a antiga capital.

Pois, o resultado da crise acabou por ser a emergência do presidente Tokayev como o novo homem forte do país, em claro detrimento do antecessor, Nazarbayev, que nos bastidores continuava a controlar, apesar de retirado desde 2019. E Tokayev, diplomata de carreira, percebeu que a sua legitimidade, não vindo mais de ser o herdeiro de Nazarbayev, só pode vir do povo cazaque, e daí o referendo sobre a nova Constituição, agora anunciado para 5 de junho. Das linhas gerais já conhecidas, é evidente o reforço dos poderes do Parlamento, o que significa que Tokayev aceita autolimitar-se, e também o fim do estatuto especial dado a Nazarbayev como pai da independência.

Graças à riqueza em petróleo e gás e à capacidade de atrair investimentos estrangeiros, o Cazaquistão pode reclamar três décadas de sucesso. Em termos de desenvolvimento humano, entre as 15 novas repúblicas, só fica atrás dos Países Bálticos (que hoje integram a NATO e a UE). A estabilidade política, um islão maioritário, mas moderado, e a convivência pacífica entre mais de uma centena de comunidades também ajudaram à boa imagem do país. E o empenho cazaque contra as armas nucleares, depois de encerrar o polígono de testes de Semipalatinsk e desistir do arsenal herdado, promoveu mesmo Nazarbayev a um elevado estatuto entre os líderes mundiais, que este aproveitou para pôr o Cazaquistão com boas relações tanto com a Rússia como com os EUA, tanto com a UE como com a China. É essa parte positiva do legado de Nazarbayev que Tokayev tem todo o interesse em manter, corrigindo, porém, o pecado maior do antecessor, que foi, sem dúvida, ter tolerado um círculo de próximos e de familiares com acesso indevido à riqueza nacional.

Com uma vasta comunidade russa e a necessidade de preservar boas relações com Moscovo, o conflito na Ucrânia veio dificultar a vida aos governantes de Nursultan, obrigando-os, por um lado, a reconhecer a integridade territorial da outra ex-república soviética, mas, por outro, a abster-se na votação na Assembleia-Geral da ONU que condenou a invasão russa. Mas o mais complicado é que o projeto de Tokayev de construção de um Cazaquistão democrático, multiétnico, próspero e com uma diplomacia multivetorial pode não ser do interesse da vizinha Rússia. Cazaque quer dizer "homem livre".

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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