Hospitais atingem linha vermelha. Especialistas defendem confinamento

<strong>Balanço.</strong> Portugal ultrapassou a barreira dos dez mil casos esta quarta-feira, situação que vai ter um impacto brutal no SNS daqui a oito ou dez dias. ARS de Lisboa e Vale do Tejo diz que vai ter mais camas nas unidades militares. Especialistas defendem medidas severas para confinamento e avisam que a mortalidade pode agravar-se mais se os idosos não forem vacinados.
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Portugal ultrapassou esta quarta-feira a barreira dos dez mil casos de covid-19. Um dos piores cenários traçados para a evolução da pandemia em Portugal. Os hospitais do país estão a atingir a linha vermelha dos planos de contingência. Em Coimbra, o Centro Hospitalar Universitário teve de suspender a atividade programada não urgente; na Guarda, o hospital atingiu o máximo dos internamentos; na capital, o Lisboa Central teve de enviar, no domingo, cinco doentes para o Algarve e outros cinco para a Cova da Beira, por falta de capacidade em internamento. A ministra já veio pedir a todas as unidades da Região de Lisboa e Vale do Tejo que elevem os planos de contingência para os níveis máximos.

O pedido foi enviado por e-mail à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) após uma recomendação emitida pela Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a Covid-19 (CARNMI), que reuniu na terça-feira para analisar a situação epidemiológica e ocupação de camas a nível regional, explica o Ministério da Saúde em resposta ao DN. "Considerou-se necessário que os hospitais da região escalassem os seus planos de contingência para dar resposta a necessidades de internamento decorrentes de uma procura potencialmente crescente", refere a nota.

Um dia depois deste pedido, o país atinge os 10 027 casos. Para o presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, que integra também a CARNMI, é um número que nenhum serviço de saúde consegue aguentar. Aliás, sublinha, "a confirmar-se que os dez mil casos registados no dia ontem são atuais e não qualquer somatório de testes que não foram realizados durante o período do fim de ano, estamos perante um número muito grave".

O DN confirmou junto da DGS: os números reportam à realidade, não resultam do somatório de resultados de testes em atraso. O que faz o médico afirmar que "o impacto daqui a uma semana ou dez dias nos hospitais, nomeadamente nas Unidades de Cuidados Intensivos (UCI), poderá ser brutal". Um impacto que geralmente equivale a 10% de internamentos em enfermarias e de cerca de 3% de internamentos nos Cuidados Intensivos, uma semana a dez dias depois do registo do aumento de casos.

A situação atingiu a linha vermelha na comunidade e está a atingir os hospitais. O médico defende que o governo, hoje reunido em Conselho de Ministros, deverá tomar medidas de imediato no sentido de se reduzir a curva de transmissão da doença. "Neste momento, 94% das camas das UCI estão ocupadas, não há capacidade de resposta. Portanto é natural que se suspenda algumas atividades e que se aumente o número de camas para doentes covid de forma a gerir a situação."

"É estranho que tenha de ser a ministra a ter de pedir aos hospitais que o façam", sublinha, acrescentando: "Ninguém quer o confinamento geral mas a continuarem estes números é uma das soluções, já que não há capacidade de resposta das unidades, sobretudo ao nível dos recursos humanos", cuja falta o médico refere ser um dos principais problemas.

João Gouveia, que tem sido um dos especialistas que frequentemente estão presentes nas reuniões do Infarmed com o governo e representantes políticos, afirma que o ideal era poder conter a pandemia a montante das unidades hospitalares - ou seja, na comunidade - "mas se tal não é possível há outras soluções que têm de ser assumidas".

Para o presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Saúde Pública, os números registados no dia de ontem "são o preço do aligeirar de medidas durante o período de Natal". Ricardo Mexia não se surpreende dizendo que era expectável e que o cenário é idêntico ao de outros países que estão à nossa volta, mas que optaram por tomar medidas mais severas. "Sabíamos todos que ia haver consequências", afirma.

"Dez mil casos por dia não é sustentável para a saúde pública nem para a rede hospitalar", critica, acrescentando: "Podemos ficar a assistir ao que está acontecer... Já o disse várias vezes, Portugal tem agido por reação e não por ação planeada e diversificada." O epidemiologista argumenta que "ninguém é um fervoroso defensor do confinamento geral, mas quando não há alternativas e temos de salvar vidas, se calhar é a solução que temos de adotar".

O especialista em saúde pública e professor catedrático Constantino Sakellarides refere ao DN que os dados atuais exigem uma avaliação aprofundada antes de se avançar para um confinamento geral, embora salvaguarde que esta avaliação deva ser feita rapidamente para que não se atrase tomadas de decisão. Para Sakellarides o número registado ontem é elevado e insustentável para o SNS, no sentido de este poder dar uma resposta eficaz à situação. Por isso, defende ser necessário ter mais informação sobre os dados para se tomarem as medidas adequadas. "É preciso esclarecer se o número registado é de facto de casos atuais, qual o número de testes que estão a ser feitos, a percentagem de positividade e qual o desempenho que tem sido dado pelo SNS à evolução da doença. Só assim teremos informação suficiente para se decidir", explica ao DN.

De qualquer forma, admite ser "um número muito preocupante". Mas preocupante é também o facto de os números de mortes e de internamentos manterem tendência crescente, independentemente de o número de casos diminuir. Por isto o especialista em saúde pública faz outro alerta: "Uma das coisas que se sabem em relação a esta doença é que a idade é um fator de risco. Aliás, este foi o fator que levou quatro dos países com uma saúde pública mais robusta - Alemanha, França, EUA e Reino Unido - a vacinar as pessoas de mais idade, a partir dos 80 anos. Um plano de vacinação é definido de acordo com três critérios: evitar mortes, defender o sistema de saúde e produzir imunidade de grupo. E para se evitar mais mortes os idosos precisam de ser vacinados durante o inverno. O governo quer assumir a responsabilidade desta situação?"

O professor defende que este tema deve voltar a ser discutido e não ficar fechado, até porque no início de dezembro quando foi noticiado que os idosos não estavam incluídos como prioritários no Plano de Vacinação, o próprio Presidente da República e o primeiro-ministro reagiram de imediato e disseram que não poderia ser. António Costa referiu mesmo que se a decisão técnica era essa, a decisão politica seria outra. Portanto, "não se percebe por que não há agora abertura para a discussão e adaptação do plano de vacinação à realidade".

Constantino Sakellarides argumenta ainda com o facto de Portugal ser dos países com uma cobertura de vacinação mais elevada e que tal implicou muito trabalho das autoridades de saúde. "Passámos décadas a convencer os mais velhos que tinham de ser vacinados contra a gripe para se protegerem e diminuir o número de mortes por esta causa. Agora temos uma vacina eficaz para a pandemia e só vamos vacinar esta faixa etária na primavera? E os riscos que correm durante o inverno?"

O médico e professor de saúde pública não aceita que o assunto não volte a ser discutido, questionando mesmo: "O governo e o país querem assumir a responsabilidade de mais mortos durante a pandemia? A única forma de não o assumir é ouvir todas as opiniões fundamentadas sobre o assunto. Não mudar os critérios é evoluir para uma situação de conflito sobre a vacinação e isso é o pior que poderia acontecer durante a pandemia", defende. "Se os dez mil que foram registados forem mesmo uma tendência, quem vai continuar a morrer? Pela tendência registada até agora serão os maiores de 65 anos, com picos graves nos 70 anos e acima dos 80."

Em Portugal, a vacinação começou pelos profissionais de saúde, depois pelos profissionais e utentes de lares, seguem-se os doentes crónicos. O plano está dividido em três fases, os mais idosos sem patologias serão vacinados a partir de abril. Mas também são estes que enchem as unidades de saúde.

A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo diz ao DN que para resolver a situação "está prevista para breve a abertura de mais 30 camas no Centro de Apoio Militar/CAM de Belém", que totalizam as 90 contempladas na parceria com as Forças Armadas. Em breve também será reforçado o apoio dado pelo Centro de Acolhimento da Marinha na Base Naval do Alfeite, onde irá funcionar uma Estrutura de Apoio de Retaguarda (EAR) ao abrigo do Despacho n.º 10942-A/2020.

A ARSLVT sublinha que as soluções para a situação têm de ter uma gestão diária e permanente por parte dos hospitais e que a este nível todas as unidades estão a preparar o aumento da capacidade de camas críticas.

Neste momento, quando uma unidade atinge a linha vermelha, tem de o comunicar à ARS e é esta que indica para onde e quando os doentes devem ser transferidos. "Os números relacionados com os internamentos são voláteis (considerando o conjunto de variáveis envolvidas), pelo que as respostas dos hospitais vão sendo adaptadas em função desse dinamismo. Atualmente estão internados nos hospitais da região 1312 doentes com covid, sendo que 1127 estão em enfermaria e 185 utentes em UCI", explica ainda, confirmando que nos últimos dias tem existido uma maior procura dos serviços de urgência hospitalares.

Segundo refere a ARSLVT a situação está a ser acompanhada estando também a promover-se o funcionamento em rede dos hospitais do SNS - que pode ser intrarregional (entre unidades da região) e/ou inter-regional (ou seja, unidades de Lisboa e Vale do Tejo recebem utentes de outras regiões e vice-versa)." Uma gestão que já levou de doentes de Lisboa até ao Algarve e até à Guarda.

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