Foi preciso navegar por três oceanos
Vamos falar um pouco de Portugal e do Japão, dois países que celebram este ano 480 anos desde o primeiro contacto, começando por desfazer o mito de que o arigato japonês resulta do nosso obrigado. Não só não é verdade como nem sequer é necessário para mostrar como foram estreitas as relações luso-japonesas nos séculos XVI e XVII. A nível de palavras de origem portuguesa, os japoneses continuam a usar no quotidiano copo, pão, botão, tabaco ou carta, como explica em entrevista hoje no DN o embaixador Makoto Ota. Mas ainda mais relevante é terem sido os portugueses a dar a conhecer aos japoneses a moderna ciência e tecnologia, evento transcendental por vezes resumido à introdução da espingarda, como se não tivesse sido importante o mostrar do primeiro mapa-múndi. Há uns anos, a revista americana Science dedicou todo um número ao Japão, em que o imperador Akihito, desde 2019 imperador emérito, assinou um artigo reconhecendo o contributo da civilização chinesa mas também o dos portugueses, chegados em 1543. E nunca me canso de referir a naturalidade da nota de rodapé da revista informando que "sua majestade é ictiologista e autor de dezenas de artigos científicos".
Ora, se Akihito é especialista em peixes, já o filho Naruhito, hoje imperador, é historiador de formação. E grande conhecedor dos Descobrimentos (como o pai, que esteve em Portugal para a Expo"98, dedicada aos oceanos, lembrando que é preciso navegar por três para ir de Lisboa a Tanegashima), o então príncipe herdeiro visitou em 2004 Porto, Sintra, Coimbra e Lisboa, e no arquivo do DN há uma imagem sua no Castelo de São Jorge com uma Fuji Klasse (alta tecnologia japonesa, claro) a fotografar o Tejo. Esse mesmo Tejo a que chegaram há mais de 400 anos os jovens da primeira embaixada japonesa à Europa, seguindo depois para Madrid, onde estava Filipe II (I de Portugal), e de seguida para Roma, ver o Papa. E foi também do Tejo que reembarcaram rumo ao seu Japão distante, que não tardaria muito em ver como ameaça o cristianismo e em resposta se decidisse fechar ao mundo, com exceção de Dejima, ilha artificial junto a Nagasaki onde os holandeses podiam comerciar, pois, como calvinistas, eram pouco prosélitos e portanto menos perigosos do que os portugueses e os espanhóis, povos católicos. Muito desta história continua a ser ensinada na escola japonesa.
O Japão de hoje é a terceira economia mundial, uma sólida democracia e um colosso cultural, mesmo na versão pop que é simbolizada pelo anime, o manga e os jogos de computador. A velha relação com Portugal, reatada no século XIX quando o Japão se reabriu ao mundo, é hoje de amizade, também de partilha de valores comuns, igualmente de interesses económicos coincidentes, pois são muitas as empresas nipónicas a investir em Portugal. Na entrevista, o embaixador Ota fala das áreas que são mais atraentes para o capital japonês, como as tecnologias verdes, e dá a entender que muito podem ainda aprofundar-se as relações.
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Sei que em Tóquio o nosso embaixador, Vítor Sereno, está também a trabalhar árduo para fazer deste passado partilhado pelos dois países uma relação cheia de futuro, com o made in Portugal a ganhar respeitabilidade e as empresas portuguesas a verem o arquipélago povoado por 125 milhões de pessoas como de oportunidades, até por ter consumidores exigentes, capazes de valorizar mais do que os nossos vinhos.
A invasão russa da Ucrânia afetou o Japão, como também Portugal. No nosso caso, o reforço dos laços transatlânticos entre a Europa e os Estados Unidos é uma evidência e mostra a persistência de uma comunidade de destinos que ainda há bem poucos anos parecia incerta. Para o Japão, com disputas territoriais com a Rússia e a China e sob a permanente ameaça da Coreia do Norte, o momento é de decisões difíceis, como a de investir mais em defesa, sem, porém, contrariar o pacifismo da Constituição pós-Segunda Guerra Mundial e de se manter alinhado com as democracias ocidentais.
País mais vezes eleito como membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o Japão tem defendido a reforma desse órgão para o tomar não só mais legítimo e representativo, como também mais efetivo, como relembrou o embaixador Ota. Portugal, também empenhado nas Nações Unidas, só pode apoiar esse objetivo.