Donald Trump, quatro anos de fogo e fúria

O candidato pelos republicanos acaba o mandato a espalhar falsidades, tal como começou. E nunca procurou o compromisso nem o diálogo. Um mandato de fogo e fúria, como o título do livro de Michael Wolff sobre a administração Trump.

Donald Trump segue um padrão, o da falta à verdade. Voltou a fazê-lo na quinta-feira à noite sobre o processo eleitoral, prometendo prolongar a luta pelos votos até às últimas instâncias da justiça, sob o pretexto, não fundamentado, de estar a ser "roubado" na contagem dos votos. O The Washington Post deixou no final de agosto de fazer a contabilidade das afirmações falsas do presidente: em 1316 dias fez 22 247 declarações falsas ou enganosas.

Sobre a democracia e as eleições, Trump semeou dúvidas desde que tomou posse. Declarou que as eleições de 2016 tinham sido manipuladas porque perdeu o voto popular. Organizou uma "comissão" sobre fraude eleitoral, tendo colocado o vice-presidente Mike Pence no comando. Mas oito meses mais tarde, após duas reuniões, não mais se soube da comissão.

Nunca os Estados Unidos tiveram um presidente como Donald Trump. Não foi o primeiro empresário na Casa Branca, mas foi aquele que fazendo parte da elite fez campanha contra essa elite, em especial na primeira campanha. Nenhum outro presidente usou a Casa Branca como base para os seus negócios de família, a meias com a sua estância de golfe na Florida, o que ajudou na média de um em cada cinco dias a jogar golfe, como está documentado no site Trump Golf Count.

Foi um presidente que prometeu devolver ao país uma grandeza alegadamente perdida pondo-o em primeiro e único lugar. Mas esse America First, tendo dado um novo alento a muitos eleitores desiludidos com as consequências da globalização e chamado a atenção para questões pertinentes no comércio internacional, em especial com a China, materializou-se num queimar de pontes com outros países, em especial com a Europa.

O discurso, complementado com a promessa de se construir um muro com o México (e pago pelo vizinho), mobilizou também as franjas supremacistas e xenófobas e polarizou o eleitorado.

Economia, o ponto forte

O empresário, que conta com várias falências no seu currículo, prometeu levar os seus conhecimentos para a Casa Branca e repetiu estar à frente "da maior economia" da história.

A favor de Trump, o desemprego registou o nível mais baixo em 50 anos quando caiu até 3,5% em dezembro de 2019. Números revistos um mês depois indicaram, entretanto, que o crescimento do emprego desacelerou nos primeiros três anos de governo de Trump, enquanto a pandemia deixou milhões de pessoas sem trabalho.

O mercado financeiro registou altas repetidas, inclusive recuperando-se em grande medida da drástica queda após o início da pandemia do novo coronavírus.
Mas o crescimento mais forte do PIB foi de 3%, semelhante ao desempenho de Barack Obama e muito longe dos recordes históricos nacionais.

Quanto à promessa de Trump de restaurar a produção, o emprego industrial aumentou ao mesmo ritmo que com Obama até à chegada da pandemia.

Mancha russa

A investigação do procurador especial Robert Mueller sobre a interferência da Rússia nas eleições anteriores resultou em dezenas de pessoas acusadas, algumas confessaram-se culpadas e cinco cumpriram penas de prisão. O antigo diretor da campanha Paul Manafort, e o advogado pessoal de Trump, Michael Cohen, foram presos. Os procuradores em Nova Iorque estão ainda a investigar o pagamento de Trump a duas mulheres, uma ex-modelo da Playboy e uma estrela porno durante a campanha, o que é um possível crime eleitoral.

Foi condenado pela Câmara de Representantes por ter pressionado o presidente da Ucrânia para que este o ajudasse na campanha de reeleição em troca do envio de ajuda militar retida. Uma violação da lei eleitoral, mas o Senado, controlado pelos republicanos, não o destituiu.

Campanha de altos e baixos

Na campanha tentou usar teorias de corrupção ligadas ao filho de Joe Biden, Hunter, a Ucrânia e a China; voltou a usar Hillary Clinton e os e-mails (que se provou não terem nada de incorreto) e até a velha alegação de que Barack Obama o espiava. Não perdeu a oportunidade de apresentar como triunfo a indicação de uma juíza ultraconservadora, Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal. Uma escolha que, a juntar-se a outras duas (Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh), inclinou a mais alta instância judicial para a direita nas próximas décadas.

Também se apresentou como o campeão da diplomacia ao receber na Casa Branca altos dignitários dos Emirados Árabes Unidos e do Bahrein, bem como o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu: os acordos de Abraão, que abrem caminho para o reconhecimento de Israel por mais países de maioria muçulmana.

A manchar a campanha, notícias de que o milionário não pagou impostos em dez dos 15 anos anteriores à entrada na Casa Branca e que pagou mais impostos na China do que no seu país. Trump prometeu em 2016 mostrar a declaração de rendimentos, mas tem combatido em tribunal todas as tentativas nesse sentido.

Mas o escândalo rapidamente caiu no esquecimento. Após meses a menosprezar a pandemia e a dar as mais desencontradas indicações sobre o tema, Donald Trump anunciou que estava infetado, bem como a mulher, com covid-19. Os norte-americanos, que segundo as sondagens estavam insatisfeitos com a gestão da pandemia, nos dias seguintes passaram a viver o drama de um presidente hospitalizado.

Trump, que minimizou a doença e o uso de máscaras, tentou fazer desse momento um catalisador, mostrando-se como um homem providencial, num multiplicar de comícios em aeroportos, e prometendo a cura da doença (como antes uma vacina até final do ano) enquanto os números de infeções batem recordes e o número de mortes ultrapassa 230 mil.

Abraço aos autocratas

Nas relações internacionais virou-se contra os aliados, quer na imposição de tarifas em relação aos países membros da União Europeia quer na estratégia de diminuir a importância da NATO, ao ponto de o francês Emmanuel Macron ter afirmado que a Aliança Atlântica está "em morte cerebral".

Retirou o país do Acordo de Paris sobre o clima, e de instituições da ONU como o Conselho de Direitos Humanos, a UNESCO e a Organização Mundial de Saúde. Abraçou e elogiou ditadores e autocratas como Kim Jong-un, Mohammed Bin Salman, Vladimir Putin, Xi Jinping, Viktor Orbán ou Recep Erdogan e apoucou democratas como Angela Merkel, Justin Trudeau, Emmanuel Macron ou Theresa May.

Crítico das intervenções militares no estrangeiro, o nova-iorquino de 74 anos usou a "máxima pressão" da política externa, as sanções económicas. Países como Bielorrússia, Cuba, Nicarágua, Síria e Venezuela foram alvo de sanções, mas o mais atingido foi o Irão. Em 2018 Trump retirou o país de um acordo nuclear internacional, bloqueou as exportações de petróleo daquela teocracia e criou condições para que empresas de outros países ocidentais deixassem de ter negócios em Teerão.

Dois anos depois, a administração Trump reclama crédito pela devastação à economia iraniana, dizendo que os seus aliados regionais, como o Hezbollah, ficaram privados de dinheiro. Mas os grupos armados apoiados pelo Irão não deixaram de estar ativos e o Irão afastou-se das restrições impostas pelo acordo nuclear.

Se em relação ao Irão Trump e o secretário de Estado Mike Pompeo nunca disseram ter como objetivo a queda do regime, tal foi afirmado em relação à Venezuela de Nicolás Maduro, cuja reeleição em 2018 foi considerada fraudulenta. Mas após mais de um ano e meio de esforços dos EUA, e de outros países ocidentais, incluindo sanções ao petróleo venezuelano, Maduro continua à frente de um país exangue, com o apoio da Rússia, China, Irão e Cuba.

Romper sem construir

Nas relações económicas, o balanço tem de passar pela guerra comercial travada com a China, que desembocou numa trégua em janeiro, sem solução para os principais pontos de discórdia, a propriedade intelectual e as transferências forçadas de tecnologia, tendo no processo sobrecarregado os norte-americanos com tarifas e canalizado parte desses proveitos para subsidiar os agricultores que deixaram de exportar soja e algodão.

A favor de Trump, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, Nafta, com o Canadá e México foi renegociado (agora denominado USMCA).

"Donald Trump mostrou que era capaz de romper, mas incapaz de construir", afirmou Sébastien Jean, diretor do Centro de Estudos Prospetivos e Informação Internacional (CEPII) à AFP.

Pascal Lamy, ex-diretor da Organização Mundial do Comércio, destacou os esforços de Donald Trump para "popularizar" a necessidade de reformar a instituição e de forçar a China a aceitar "um endurecimento das regras". Sébastien Jean lembra, por sua vez, que seus violentos ataques "modificaram a relação de forças" com Pequim. Sob a sua influência, "a própria União Europeia mudou de atitude", como é o caso da empresa de telecomunicações Huawei, vetada por Washington e agora também por vários países europeus.

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