Os tempos exigem um rei sábio
São inevitáveis as comparações entre Carlos III e Isabel II. Mas são comparações injustas. Por muito que o filho seja diferente da mãe, aquilo que verdadeiramente os distingue é a época em que ele vive, e aquela em que ela viveu. Basta pensar no que é o mundo hoje, dia em que Carlos é finalmente coroado, oito meses depois da morte da rainha mais longeva da história britânica, e aquilo que era quando em 1953 Isabel II foi coroada.
Uma das principais mudanças nestas sete décadas foi o desaparecimento dos impérios coloniais europeus, mesmo que no caso britânico Isabel II já tenha subido ao trono sem a Índia entre as joias da coroa. Outra mudança foi a extinção gradual de muitas das monarquias que tinham sobrevivido ao impacto das duas guerras mundiais: Egito, Iraque, Líbia, Grécia, Etiópia, Afeganistão, Irão, Nepal, só para citar algumas, com a Espanha a ser o único caso em sentido contrário. Mesmo Isabel II, que amadrinhou o nascimento da Commonwealth como a substituta possível do império, viu o número de países nos quais era rainha reduzir-se para metade, restando hoje só 15.
Aliás, especula-se muito sobre a capacidade de Carlos III manter esses 15 países em que é rei. Depois de Barbados se ter tornado uma república, outras ilhas das Caraíbas podem seguir o mesmo rumo e, talvez ainda mais penoso para os Windsor, a Austrália e a Nova Zelândia têm primeiros-ministros que não escondem ver a república como o futuro mais provável, num último corte, simbólico, com a metrópole. Uma vez mais, não creio que seja imputável a Carlos III uma transformação da Commonwealth em uma mera comunidade de países com a língua inglesa em comum e certos laços históricos. É isso, aliás, aquilo que permite à Índia fazer parte.
O grande desafio para Carlos III não se joga em latitudes e longitudes distantes do palácio de Buckingham. Joga-se sim na defesa do Reino Unido, na preservação da união da Inglaterra com Gales, uma Escócia governada por um partido independentista e uma Irlanda do Norte onde os católicos são já mais numerosos do que os protestantes, com tudo o que tal significa em termos de lealdades com Londres ou com Dublim.
Sociedade em profunda transformação, claramente pós-imperial, basta pensar que o primeiro-ministro é hoje um filho de imigrantes indianos, o Reino Unido procura construir um futuro no século XXI que esteja em linha com o seu poderoso passado. O Brexit pode ou não ter sido um erro de cálculo, mas a parceria de valores e de interesses com o resto da Europa Ocidental permanece e não tem de ser posta em causa pelo reforço da tradicional aliança com os Estados Unidos. Com um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, arsenal nuclear próprio, uma economia que é a sexta maior do mundo e universidades ao nível do melhor que há, o Reino Unido que Carlos III herdou continua a ser uma grande potência, e sobretudo uma grande potência admirada globalmente.
A forma como a democracia se foi construindo ao longo dos séculos nas ilhas britânicas ainda hoje causa estupefação. Tudo muito mais gradual, mais negociado, sem ruturas sangrentas, em especial desde o início do século XVIII. E os monarcas tiveram o seu papel nesse processo. Só isso explica a sobrevivência, até a popularidade, da monarquia até hoje entre os britânicos, pois os republicanos são uma minoria. Carlos III esperou tanto tempo pelo trono que pode pensar no tipo de rei que pretende ser. Não vai de certeza tentar imitar a mãe, mas precisa de conquistar como ela o apoio do povo. Será uma luta quotidiana, a exigir um rei sábio.
Diretor adjunto do Diário de Notícias