O tempo em que havia praias obscuras
É o geógrafo Estrabão quem há 2000 anos primeiro descreve a costa portuguesa. São poucas páginas em 17 volumes da sua obra Geografia, porque está mais preocupado com o centro do mundo nessa época, mesmo que tenha viajado até à Etiópia e ao Alto Egito, mas que mostram já o recorte do litoral português. "A sua natureza é digna de realçar", descreve, mais preocupado em sinalizar os rios capazes de "acolher o mar quando sobe a maré", como é o caso do Tejo, do Douro, do Lima, do Minho (que alguns chamam Benis). Neste, que faz a fronteira a norte com Espanha, faz questão de registar que na "foz existe uma ilha", a Ínsua que permanece até hoje entre o princípio do oceano Atlântico e o final do rio, frente a Caminha e ao Moledo - as primeiras praias do país.
A obra de Estrabão é, a par da de Ptolomeu, a mais antiga preocupada com as particularidades geográficas do litoral e dos povos que existiam na altura e, mesmo que o seu nome significasse ser estrábico, é a primeira visão que existe daquilo a que hoje se chama praias com sentido de prazer. Algo que ainda no século passado era uma coisa estranha, como conta a escritora Luísa Costa Gomes no seu ensaio Da Costa - Praias e Montes da Caparica: "Quando nos anos quarenta umas suecas mostraram as barrigas desnudas na Costa da Caparica, provocaram o sururu entre os pescadores e a confusão na autoridade, que não sabia se devia avançar para a autuação ou sentar-se a gozar a vista."
E seguir-se-á, décadas mais tarde, a questão do bronzeado chique fornecido pela praia em detrimento do provocado pelas marcas do sol na pele meio vestida do trabalhador piscatório - ou agrícola - que nunca fora uma preocupação antes, mas que se mantém nos dias de hoje. Uma moda de ir à praia que, conta a escritora, "deixou de ser uma marca de miséria e do trabalho da jorna ao sol para passar a ser sinal do status de alguém que tem dinheiro para estar sem fazer nada". Uma situação que, descreve no Da Costa, irá evoluindo, pois "todas as classes vêm à praia, todas as etnias. Nisto a Caparica cumpriu o seu desígnio de praia universal, multiclassista e multirracial".
Ainda vai no início e questiona-se Luísa Costa Gomes: "Olhando a imensidão do areal da Costa na maré baixa, temos dificuldade em imaginar que não tivesse sido sempre uma praia." É verdade e disso dá bem conta Ramalho Ortigão, que, em 1876, publica a primeira edição de As Praias de Portugal - Guia do Banhista e do Viajante. Um clássico da temática que até hoje ninguém tentou ou foi capaz de superar e que mostra bem como o conceito de praia mudou a vários níveis: passou a ser um assunto e não a fazer parte da paisagem de onde partiam caravelas para descobrir o mundo desconhecido dos europeus, a ser relato de contos e romances e até notícia de abertura de noticiários em tempo de covid-19. Aliás, nunca se imaginou em qualquer obra literária uma invenção tão anormal como é a de medir o número de pessoas que cabem por cada metro quadrado de areal, coisa que qualquer escritor ignorou sempre para se dedicar a belas páginas de descrições das suas personagens e de aventuras.
Mesmo os que se dedicam a autobiografias, como é o caso do último livro de Olivier Rolin, Peregrinação, que esteve três meses a fazer uma residência na Pousada da Cidadela e ao escrevê-lo e não podia ignorar as praias que daquelas muralhas se observam em redor de Cascais. Não inicia a sua Peregrinação por aí, mas pelos Açores: "Atiro-me à água", escreve após relatar paisagens com "sebes de hortênsias que deixam entrever os meandros verdes e azuis do oceano". Rolin lamenta não ter chegado de barco mas "banalmente de avião", que mesmo assim lhe permitiu "ver traços finos e grossos dos litorais, ilhas sitiadas de azul... toda a beleza que não está à nossa altura". E não faltaram praias na vida que Olivier Rolin retrata neste volume, desde as do norte de África às da Patagónia, do mar Negro às do mar Vermelho. Ele sabe do que fala.
Desse ângulo podia-se também ver as mesmas praias e outras mais distantes que surgem em bastantes páginas do romance Estuário, de Lídia Jorge. Talvez a mais inalcançável seja a do areal que emerge do fundo do Tejo e se fixa às pedras que defendem o farol do Bugio, mas o olhar e o enredo da escritora ficam muitas vezes mais presos à corrente do rio para onde uma personagem atira uma garrafa com uma mensagem no seu interior ou no contraponto que os arranha-céus das cidades fazem ao brilhar em comparação com "o sol refulgente e as amplas praias da terra povoadas de barcos rápidos". Diz a certa altura Maria das Mercês que "os efeitos de um livro nunca se podem avaliar", e aí deixa-se este Estuário para folhear outras páginas suas, as do romance O Vento Assobiando nas Gruas, onde a areia de um Algarve que ainda estava quase para ser descoberto pela turistada é a grande personagem, uma areia que tanto cobre construções abandonadas como apaga os traços da memória a desvanecer-se.
De memórias fala também Carlos Brito, um ator da política que foi preso no Forte de Peniche e que destaca entre aventuras de esquerda em Cadeia do Forte de Peniche - Como Foi Vivida a impressão que o mar lhe fazia desde a primeira noite ali passada entre grades: "A furna era outra referência da Cadeia do Forte de Peniche. Ouvi-a logo na primeira noite e acordei com aquele uivo ululante que parecia vir das entranhas da terra. Trata-se de uma longa galeria que o mar escavou na rocha. Ao longo dos anos, fui estabelecendo uma relação afetiva com o rugido da furna e sei que isso aconteceu com outros camaradas." Uma localização que tem um simbolismo tão forte que seduziu o poeta David Mourão-Ferreira e o músico Alain Oulman na composição do fado Abandono que Amália Rodrigues cantou até ser proibida pela polícia política.
Se esta história era real, já nas praias perto de Sintra havia-as mais imaginativas, segundo o cronista Damião de Góis, e também incluíam furnas: "Não muito longe desta aldeia, a que os naturais chamam Colares, debaixo dum rochedo sobranceiro ao mar, há uma gruta batida pelo Oceano. As ondas penetram lá dentro, e produzem um enorme ruído. O nosso povo julga que ali foi visto outrora um tritão a cantar com a sua concha." E Góis reforça a história de um areal com empréstimos da história: "Já Plínio dizia que nos tempos de Tibério César fora visto e ouvido na Lusitânia um tritão e uma embaixada vinda expressamente de Lisboa testeficou que se avistara um tritão" e, acrescenta, no seu tempo ainda se viam uns "homens marinhos que apresentam na superfície da pele umas escamas como se fossem vestígios da sua antiga raça."
Ora as invenções literárias não se ficam por Damião de Góis no século XVI, pois quando Cândido de Figueiredo viaja em 1892 para uma Lisboa no ano de 3000 também não se esquece de mistérios que acontecem nas praias portugueses, como a da Arrábida, hoje um tesouro que escapa à determinação de lugares possíveis de usar porque já lhe acontecia há muito: "Quando a Lua irrompia detrás das ruínas setubalesas, pelas chapadas da Arrábida reboavam lamentações e salmos. Viandantes, transidos de susto, julgavam ouvir gritos e blasfémias de alma penada e, na vertigem, precipitavam-se no Sado." Não esquecer que Salazar gostou tanto da Arrábida quando lá foi que mandou construir um "caminho" decente até à praia.
Nas mesmas zonas foi o autor de livros infantis Hans Christian Andersen surpreendido pela beleza das praias quando da sua visita a Portugal a convite dos O'Neill, que tinham uma grande propriedade em Palmela. A Arrábida fascinou-o, mas foi na praia de Troia que viu arqueologias que o entusiasmaram. Nada que os areais portugueses não fizessem a outros escritores, e deixemos de fora os muitos estrangeiros que até hoje se inspiram para aventuras literárias nestas praias que dão início ao continente europeu, como os da praia da Granja, onde Eça de Queiroz torna definitivo o seu namoro com Emília e Sophia de Mello Breyner Andresen passa a juventude e começa a sonhar com a Grécia. Nada que as praias da Dona Ana e Meia Praia em Lagos não tivessem reforçado essa fixação e que, as últimas, tenham inspirado muitos dos seus poemas principais. Afinal, ainda há muitos que se lembram de ver Sophia a deambular pela maior praia lacobrigense como se estivesse de braço dado com a musa. Entre a Granja e a Dona Ana, encontrou José Cardoso Pires um areal tétrico para descrever um crime em A Balada da Praia dos Cães.
Regressemos ao clássico, Ramalho Ortigão, mesmo que não se deva esquecer um outro R, o de Raul Brandão. Este fez uma viagem literária nos anos 1920 dedicada aos pescadores portugueses e, como não podia deixar de ser, incluía muitas das nossas praias. Em Os Pescadores, Brandão reúne uma série de crónicas que percorrem os areais que banham o litoral entre o Minho e o Algarve. Começa em Caminha, continua pela Póvoa de Varzim, Leixões, Mira, Nazaré - onde Stanley Kubrick nada escreveu mas fez ótimas fotografias -, Peniche, Sesimbra e Olhão, relatando as comunidades piscatórias, as paisagens e dá os primeiros passos na descoberta para a maioria dos portugueses daquelas areias - finas ou grossas - que são suas vizinhas e parecem que nunca terão uso de lazer.
E Ramalho Ortigão... Quem o vê nas fotografias, de colarinho alto e boas vestes, bengala e um bigode que daria muito trabalho, jamais o imaginaria a calcorrear areias que se enfiam nos sapatos de dândi. Mas, justificava Ortigão: "Assim como quatro quintas partes do corpo humano são água, assim quatro quintas partes do globo são mar. Parecendo separar os homens, o belo destino eterno do mar é reuni-los." Se dá título ao seu livro de As Praias de Portugal, segue-se o subtítulo Guia do Banhista e do Viajante, em que recorda o tempo em que ia "de chapéu de palha e de bibe apanhar conchinhas na costa pela mão de minha avó". A partir daí, das praias da Foz do Porto, parte até Setúbal. A costa alentejana e o Algarve é coisa muito distante e despovoada, por isso não contam para quem escreve um capítulo intitulado "As praias obscuras". Desculpa-se assim: "Além das praias a que nos temos referido, Portugal é todo ele uma praia."