Alterar o râguebi? Gigantes preferem ignorar ou não jogar
O anúncio feito na passada semana pela World Rugby (WR) de que o seu comité executivo aprovara um conjunto de dez alterações temporárias e opcionais às leis de jogo, tendo em vista a redução do risco de contágio da covid-19 no râguebi, está a fazer correr muita tinta. E algumas das principais federações mundiais, como a inglesa, a galesa e a neozelandesa, já avançaram com a liminar recusa em adotar qualquer uma das medidas sugeridas pelo Grupo de Revisão de Leis da federação mundial que integra jogadores, árbitros, médicos e especialistas em direito desportivo.
A proposta teve em conta as orientações da Organização Mundial da Saúde que determinam um elevado risco de contágio após 15 minutos a menos de um metro de uma pessoa infetada. As alterações pretendem limitar o contacto e a proximidade de jogadores em certas fases do jogo como formações ordenadas (mêlées), nas quais 16 jogadores respiram o ar uns dos outros a poucos palmos de cada cara, formações espontâneas altas (mauls), formações espontâneas no solo (rucks) e placagens altas que seriam penalizadas através de um novo cartão laranja. O grupo estima que estas alterações reduziriam de 25% a 50% o risco de transmissão entre atletas, em especial nos pilares e segundas-linhas, jogadores mais expostos pois passam cerca de 13 minutos por partida em situações de alto risco de contágio.
Entre as alterações destacam-se a eliminação da repetição de formações ordenadas quando não existe infração (reduzindo até 30% o perigo de transmissão) com a equipa que infringiu a sofrer um pontapé livre; a impossibilidade de optar por mêlée nas penalidades; a redução do tempo disponível para tirar a bola do ruck de cinco para três segundos e a proibição de se juntarem ao maul para jogadores que não o formaram desde o início. Além destas alterações, foram aprovadas ainda várias medidas sanitárias como a desinfeção regular da bola e a sua substituição ao intervalo, a obrigatoriedade de lavar as mãos e a cara antes e após o final das partidas, a impossibilidade de partilhar garrafas de água, a troca de equipamentos e capacetes ao intervalo sempre que possível e ainda a proibição de celebrações com contacto físico e dos tão habituais ajuntamentos à volta do capitão para discutir tática ou incentivar a equipa - uma das grandes tradições do râguebi - e a proibição de cuspir ou assoar-se para o relvado.
Tendo em conta as grandes diferenças existentes na forma e na intensidade com que o vírus se apresenta em diferentes países e regiões, foi rejeitada a imposição das alterações a nível global, sendo recomendado às federações nacionais que implementem todas ou apenas algumas das alterações às leis, observando as condições locais e as recomendações das autoridades de saúde e governamentais dos respetivos países.
O presidente da federação galesa, Gareth Davies, já respondeu com um rotundo não a este conjunto de propostas da WR. "Pessoalmente tenho um problema com estas alterações. Se existe realmente algum risco no regresso da modalidade, então não deveríamos jogar e ponto final", afirma, acrescentando: "Não me considero um conservador fanático, mas creio que as alterações destroem a integridade do jogo e não temos planos na federação galesa para as introduzir." Também Inglaterra e Nova Zelândia irão seguir o mesmo caminho. "A Rugby Football Union [RFU] está a fazer a sua própria análise, independente da WR e a estudar todas as opções para voltar a treinar e a jogar", disse um porta-voz da federação inglesa.
No que respeita à Nova Zelândia, onde o coronavírus está praticamente erradicado (desde o início regista pouco mais de 1500 casos e apenas 22 mortos, quatro por milhão de habitantes perante os 145 de Portugal), o país não adotará estas alterações na versão doméstica do Super Rugby Aotearoa - substituindo a principal competição que junta equipas das quatro potências do hemisfério sul, interrompida a 14 de março e que não será concluída neste ano - a disputar pelas suas cinco franquias e com arranque já no próximo sábado, dia 13. Será a primeira prova a ser iniciada a nível global, com 20 jogos em dez fins de semana, envolvendo entre 150 e 200 jogadores num universo de 150 mil atletas.
"Não há qualquer sinal de transmissão comunitária na Nova Zelândia, pelo que as circunstâncias são bastante diferentes da Europa e não temos necessidade de adotar as propostas", disse Mark Robinson, presidente da federação neozelandesa. "Instituímos protocolos de controlo de temperatura, higiene e limpeza e continuaremos a analisar os riscos para a saúde em linha com as diretivas das nossas autoridades públicas de saúde", adiantou.
Com praticamente todas as federações em sérias dificuldades financeiras, em França e Itália todas as competições de râguebi foram canceladas, sem atribuição de títulos nem subidas ou descidas de divisão. Já em Inglaterra os compromissos levaram a federação inglesa a tentar concluir as nove jornadas em falta na Premiership a partir de julho, pois a mais que certa quebra de patrocínios e falta pagamento pelas transmissões televisivas iria provocar a bancarrota da maioria dos principais clubes ingleses.
O presidente da federação portuguesa de râguebi, Carlos Amado da Silva, diz que esta proposta "por ser essencialmente de carácter técnico, irá ser analisada pelos treinadores", mas, a título pessoal, considera que o jogo seria desvirtuado: "O jogo que sairia daqui, chamem-lhe o que quiserem, mas não podem designá-lo por râguebi tal como o conhecemos."
Também o antigo árbitro internacional Jorge Mendes Silva é muito crítico deste conjunto de alterações. "Trata-se de uma mera operação de cosmética ao jogo que não resolve os problemas e desvirtua a verdade do râguebi." A serem adotadas, "iriam originar um novo jogo mas mantendo os riscos de uma modalidade de contacto. Propõe situações impensáveis, como a de um jogador agarrado com bola na área de ensaio adversária dar lugar à reposição com um pontapé de ressalto para a equipa que defende em lugar da habitual formação ordenada". Ora a redução do número de mêlées, fase essencial do jogo, "desvirtua o râguebi". E conclui: "Para mim não fazem sentido nenhum!"
Igualmente para o treinador e antigo selecionador nacional João Paulo Bessa a proposta não resolve o problema fundamental: "Por mais que nos possa custar, o jogo de râguebi não é compatível com a existência de possíveis infeções que se transmitam pelo ar que respiramos. Ou seja, o râguebi que conhecemos não pode e não deve ser jogado antes da existência de vacinas ou medicamentos que controlem a propagação da covid-19, com exceções de poucos casos pontuais e que exigem um controlo constante, testando sistematicamente os protagonistas em momentos muito próximos do jogo e obrigando, provavelmente, a pedidos de quarentena de todos os agentes intervenientes. Situação, portanto, só possível para grupos restritos, isto é, para um reduzido grupo de alto rendimento que, jogando em estádios sem público, verão o seu jogo ser transmitido para as televisões de todo o mundo, potenciando receitas que ajudarão a modalidade a ressurgir no pós-pandemia. É o que vai acontecer na Nova Zelândia", afirma.
E de todas estas pretendidas alterações ressalta uma evidência: "O resultado dos jogos vai ficar mais dependente do critério dos árbitros, o que é um disparate! O que vale é que deverão ter vida curta, pois os principais países não as irão adotar." E termina: "Espero que aqui em Portugal também não sejam aplicadas, porque induzem a uma falsa sensação de segurança e a realidade deve ser esta: o râguebi não pode ser jogado enquanto o controlo da pandemia não for absoluto. Para bem de todos e da nossa saúde."