A máquina da verdade

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Num manifesto de 1999 sobre o documentário cinematográfico, Werner Herzog acusou o cinema vérité de superficialidade e de lidar apenas com a "a verdade dos contabilistas". Após citar um "conhecido representante" da doutrina, que afirmou publicamente que "a verdade pode ser facilmente encontrada pegando numa câmara e sendo honesto", Herzog responde que esse género de realismo é redutor, pois "confunde os factos com a verdade", e defende uma abordagem imaginativa diferente, capaz de alcançar uma "verdade poética" mais profunda.
Alguns parágrafos depois, acrescenta que "a Mãe Natureza não fala connosco, embora por vezes um glaciar possa peidar-se".

O manifesto chamava-se "A declaração de Minnesota", por acaso o berço de um dos mais confortáveis habitantes do território nebuloso entre facto, lenda, liberdade artística, mistificação e pura banha da cobra que cada geração acredita ser especificamente contemporâneo. Bob Dylan especializou-se em dar entrevistas muito semelhantes ao documento de Herzog, intercalando declarações estéticas, aforismos herméticos, patranhas autobiográficas e flagrantes non sequiturs, reduzindo qualquer tentativa de inquérito jornalístico sério a uma pantomina surreal: a performance pública de quem (tal como nas suas letras) depende mais do gesto intuitivo do que da paciente criação de significados coerentes. Quem queria esclarecimento virava-se para dentro - ou então para a escola de crítica cultural fundada informalmente por Greil Marcus, que um dia escreveu ser incapaz de pensar em Elvis sem pensar em Herman Melville e que dedicou a carreira a mostrar-se igualmente incapaz de escrever sobre Dylan sem escrever sobre Moby Dick.

Rolling Thunder Revue, o documentário de Martin Scorsese sobre a digressão de 1975, lançado em Junho na Netflix, reproduz entusiasticamente a abordagem de Dylan à gestão do seu mito e sabotagem do seu próprio registo histórico. Na verdade, é menos um documentário sobre música do que uma paródia do documentário sobre música, executada não como comédia (ao estilo Spinal Tap), mas como truque de ilusionismo. A sequência de abertura, aliás, mostra Georges Méliès a fazer desaparecer uma assistente atrás de um lençol, com a mesma facilidade com que Scorsese conjura posteriores aparições de um cineasta europeu inventado, de Sharon Stone (a "revelar" que se juntou à digressão quando tinha 19 anos) ou de um congressista fictício que diz ter cravado bilhetes para um concerto ao presidente Carter. De vez em quando, Dylan vai aparecendo em trechos de conversas contemporâneas, para confessar estrategicamente - como fez na sua autobiografia - que sofre de problemas de memória, e que tudo aquilo "aconteceu há tanto tempo que eu ainda nem era nascido".

Qualquer documento sujeito a edição esconde necessariamente qualificações da verdade naquilo que decidiu omitir; Scorsese e Dylan decidiram abarafundar o processo preenchendo essas lacunas com tangas, sugerindo que qualquer mito precisa de uma sólida base real, mas que a fabricação é necessária para a sua longevidade, e não desafiando sequer o espectador a distinguir facto e ficção, mas talvez a questionar se a distinção interessa nestas circunstâncias específicas: qual é a importância de saber os pormenores exactos da rotina diária de um músico em 1975, e para quem deve ser importante?

A estreia do documentário inspirou uma série de rubricas de fact-checking em vários sites americanos. Uma dessas "verificações", feita pela Rolling Stone, denuncia como "falsa" a afirmação feita no documentário de que o rosto pintado que Dylan exibiu durante toda a tournée foi inspirado por um concerto dos Kiss a que assistira em Nova Iorque (o artigo revela triunfantemente que os Kiss não deram qualquer concerto em Nova Iorque nesse ano), e que a inspiração original foi afinal um filme francês. Qual a fonte para esta asserção? O próprio Dylan, que mencionou o filme noutra ocasião passada. Caso encerrado, portanto.

O instrumento certo não tem grande utilidade quando é aplicado ao problema errado. O fact-checking como prática autónoma divorciada do jornalismo substantivo é uma inovação relativamente recente e ganhou algum cachê com o Pulitzer atribuído em 2008 a um dos sites americanos pioneiros (o PolitiFact) e pela percepção generalizada de que "a verdade" é mais elusiva do que nunca.

A sua versão portuguesa, o Polígrafo (agora semiabsorvido nos noticiários da SIC) dedicou-se nesta semana a verificar se "de facto" morrem chineses em Portugal, se Duarte Lima era "mesmo rico", ou se Catarina Martins tinha "dito a verdade" quando sugeriu que pessoas que ganham 650 euros por mês têm de pagar taxas moderadoras. Sobre esta última dúvida, uma peça gravada começou por explicar que a lei isenta de pagamento todos aqueles cujo rendimento médio seja igual ou inferior a 1.5 vezes o IAS, ou seja, 653,64 euros. A conclusão foi, portanto, que Catarina Martins "não foi totalmente rigorosa" ao arredondar o valor, pois "os 3 euros e 64 cêntimos fazem a diferença". Assim que a peça terminou, o apresentador em estúdio resumiu-a assim: "Catarina Martins não mentiu, mas foi imprecisa na sua afirmação. Quem ganha 650 euros está isento, mas quem ganha 653 euros, ou seja, mais três euros, já tem de pagar taxas moderadoras." Segundo o critério de verificação do próprio programa, o sumário foi tão "impreciso" como a afirmação que procurou corrigir.

Mais até do que a aleatoriedade das escolhas de tópicos triviais, o problema essencial do modelo (que resvala com frequência para veredictos de compromisso como "parcialmente verdade", etc.) é que, por muito que isto seja contraintuitivo, os políticos não dizem mentiras óbvias assim com tanta frequência. Grande parte do discurso político (e não só eleitoral) consiste em ênfases selectivas, hipérboles tácticas, sinédoques e aproximações: são estes mecanismos retóricos que costumam produzir afirmações suficientemente ambíguas para justificar validação independente, e que, portanto, não vão ter uma resposta simples, rápida e definitiva como "verdadeiro" ou "falso" sem antes fornecer contexto e até, por vezes, expor um contra-argumento.

Tudo isto seriam as funções óbvias de um jornalismo menos vulnerável à ideia de que a acusação mais devastadora de que pode ser alvo é a de "falta de objectividade", e melhor equipado para sintetizar e explicar informação complexa não como "notícia", mas como conhecimento que possa ser usado por qualquer pessoa para entender o que foi noticiado. A ilusão simplista do fact-checking no modelo actual é a de que serve como mecanismo tecnocrata de autodefesa: mais um instrumento de produção da sua sacrossanta neutralidade, que vai sofrer fatalmente o destino de todos os outros (a dúvida sobre a isenção da peça jornalística será transferida para a dúvida sobre a isenção do fact-checking). O efeito prático, até ver, é despromover a própria actividade jornalística, relegando-a para a esfera daquilo que à partida merece solene desconfiança e precisa de avaliação por uma autoridade externa e imparcial: algo que pertence à mesma categoria dos slogans de campanha, dos algarismos do demagogo, das mortes dos chineses - ou daquilo que Sharon Stone andou a fazer em 1975.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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