Foi há precisamente meio século, em 1959, que a mãe de todos os palavrões, "fuck", foi pela primeira vez dita em voz alta na BBC. Um anónimo funcionário municipal de Belfast, com a tarefa de pintar os gradeamentos de segurança à beira do rio Lagan, foi entrevistado em directo num programa da tarde. O entrevistador quis saber se o trabalho era aborrecido, ao que ele respondeu compreensivelmente que sim, "of course it"s fucking boring"..Os últimos cinquenta anos foram relaxando as antigas restrições e os "fucks" prosperaram. A mais recente iteração da palavra proibida ocorreu na semana passada, quando o editor de política do Newsnight (o noticiário nocturno da BBC 2) foi obrigado a citar na íntegra a resposta de um ministro à sua pergunta sobre o último beco sem saída parlamentar onde Theresa May se enfiara: "Fuck knows... I"m past caring, it"s like the living dead in here.".O pequeno vídeo de 45 segundos foi devidamente recortado e posto a circular no seu habitat natural - a internet -, onde se juntou ao ecossistema de momentos televisivos produzidos pelo Brexit, cuja principal função é permitir o florescer de novos "fucks". Esta agregação de momentos já constitui um campo de escolha suficientemente vasto para cada consumidor ser capaz de eleger os seus "fucks" preferidos. O momento em que oito propostas para debate foram sucessivamente derrotadas em votos indicativos, por exemplo. Ou o momento em que uma votação para decidir nova ronda de votos indicativos terminou empatada. Ou o momento em que um debate foi interrompido por várias pessoas despidas a protestar contra o aquecimento global. Ou o momento em que outro debate foi sabotado por uma infiltração de água. Ou o momento em que Uri Geller veio apelar a uma demonstração de "telepatia em massa" para resolver o impasse. Ou os vários momentos fornecidos pela dicção, timbre de voz e expressões faciais de John Bercow, o líder da Câmara dos Comuns, com a sua tendência para gritar "ORDER!" como se estivesse no dueto final da Carmen de Bizet..Faz todo o sentido que o mais complexo e consequente processo político contemporâneo esteja reduzido a uma colecção de non sequiturs ornamentados por "fucks". O fenómeno obedece à pouco conhecida lei da física que estipula que quanto mais um acontecimento mediático se prolonga na criação de não-momentos, maior é a tendência da realidade para compensar essa lacuna dramática com os seus próprios antimomentos. E o Brexit é uma penosa sucessão de não-momentos: algo que não acontece, e não acontece constantemente, ocupando todas as horas do dia a não acontecer, há quase três anos..A fadiga acumulada tem-se feito sentir a todos os níveis, e não só no Reino Unido. Uma das vítimas colaterais em todo este processo é a joi de vivre de Bernardo Pires de Lima, colunista deste jornal e o brexitman da RTP em piquete permanente. Sempre que algo de novo não acontece, a estação pública activa um holofote com sua insígnia iluminando os céus lusitanos, e o brexitman sai a correr da sua brexitcave no seu brexitcar para ir até ao estúdio mais próximo, onde esmurra factualmente os últimos não-acontecimentos até eles se renderem. Mas o Brexit é uma Gotham corrompida, e os não-acontecimentos saem em liberdade pela calada da noite, para voltarem a não acontecer no dia seguinte, e o brexitman arrasta-se de regresso ao estúdio com os seus comentários, e as suas cicatrizes de combate, e o seu olhar de mil jardas, para recomeçar tudo do início, porque apesar de não ser o brexitman que merecemos, é o brexitman de que precisamos.."É mais um momento de impasse... Bernardo... o que é que podemos pensar?", perguntou-lhe Alberta Marques Fernandes num recente 3 às 15 (RTP 3). Quando tudo isto começou, o brexitman ainda conseguia, com louvável frequência, fingir que nem tudo o que não ia acontecendo era absurdo, fingir que a sua vontade secreta não era que a velha Albion se afundasse como a Atlântida, ou fingir que não preferia estar a pintar gradeamentos de segurança à beira do rio Lagan. Esse momento passou. O cabelo do brexitman é hoje tão branco como o gelo que aprisionou o veleiro de Shackleton. A barba cresce-lhe para dentro do rosto. A sua voz parece sair de uma cova profunda. "Eu partilho é... de um grande cansaço... tal como a sociedade britânica, e todos os europeus... e acho que vamos ter de nos habituar... a acompanhar isto... por mais tempo." É isto o que acontece à alma de um homem forçado a dizer, pela octogentésima vigésima sétima vez, as frases "extensão longa do prazo", "saída desordenada", "mecanismo legislativo" ou "Boris Johnson"..A HBO estreou em Fevereiro um telefilme sobre o referendo chamado Brexit: The Uncivil War. Centrado em Dominic Cummings, o obscuro estratega responsável pela campanha da saída (e autor do slogan "Take Back Control"), o filme é um mero veículo para Benedict Cumberbatch reciclar o seu papel-padrão: o génio excêntrico capaz de ver o que os outros não vêem - Sherlock ou AlanTuring à solta na política. A cena inicial mostra-o agachado num cubículo, de frente para a câmara, a partilhar uma revelação: "A Grã-Bretanha emite um ruído." O ruído é dramatizado como um zumbido de baixa frequência que só o genial estratega consegue ouvir, e que supostamente traduz décadas de ressentimentos subterrâneos alimentados por um eleitorado escondido, prontos a vir à superfície - um ruído que o resultado do referendo cristalizou como um enorme "não"..Evidentemente, a pergunta colocada no referendo de 2016 não era de resposta sim ou não, e neste colossal equívoco sintáctico reside parte do problema. À pergunta "preferem sair ou ficar?", o eleitorado ouviu "então o que é que vocês acham sobre as coisas em geral?" e respondeu "NÃO". Um "NÃO" que foi um desabafo conjuntural sobre várias coisas - incluindo a crise dos refugiados, oito anos de austeridade, a curvatura das bananas e a truculenta suspeita britânica de que o resto do continente não perceba quão especiais eles realmente são - mas que a maquinaria ferrugenta da democracia é agora forçada a interpretar como uma palavra de ordem uníssona e a converter em decisões administrativas coerentes. Nada disto é possível e nada disto faz sentido: of course it"s fucking boring. E ruído emitido pela Grã-Bretanha no futuro próximo será um refrão contínuo de novos "fucks".