O medo de contar. "Pai, sou gay. Gosto de homens"

Depois do desamparo que sentiram quando descobriram que gostavam de pessoas do mesmo sexo há outros momentos difíceis para os jovens, como contar aos pais que são homossexuais. Porque nem sempre a reação é a melhor. Há até quem seja violento ou renegue os filhos. <em>(Texto de 5 de janeiro)</em>
Publicado a
Atualizado a

Luís, Sara, Joana, Tavares. Quatro histórias de jovens que assumiram a sua homossexualidade, embora só três deles ainda tenham tido a coragem de contar aos pais. Porque é difícil, porque têm vergonha, porque sabem que defraudam expectativas. E porque sabem que a reação pode ser violenta. Margarida, Hermínia e Ilda - a história de três mães que aceitaram, cada uma à sua maneira, a orientação sexual das filhas.

Luís: viver com os insultos do pai

Passou por momentos muito difíceis quando percebeu que gostava de outros rapazes. E continuou a passar momentos difíceis quando decidiu contar ao pai sobre a sua orientação sexual. Luís Martins, 23 anos, tem sofrido ofensas desde então, mas prefere não as reproduzir porque lhe fazem mal, causam-lhe sofrimento. Ao ponto de a relação entre os dois lhe parecer estar irremediavelmente destruída. "Acho que não pode ter remendo. Já desisti de tentar."

Para um rapaz introvertido, que nunca teve muitos amigos na escola e "com capacidades sociais muito inexistentes" - como o próprio se define - assumir a sexualidade foi um processo doloroso, para o qual contou com a ajuda da psicóloga que tinha procurado para orientação profissional. Tinha 18 anos, mas desde os 12 que pensava em rapazes. "Nessa altura fiquei muito assustado, pensei que entre tanta gente tinha logo que me calhar a mim ser gay. Ouvia constantemente que não era uma coisa boa, que era uma ofensa."

Mesmo com ajuda psicológica os progressos não eram muitos - agora que tinha amigos receava perdê-los por causa da sua sexualidade. Ganhou coragem e acabou por contar a uma amiga que lhe deu todo o apoio.

O clique deu-se quando começou a acompanhar no YouTube um casal gay que fazia vídeos sobre a sua vida, uma vida de casal feliz. "Um dia pensei 'quero ser feliz como eles são' e a partir daí houve uma grande revolução dentro da minha cabeça e contei à minha mãe."

Foi a parte mais fácil, o pior viria depois. Os pais estavam então separados. A mãe já lhe tinha perguntado duas vezes se gostava de rapazes, e ele a negar. Mas também já estava farto de ela lhe apontar na rua as raparigas bonitas ou de lhe dizer que esta ou aquela estavam solteiras. Sobretudo tinha decidido ser feliz. Como o casal do YouTube que tanto o inspirou.

"De hoje não passa", recorda. Tinha reunido toda a coragem do mundo, mas ironicamente, naquele dia, a mãe quis dar um passeio. "Quando chegámos a casa, pedi-lhe para se sentar no sofá porque tinha uma coisa para lhe contar. Estive uns minutos a ganhar coragem e disse-lhe 'mãe, sou gay, gosto de homens'."

Estava dito aquilo que o atormentou durante tantos anos. A mãe fez um ar de surpresa, perguntou-lhe se estava a gozar. "Mas ficou tudo super ok, disse-me que continuava a gostar de mim, que podia trazer a casa quem quisesse. Nas duas semanas seguintes, correu tudo muito mal, descarregava tudo em mim. Até que ela foi pesquisar e encontrou a Amplos (a associação que apoia pais de homossexuais) e a partir daí ficou tudo bem. Disse-me que ia ter uma vida mais difícil, que tinha de ter cuidado por causa da discriminação que ia sentir."

Ao pai só contou três meses mais tarde. Sabia que não ia ser a mesma coisa. Estava mais nervoso, mais apreensivo. Falou com a Amplos, aconselharam-no a ir com mais calma, a não dizer de rompante como disse à mãe. "Tenho uma coisa para te contar, sei que posso confiar em ti, gosto muito de ti, tu também gostas muito de mim..." Foi o aquecimento, depois veio o resto: "'Pai, gosto de homens'. Reagiu mal, disse que era a pior coisa que lhe podia ter dito. Esteve muito tempo em negação, sempre com ofensas verbais. Numa conversa disse que eu já não era o filho dele, que o filho dele era a pessoa que estava naquelas fotografias da sala."

Luís não esconde a mágoa por estas e por muitas outras palavras que ouviu da boca do pai, logo numa altura em que por causa das idas à psicóloga tinham uma boa relação. "Diz-me que não sabe se sou homem ou se sou mulher, que não vou ter filhos. Sou um homem! Depois vem a conversa que deus criou o homem e a mulher e que eu não sou uma coisa nem outra. Uma vez disse-lhe para então perguntar a deus o que é que eu sou..."

Os pais voltaram a viver juntos. Quando acontecem estas situações, a mãe de Luís não interfere. Diz-lhe que fala depois com o pai em privado sobre o assunto.

É uma figura masculina bonita. Alto, olhos claros, um sorriso imenso. Não tem quaisquer dúvidas sobre o seu corpo, sobre aquilo que é, apenas gosta de homens. Não foi uma escolha. Em tom de brincadeira diz estranhar que as raparigas não se metam com ele. "Acho piada a isso, porque até acho que sou giro, talvez porque não lhes dou bola..."

Só teve o primeiro namorado aos 21 anos e sente que perdeu um pouco da sua vida - "porque as pessoas hetero começam a explorar a sexualidade mais cedo".

Os medos, sempre os medos, de estar a fazer algo errado, dos preconceitos sociais. "Roubaram-me um pouco da minha vida e da minha felicidade... se calhar fui eu que roubei a mim mesmo por causa dos meus medos." Roubar é uma palavra tão forte quando impede de viver a vida livremente e Luís sabe-o bem...

Desde que assumiu que era gay junto dos pais, Luís terminou uma licenciatura e um mestrado em Engenharia Química. Atormentado por um lado, livre por outro porque meteu na cabeça que iria ser feliz. Mas junto do pai sente-se muito mal. "O único tempo que passo com ele é às refeições, mas sempre que posso tento não almoçar ou jantar com ele. Quero sair de casa o mais depressa possível."

Mas para que isso aconteça precisa de um emprego estável e é nesta matéria que assumir que é gay lhe traz alguns medos de ser discriminado.

Há, no entanto, que não esquecer que Luís um dia decidiu que ia ser feliz. E por muito sofrimento que lhe cause o ponto a que chegou a sua relação com o pai, tem os seus sonhos: ter uma boa vida profissional, uma casa, um companheiro, ser pai... Como qualquer filho de deus.

Sara: a vergonha de desiludir os pais

"Não tenho vergonha de ser como sou, mas vergonha por eles, pelos meus pais. Tenho medo de os desiludir, de quebrar as expectativas que têm em relação a mim." Sara fez o coming out junto dos amigos há três anos mas não consegue assumir junto dos pais que é bissexual.

Os pais, diz, são conservadores. Acham a homossexualidade errada, especialmente a mãe que, de vez em quando, faz comentários homofóbicos. "Isso retrai-me, não acho que seja uma coisa errada, mas para eles é. Sei que não me vão rejeitar, tenho 99% de certeza de que não vai acontecer. Tenho uma família muito unida, somos três."

Então porque não conta? Sara, 23 anos, estudante do 5.º ano de Medicina, desenvolve um discurso justificativo para a falta de coragem em assumir a orientação sexual junto dos pais, ela que concorda que ainda não tem tudo resolvido na sua cabeça, que preferia ser hetero porque teria a vida facilitada - "não teria de lidar com o problema de ouvir os meus pais, gostava de ser mãe e numa relação hetero é mais fácil, é mais fácil andar na rua... mas na verdade o preconceito vem mais de dentro, o medo que ele surja é meu".

Acusa a responsabilidade de ser filha única. "Se tivesse irmãos as expectativas estavam divididas, assim estão focadas em mim, é de mim que esperam netos."

Sara define-se como uma mulher muito feminina, adora saltos altos, usa saias, vestidos e maquilhagem. Só tem o cabelo curto porque o doou a uma instituição inglesa que faz perucas para crianças. Os homens metem-se com ela na rua. Quem conhece a Sara ativista da Rede Ex-Aequo, que vai às escolas falar de sexualidade, nem acredita que ainda não teve coragem de sair do armário perante os pais. E ela lá diz que vai contar, mas nunca acontece. "Fico com medo, porque não acho que é o momento certo, não me sinto preparada. Já pensei em mil e uma formas de contar, ou de escrever, acho que vou começar a chorar..."

E outra vez o peso dos sonhos que os pais têm para si, do futuro que lhe desenharam sem conhecerem as suas preferências. "Acho que vai ser uma quebra das expectativas que imaginaram para mim. A minha mãe diz 'um dia quando tiveres um marido, quando tiveres filhos...' Quer que eu tenha uma vida tradicional. É verdade que posso ter isso tudo, mas vai ser um choque - por não fazerem ideia, por causa das coisas que dizem."

Sara pode casar com uma mulher - o casamento gay é legal em Portugal desde 2010. E pode ter filhos com a sua parceira porque a coadoção por casais do mesmo sexo foi aprovada em 2013. Só a adoção plena é que foi rejeitada.

O problema é que nem tudo está resolvido na sua cabeça. É como se ouvisse duas vozes diferentes: "Às vezes penso que devia esquecer que tenho atração por raparigas. Já me senti forçada a sair com rapazes, mas não foi consciente. Penso nisso mas há uma vozinha que me diz 'Sara, isso é estúpido, não há nada de errado'."

Incomoda-a ter de mentir constantemente, até porque considera que a sua orientação sexual diz muito pouco sobre quem é. E mesmo assumindo junto dos amigos, tem problemas em dar as mãos ou ter demonstrações de carinho na rua. "Tenho algumas coisas por resolver, dou a imagem de que está tudo ok, mas a verdade é que não estou totalmente em paz, se calhar por isso ainda não contei aos meus pais."

Não encaixava no estereótipo de lésbica, diz. Adorava barbies e nenucos. "A imagem criada de mulheres que gostam de mulheres é diferente da que eu passo." De vez em quando ia tendo uma ou outra paixão por rapazes, mas andava muito focada nos estudos e recusava pensar no assunto, até porque lhe podia trazer a evidência que não queria. Mas aos 19 aceitou que gostava de raparigas. Hoje assume-se como bissexual. "Mantenho tudo em aberto, mas nunca me envolvi sexualmente com um rapaz."

Quando se apercebeu de que gostava de raparigas, o mais difícil foi desenhar o futuro. Porque até ali só se imaginava com um homem, como a sua mãe. Mas agora já consegue dizer que daqui a dez anos se vê "com alguém". "Provavelmente com uma rapariga, mas também pode ser um rapaz. Gostava de adotar, mas gostava de ter um filho biológico, gostava de engravidar, de amamentar..."

Joana: o risco de se assumir num país árabe

Joana Matos fez o seu coming out há três anos, tinha então 16. Quis o destino que não aguentasse calar mais a sua preferência por raparigas num país onde há pena de morte para homossexuais, o Dubai. Para os estrangeiros a pena é a deportação. "Vivi uma grande crise existencial, era um sítio muito conservador, mas a escola internacional onde andava tinha um ambiente muito aberto, a nível de etnias, de religiões, havia casais bissexuais, dois casais de raparigas. Via aquilo que queria à minha frente e pensava para mim 'não estás a ser tu própria'."

Até que um amigo, um rapaz da Jordânia, lhe perguntou sobre a orientação sexual: "Não sei bem, mas acho que sou gay. E ele foi superimpecável com o meu desabafo. Estava superconfusa, o meu sofrimento vinha dai. Era a altura de assumir, já não queria saber se era errado, só havia uma coisa para eu me identificar e dizer numa palavra. Já não me considerava hetero, sou lésbica."

Duas semanas depois da conversa com o amigo, Joana falou com as três irmãs - é trigémea e tem outra irmã por afinidade, filha do padrasto e nove meses mais nova. Estavam a ter "uma conversa sobre os pais" e quis partilhar com elas o "seu" segredo, aquilo que a afligia e que tanto lhe tinha custado a assumir, que via como algo errado desde que aos 12 anos se encantava a ver no YouTube compilações sobre a vida da comunidade LGBTI. Nem sabe como lá chegou, mas sempre que aparecia qualquer coisa com raparigas queria ver, depois achava que era errado, depois pensava 'estou sozinha em casa, posso ver' e via, a medo, como se estivesse a ver pornografia ou algo de muito mau.

O momento com as irmãs proporcionava a revelação. "O meu coração a bater a mil... Comecei, eu, eu, eu... e não me saía nada, desisti de falar e fui pôr um vídeo na net The Coming out Song, da Ally Hills, uma youtuber lésbica, e disse-lhes 'vamos ouvir isto, ok?'"

Uma das irmãs mostrou-se confusa porque duas semanas antes andava com um rapaz. "Uns beijinhos não magoam ninguém. Não sentia repulsa nem atração, era indiferente. O contacto sexual é apenas uma atividade física, apetece-me, bora. Mas não valorizo as coisas que fiz com rapazes, porque era mais eu estar lá desconfortável. Quando me perguntam sobre a minha primeira relação sexual, penso sempre na minha primeira namorada", afirma Joana, que agora estuda Psicologia em Lisboa.

Atropela-se nas palavras, fala depressa e com naturalidade, mistura os episódios. Mexe no cabelo longo, uma e outra vez. Volta à cena em que fez o coming out com as irmãs e ao momento em que tiveram de interromper a conversa devido à chegada dos pais. E se contar às irmãs, tão importantes para si, lhe tinha retirado um peso dos ombros, havia outro problema para resolver - os pais, ou melhor, a mãe e o padrasto. "Não fazia questão de esconder, mas não fazia questão de contar. Havia sempre imensos problemas com os namorados, as minhas irmãs não podiam estar sozinhas em lado nenhum, o meu padrasto dizia 'ofende-me o íntimo, lá fora fazem o que quiserem'."

Antes que os pais soubessem, Joana arranjou uma namorada na escola internacional do Dubai. Conheciam os riscos e os cuidados a ter e, por isso, sabiam onde estavam as câmaras. Até que um dia, com a escola deserta, e ao encoberto das lentes, decidem dar um beijo rápido de despedida. Foi uma coisa de segundos, mas nesse momento passa um colega a correr. Ficam petrificadas, mesmo sem saberem se ele as tinha visto. "Oh fuck! Fiquei num completo pânico interno. Em três dias, toda a escola sabia, mas não de uma forma negativa, tivemos o apoio de todos e até fomos nomeadas para the cutest couple [o casal mais fofo], mas não dava e o delegado do nosso ano propôs que concorrêssemos na categoria de melhores amigas, mas não aceitámos."

Joana começou a ir a casa da namorada todos os fins de semana, os pais dela sabiam desde o início. Na sua casa começa a haver suspeitas, passava muito tempo fora, aparecia com chupões no pescoço que escondia com o cabelo. Ninguém mencionava nada, embora houvesse tensão e os pais mostrassem estar chateados. "Não queriam falar daquilo, se não falarmos não é real."

Até que os pais convidam a namorada de Joana para uma festa lá em casa. E como ela sofria de fadiga crónica, às tantas teve de deitar-se. Joana deitou-se ao lado enquanto ela descansava. O padrasto foi ao quarto e numa atitude "passiva agressiva, mas não muito passiva, disse que não queria convidados lá em cima".

Ficou em pânico com receio do que pudesse acontecer... Mas não aconteceu nada, havia zanga mas não se falava no assunto.

Duas semanas depois, os pais foram a um jantar e as raparigas não os acompanharam. Joana decide ir visitar a namorada, mas mal chega a mãe começa a ligar-lhe. O padrasto pedia a presença delas. Joana argumenta que tinha andado meia hora de bicicleta com 40 graus, que iam ver uma série e comer piza. A certa altura as chamadas eram tantas que desliga o telemóvel. Até que o padrasto bate à porta.

"Senti medo, o chão a cair. Estava com uma cara de enterro, tira-me logo o telemóvel e foi a gritar comigo o caminho inteiro. Conduzia a toda a velocidade e eu pensava que ia morrer ali, enganou-se várias vezes e levámos 40 minutos em vez de 20 a chegar. Só ele a gritar e eu em silêncio. Se fosse com um rapaz faria uma cena, mas moderadamente. Quando chegámos disse-me 'agora põe um sorriso na cara e finge que estás feliz'." Mas Joana não estava, saltou a vedação e foi para casa. No dia seguinte a mãe estava preocupada, mas mostrou-se satisfeita por a filha estar feliz.

Isto aconteceu no final do 12.º ano, Joana veio depois para a faculdade em Portugal. A mãe e o padrasto ainda vivem no Dubai. O seu coming out não deu lugar a uma conversa profunda, nem sequer com o pai que vive em Lisboa, e "é na boa com a situação".

Os milhares de quilómetros de distância diminuem o conflito latente. Mas há sempre reencontros, como quando a mãe veio de férias e coincidiu com a altura em que Joana decidiu deixar crescer os pelos das pernas e dos sovacos e veste uns calções pelos joelhos para ir à marcha gay. "A minha mãe disse-me que não ia sair de casa assim, mas eu sentia-me espetacular, era revigorante, era empoderamento quando as pessoas olhavam para mim..."

"Perguntou-me se queria mudar de sexo, disse que eu estava a desrespeitar a família, mas respondi-lhe que estava superatrasada. Quando voltei estava com um ar zangado, argumentou que aguentava a minha sexualidade mais isto não."

Joana está confortável com o corpo, não quer fazer mudanças. Usa sempre calças e ténis e o cabelo longo, diz, equilibra. "Sei que dá uma imagem feminina, mas não me vão ver como a mais feminina de sempre."

Tavares: o apoio e o orgulho da mãe

Tavares. Prefere este nome por ser mais neutro. Vem acompanhada pela mãe que a apoia em tudo. São cúmplices - enquanto a mãe fala, de vez em quando a filha pega-lhe na mão a agradecer o apoio que lhe dá, o orgulho que deixa transparecer por ela.

A mãe, Iria Ferreira, está bem segura: "Um filho é o bem mais querido. As pessoas valorizam mais o que os outros dizem na comunidade, na família, e preferem passar pela crueldade de um pai que não apoia um filho por causa da sua orientação sexual. As pessoas LGBT existem há gerações e a sociedade atual tem de ser mais aberta, há muito conservadorismo e preconceito. As figuras públicas deviam assumir-se para ajudar a entender que é normal. Tem de haver uma aceitação do outro, isso é que é um valor alto, que devia fazer parte da educação, em casa e na escola - cultivar a aceitar a diferença."

Com um discurso destes, seria de esperar que a mãe de Tavares, de 19 anos, lhe desse todo o apoio quando ela lhe contasse que é gay. E ela queria que os pais fossem os primeiros a saber. A intenção era desvendar-lhes ao mesmo tempo, mas como estão separados, a mãe foi a primeira.

Mas antes disso houve momentos de muito desamparo: desde os 7, 8 anos, que gostava de raparigas, queria falar disso mas não sabia como, não via o que sentia em lado nenhum. "Sentia-me desamparada, sem representação." No 5.º ano ouviu os colegas a chamarem gays e perguntou à mãe o que era. Depois da explicação, ficou satisfeita. Afinal, havia um nome para aquilo que sentia!

Onde andavam então as pessoas com quem se pudesse identificar, com quem se pudesse sentir representada? Passaram cinco anos até que encontrou no YouTube esse espelho que tanto procurava. "Passei dias a procurar mais informação. Descobri que as pessoas podiam viver saudavelmente e podiam casar-se, namorar, falar do assunto e não era um drama."

Queria contar à mãe. Olhou para o calendário, não podia ser num período de testes porque não queria enervar-se, para o caso de ser uma coisa mais sentida que pudesse afetar os estudos. Tinha de ser um dia normal, que não fosse extraordinário, que não fosse o aniversário de ninguém. "A minha mãe estava na cozinha a fazer sopa, chamei-a à sala e disse-lhe 'mãe, não gosto de rapazes, gosto de raparigas'."

A mãe abraçou-a, disse-lhe que estava tudo bem. "É a minha filha, seja o que for que vier daqui eu tenho de cá estar para ela." Tavares, mais uma vez, pega na mão da mãe...

Tavares recebeu o apoio que queria. Esta estudante de Lazer e Animação Turística tornou-se ativista da Rede Ex-Aequo. "Acho que me desenvolvi, cresci." Um crescimento e empoderamento pessoal que conseguiu desde que se assumiu. "A partir do momento em que decidi contar, quero que as pessoas saibam como sou."

Pedi à minha filha que não fechasse todas as janelas. Fui egoísta

Na universidade, Ana Teresa conhece uma rapariga com quem começa a dar-se muito. Ana, tal como ela. Um ano mais nova. As duas bonitas, femininas, com aqueles sorrisos de gente bem resolvida.

A mãe, Hermínia Prata, conta: "O tempo foi passando e a amiga sempre presente, estavam sempre juntas. Até que um dia em casa, sozinhas, a minha filha diz-me 'mamã, preciso de falar contigo'. Sempre conversámos muito. 'É uma coisa que queria ter-te dito há muito tempo, escrevi uma carta, mas prefiro falar. Estou apaixonada e tu sabes por quem é.' Aí eu comecei a tremer por dentro. 'É pela Ana'."

"Foi um murro no estômago! Perguntei-lhe 'tens a certeza? Vocês criaram uma grande amizade, será que não há confusão?'" Foram os primeiros momentos de negação para a mãe que depois da conversa ainda lhe lançou uma última súplica. "Só te peço que não feches as janelas todas." Mas Ana já tinha escancarado não só as janelas como as portas à coragem de assumir uma relação que lhe permitia ser feliz. Hoje, terminou a especialidade médica, a companheira está a terminar a dela. Pensam casar e depois ter um filho.

Nessa noite Hermínia chorou muito, não dormiu nada. Queria negar, mas rejeitar era verbo que não entrava no seu vocabulário de mãe. Na manhã seguinte, quando chegou ao trabalho, contou aos colegas - sempre teve um grupo de apoio no trabalho, amigos que também lhe valeram nesse período em que, para não prejudicar o último ano de Ana na faculdade de Medicina, entre as duas decidiram não contar ao pai. "O meu marido é homofóbico, tem um discurso homofóbico, para ele são tudo aberrações. Achei que seria melhor contar-lhe depois de a Ana acabar o curso porque temia a sua reação."

"Foi um ano terrível para mim. Eu saber, a querer disfarçar, a querer que não se notasse tanto. Mas logo no início de elas se conhecerem o meu marido dizia-me que a outra rapariga era lésbica e eu a dizer sempre que não."

Até que um dia Hermínia se apercebe de que pai e filha estão a conversar. E a reação, mesmo para um pai que ainda hoje atira bocas homofóbicas, foi tudo menos o que esperava. Disse que já sabia, aceitou a relação lindamente, aceitou a outra Ana como família.

"Sinceramente, hoje não consigo conceber que haja pais que rejeitam os filhos pela orientação sexual. Nasceram assim, como podiam ser canhotos, não é uma opção, sofrem para não irem contra os pais, sabem o que os pais esperam deles. E alguns pais ficam chateados por os filhos não falarem antes, por não os terem podido ajudar."

Isto é o que agora pensa, depois de ter feito o seu caminho, depois de ter procurado ajuda na Amplos, onde passou a ser voluntária. Hoje diz que tem muito orgulho na filha que sempre foi introvertida e que se soltou, passou a ser mais comunicativa, até a dar palestras. Mas houve uns tempos em que teve vontade de que isto fosse apenas uma fase.

"Cheguei a questionar se a outra rapariga não a desencaminhou. Mas não nos apaixonamos por quem queremos, é por quem nos dá aquele clique. Nunca fui homofóbica, mas quando nos toca é diferente. Tenho crescido muito como pessoa."

Se preferia que a filha fosse hetero? Sim, por causa do estigma, do receio do preconceito. Não há pais que queiram ver filhos discriminados em sociedade. Mas a vida tem-lhe dado lições, como no dia em que foi ao supermercado com a nora e lhe perguntaram afinal que idade já tinha o filho. Respondeu, à espera de um atitude de repreensão, que era a namorada da filha, não do filho. E a resposta foi tranquila - "também tenho uma irmã que é gay".

Quando Ana lhe contou que gostava de raparigas, Hermínia pediu-lhe que não fechasse todas as janelas, na esperança de ser uma fase. "Agora cheguei à conclusão de que fui egoísta. Quando temos um filho fazemos o filme à nossa imagem e esquecemo-nos de que são pessoas, que têm a sua maneira de ser e ver o mundo. O que temos de interiorizar é que é a forma de serem felizes, que é o caminho deles."

Há pais que são violentos, outros renegam os filhos

Se pudesse alterar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Margarida Lima de Faria incluiria o direito à visibilidade. "Viver na invisibilidade é das coisas mais dramáticas na vida das pessoas. Se a pessoa não pode ser quem é, tem uma vida destruída. Um segredo em relação às pessoas que se ama é dolorosíssimo."

O segredo de que fala a fundadora da Amplos - associação de apoio a pais de jovens gays - é aquele que muitos filhos guardam em relação à orientação sexual. Por medo dos pais. Seja qual for esse medo.

Alguns terão razões para isso, há casos muito violentos, conta Margarida. Mas também há pais que ficam tristes por os filhos não terem partilhado mais cedo com eles o peso que carregavam. E nem sempre a intensidade com que verbalizam a sua reação corresponderá às ações posteriores.

À Amplos - que em cerca de dez anos de existência já apoiou cerca de 300 famílias - chegam vários pedidos de ajuda de pais, mas também de jovens. "Alguns pais são violentos com os filhos, verbal e fisicamente. Claro que em regra a violência é mais sobre eles próprios, mas acaba por ser uma violência sobre os filhos porque ficam prostrados, deprimidos, pensam em suicídio. Afastam-se, zangam-se e implicam com eles por tudo e por nada."

E há pais que renegam os filhos. Como o caso da amiga de Margarida que, quando contou ao pai, ele decidiu cortar relações com ela. "Agora ela tem um cancro, o pai é médico, sabe que ela está doente e não lhe telefonou. Nunca mais lhe falou."

Aos pais que reagem mal, Margarida diz-lhes que estão a hipotecar a relação com os filhos. Porque as coisas podem vir a consertar-se mas ficarão para sempre as marcas daqueles momentos tão decisivos para a vida dos jovens em que os pais disseram coisas ou tiveram reações inenarráveis.

"Muitos dizem que a homossexualidade é algo que os perturba e os desgosta. E o que eu lhes digo é que estão a dizer que os próprios filhos os perturbam e os desgostam. E não se pode dizer isso a um filho. Isso é rachar uma pessoa de cima a baixo."

Margarida fundou a Amplos com o marido, para ajudar pais que passaram pelo mesmo que eles, embora a sua situação tenha sido tranquila. Têm duas filhas - a que era a menina dos vestidinhos e dos folhinhos é lésbica. Admite que se fosse a sua única filha poderia ter ficado mais triste, pela quebra das expectativas. Mas não teve dificuldades em aceitar uma filha gay. Agora ajuda outros pais a seguirem o mesmo caminho.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt