Internacional
05 fevereiro 2023 às 00h13

"Há uma mudança nestes 12 meses em Putin: o gestor competente foi substituído pelo autocrata ideológico"

Convidado da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) na mais recente sessão de "Meet the Author", Anthony Marra falou do livro O Czar do Amor e do Tecno, o único que tem traduzido para português, e do seu fascínio pessoal pela Rússia, destacando o grande valor dos seus escritores, mas criticando a atual liderança do país.

Vamos começar pelo O Czar do Amor e do Tecno até agora, o único livro publicado por si traduzido em português. O período histórico vai dos tempos de Estaline, o final dos anos 1930, até à atualidade. Por que não um capítulo sobre os tempos dos czares?
Por alguma razão temos de traçar a linha em algum lugar. Acho que estava interessado no Czar do Amor e do Tecno para ver como certos aspetos de determinados padrões se repetiram ao longo do tempo na história russa e, em particular, como certos aspetos do estalinismo ressurgiram na Rússia nos últimos 20 anos. E uma das coisas que estava a tentar ver dentro do romance ou coletânea de pequenas histórias, é como os traumas intergeracionais se perpetuam e são passados adiante. Para mim, a sensação foi que devia começar em 1937, no auge do terror da era estalinista, e no quão pior a vida ficou para os cidadãos da União Soviética em termos de repressão política. Começando no ponto alto e depois observando como as formas de opressão se tornaram talvez mais subtis ao longo dos anos, mas não desapareceram completamente.

Não olha então para 1917 como o verdadeiro momento de ruptura, vê antes estes anos de terror de Estaline como o momento que poderia ajudar-nos a entender a Rússia de hoje, muito mais do que os tempos revolucionários, muito mais do que os próprios tempos do czar?
Acho que sim. Acho que houve muito mais violência política em 1937 do que em 1917. Em 1917, ainda havia direções diferentes que a revolução poderia seguir. De certa forma, 1937 excluiu qualquer um dos caminhos alternativos que aquele ano de 1917 permitiu. Na minha opinião, 1937 é quando a porta é fechada e há realmente apenas um caminho por esse corredor. Então, 1937, para mim, parece o ponto em que o aparato soviético atingiu o seu zénite de horror. E isso é tudo um ponto natural para eu começar este livro, com as ramificações daquele ano e as repressões estalinistas, as consequências políticas e culturais desses eventos e como ecoam através das décadas e até ao século XXI.

É de ascendência italiana, sem ligações familiares à Rússia. Como explica, enquanto americano, o seu interesse desde jovem pela Rússia. Como é que começou?
Suponho que uma das minhas primeiras lembranças seja dos meus pais a ouvir a rádio quando o Muro de Berlim caiu e dois anos depois a ver na televisão como a bandeira vermelha foi tirada do Kremlin, a bandeira russa foi levantada e a União Soviética foi oficialmente dissolvida. Vi isso muito jovem e percebi o quão monumental aquilo foi para os meus pais. Nasci em 1984, atingi a maioridade no chamado "fim da história" e creio que sempre me senti curioso sobre o que é que a história afinal tinha "acabado". Quando estava na faculdade estudei Literatura Russa na Universidade Estatal de São Petersburgo. Para mim, a história e a literatura russas pareciam-me apenas uma forma de tentar contextualizar e entender melhor a história americana ao longo do último século. Em última análise, acho que acabei por chegar à história russa como assunto para este livro através da própria literatura. Há muitas referências no Czar do Amor e do Tecno a várias obras de literatura russas.

Mas além de ler muito, também viajou pela própria Rússia, certo?

Sim.

Esteve em São Petersburgo, mas também na Sibéria e no Cáucaso, até porque a Rússia é tão grande que para se ter uma verdadeira perceção do país é preciso viajar.
Sim, é preciso viajar muito. Mas sobretudo acho que a literatura da Rússia, para mim, parece tão diferente das tradições literárias da América em termos da incessante busca de respostas para as grandes questões da vida. Como vivemos vidas morais?

Para entender a Rússia é preciso viajar, conversar com as pessoas, mas também ler muitas obras dos seus autores clássicos?
Diria que não apenas para entender a Rússia, mas para entender o que significa ser humano. Acho que há uma razão pela qual escritores como Tolstói, Tourgueniev e Dostoiévski são lidos em dezenas e dezenas de idiomas em todo o mundo. Falam da condição humana comum de uma maneira que acho que não acontece na minha geração, além de que os escritores americanos são quase céticos em relação à sinceridade com que essas perguntas são feitas na literatura russa. Vim para a Rússia enquanto tema, primeiro através dos seus romances e literatura, e depois através das minhas experiências de viajar por lá.

Quando foi para a Rússia já estava na era de Putin. Viu mudanças na forma como Vladimir Putin lida com a Rússia, que lidera desde de 2000 até agora? Viu mudanças mesmo durante a sua estadia lá?
Acho que quando viajei pela primeira vez para a Rússia havia uma crença entre os russos comuns de que Vladimir Putin era, acima de tudo, um gerente competente e que, em troca de desistir de certas liberdades, um cidadão poderia ter garantido um grau de segurança e prosperidade. Acho que certamente nos últimos 12 meses, mas diria que até voltando à invasão da Crimeia em 2014, há uma mudança em Putin, o gestor competente, que foi substituído por Putin, o autocrata ideológico. E nota-se esse impulso para reconstituir o império russo perdido, essa ideia de que ele é uma figura de importância histórica mundial, a par com Pedro o Grande ou Catarina a Grande. Penso que há um grau de megalomania que está a governar as suas decisões neste momento, mas acho que não era tão aparente quando cheguei.

Porque é que a Chechénia é tão importante para si, pelo menos nos seus livros? Era uma república separatista da Federação Russa marcada pela violência, mas para um romancista que escreve sobre a Rússia, porque é a pequena Chechénia tão central nos seus livros?
Acho que é fundamental para entender a ascensão de Putin. Penso que sem a Segunda Guerra da Chechénia haveria uma chance de nem sabermos ou pelo menos não nos lembrarmos do nome de Vladimir Putin.

Foi depois da guerra em que submeteu os separatistas chechenos que ele se tornou realmente um líder com lugar na história russa?
Penso que instigou a forma como se resolveu a Segunda Guerra da Chechénia. Fez isso, em grande parte, para consolidar o poder dentro do Kremlin e construir uma base de apoio popular em todo o país. E o que é facto é que a brutalidade com que Putin travou a guerra na Chechénia é algo que conseguimos ver hoje na Ucrânia, mas penso que isso também diz muito sobre o facto de isto não ser um assunto realmente político, tanto quanto é uma tentativa de construir uma base de apoio dentro da própria Rússia. Isto é difícil de entender, particularmente para a audiência americana. Não sei se se recorda quando em 2013 houve um ataque à Maratona de Boston que foi perpetuada por dois chechenos? Muitos americanos achavam que os dois homens eram da República Checa, não da Chechénia. Enquanto país não conseguíamos apontar um lugar exato no mapa que fosse fora da nossa esfera.

Portanto, como disse, esta pequena república que é extremamente periférica acaba por ser muito central para a forma como Putin chegou ao poder, como o controlou e como o manteve.
Penso que é uma boa razão para se prestar atenção à história deste pequeno sítio. Mas a um nível mais pessoal, quando cheguei à Rússia estava a viver ao fundo da rua de uma academia militar para cadetes e via miúdos de 18 anos em uniformes militares azuis a marchar pelo bairro em formação. Eles marchavam várias vezes ao pé das estações de metro e nas horas de ponta viam-se pedintes que também vestiam os uniformes azuis, mas os deles não estavam obviamente tão bem cuidados e a maioria tinha até já perdido pernas. Lembro-me que era uma cena que via no meu dia-a-dia, estes miúdos de 18 anos nos seus uniformes azuis a marchar junto de veteranos destituídos que eram apenas uns anos mais velhos que eles. Lembro-me de pensar várias vezes sobre o que é que separaria estes dois grupos de jovens homens, além de alguns metros de asfalto e uns poucos anos, mas a resposta é obviamente a guerra na Chechénia. Isso foi o que começou por me deixar interessado em aprender mais sobre o assunto, não tinha qualquer intenção de escrever alguma coisa sobre isso, queria apenas aprender um pouco mais sobre este sítio tão central para perceber a Rússia onde me encontrava. Ao longo dos anos, de forma gradual, acabou por se tornar naquilo que viria a ser este livro.

O seu próximo livro a ser publicado em Portugal tem como título Mercury Pictures Presents e é aparentemente sobre como Hollywood moldou a América. No entanto, é um romance bastante político que se passa durante a Segunda Guerra Mundial e fala de propaganda e de totalitarismos. Porquê esta paixão por política nos seus romances e porquê trabalhar sempre com o passado?
Cresci em Washington onde a política está na ordem do dia, a indústria é política, tudo é político lá. Os meus pais trabalharam no governo ao longo dos anos e penso que entender a forma como a política funciona é uma das coisas mais importantes que podemos fazer enquanto cidadãos de um qualquer país. Parece-me que estes momentos de transformação política, enquanto romancista, são incrivelmente ricos dramaticamente. São momentos que amplificam o conceito de escolha moral de formas que acho muito interessantes, quer como escritor, quer como leitor. Relativamente à razão pela qual selecionei Hollywood durante a Segunda Guerra Mundial como tópico, na verdade vem de uma das primeiras histórias do Czar do Amor e do Tecno, é uma história sobre censura e propaganda na cultura visual da Rússia de Estaline. À medida que ia pesquisando sobre o assunto, fui encontrando histórias da América e sobre a máquina de propaganda em que Hollywood estava envolvido durante a Segunda Guerra Mundial. De forma semelhante ao que acontece no Czar do Amor e do Tecno, encontro-me atraído por histórias em que as pessoas são colocadas em situações muito desafiantes em que fazer boas escolhas se torna praticamente possível. E esse foi certamente o caso em Hollywood durante a Segunda Guerra Mundial, particularmente com a vasta influência propagandística e com vários filmes a serem realizados por refugiados da Europa.

Muitos deles alemães, judeus alemães.
Exatamente. E se fosse um cidadão alemão, mesmo que chegasse aos Estados Unidos como refugiado judeu, era classificado como inimigo e tinha de viver sob recolher obrigatório e não podia viajar mais do que cinco milhas de casa. Portanto, quando a indústria da propaganda é gerida por indivíduos que nem sequer podem apreciar as liberdades faladas nos seus filmes, o que é que isso diz da visão da América que estão a apresentar ao país e ao mundo? Parece-me que são questões históricas, mas que também são relevantes para entendermos o mundo em que vivemos hoje.

Muitos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial continuam a ser populares atualmente, mesmo os feitos na época. São sempre filmes bem-sucedidos, há algo de mágico sobre este assunto, pelo menos na Europa Ocidental.
Absolutamente. A Segunda Guerra Mundial é o equivalente moderno à guerra de Troia para a Antiguidade, é uma forma de avaliarmos tudo o que vem a seguir porque nos dá uma forma metafórica de olhar para o bem e para o mal de que um ser humano pode ser capaz. Como escritor, interessou-me perceber como é que alguns desses mitos foram criados durante a própria guerra. Vários clichés dos filmes ou romances sobre a Segunda Guerra Mundial, que acabaram por se tornar um standard dentro deste género, foram inventados por razões muito específicas durante a própria guerra, parcialmente para atingir objetivos propagandísticos por parte do governo americano.

leonidio.ferreira@dn.pt