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05 dezembro 2021 às 00h24

O discreto armazém de Lisboa onde se recuperam tesouros náuticos nacionais

É no Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática que se estudam, identificam e recuperam as peças encontradas em contextos aquáticos ou ligadas ao mar. A cidade de Lisboa e o rio Arade, no Algarve, são dois dos locais ricos neste tipo de arqueologia.

Quem passe frente ao portão do número 5 da Rua da Manutenção, em Xabregas, está longe de imaginar que aqueles antigos armazéns de tabaco acolhem desde agosto milhares de tesouros arqueológicos marítimos que estão a cargo do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), um organismo tutelado pelo Ministério da Cultura. "O Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática é um centro que foi fundado em 1997 cuja missão é tratar de todos os assuntos que digam diretamente à arqueologia subaquática e náutica em Portugal. Subaquática é fácil de se entender, é tudo o que acontece debaixo de água, seja o mar, seja um rio, seja um lago. E náutica também porque há um conjunto de elementos de espólio que dizem respeito à náutica e que são encontrados em contextos que não necessariamente debaixo de água. Estruturas portuárias, restos até mesmo de embarcações, como tem ocorrido frequentemente nos últimos anos, por exemplo, na frente ribeirinha de Lisboa. As missões do centro são pugnar pela salvaguarda e proteção de todos esses bens e gestão desses bens", explica ao DN José António Gonçalves, coordenador do CNANS.

Cerca de 80% deste novo espaço é dedicado ao laboratório e apenas 20% à parte administrativa. A missão do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática não é incorporar peças no seu acervo, mas sim estudar e inventariar peças, bem como fazer o tratamento e conservação de peças arqueológicas que depois serão entregues ao Museu Nacional de Arqueologia, a museus locais ou até mesmo a entidades privadas.

Uma visita guiada às instalações do CNANS permite perceber a dimensão do trabalho dos três conservadores e sete arqueólogos do centro. O acervo deste centro conta com cerca de 20 mil entradas de inventário, tendo peças de pequena e grande dimensão, como fragmentos de cerâmica, espadas, canhões e destroços de embarcações.

O local onde tudo começa, depois de as peças chegarem ao CNANS e serem limpas, é a unidade de tanques de imersão preventiva. Uma sala enorme cheia de tanques, onde estão dezenas de peças imersas. "As peças mais recentes desta área são do ano passado, que são peças de madeira de um barco que foi posto a descoberto pela abertura natural da Lagoa de Melides. De resto temos de tudo, de norte a sul do país, muitas coisas de Aveiro, a ria também tem uma série de naufrágios, muitos destes tanques têm também um barco do Arade, que é o Arade 1, de grande dimensão, do século XIX, que foi integralmente escavado e estudado por volta de 2004. Temos madeiras da Praça do Município de Lisboa, outras coisas de Lisboa da Praça D. Luís", mostra o coordenador do CNANS.

As joias da coroa desta sala estão na chamada zona dos metais. "Estes seis canhões fazem parte de um outro conjunto de Tesouros Nacionais recentemente classificados. São os canhões da Ponta do Altar, ao todo foram classificados os dez canhões de bronze da Ponta do Altar. Três deles estão tratados e expostos no Museu de Portimão, há um outro que também está tratado que nós temos em caixa, e temos estes seis aqui que estão a aguardar tratamento. Eles já estão estabilizados, é só dar uma limpeza", conta José António Gonçalves. "Acredita-se que possam ter vindo de um barco em dificuldades, estamos a falar de um barco do século XVI, que numa situação de tempestade está com dificuldades de navegação, deve ter procurado abrigo no estuário do Arade, mas até chegar lá, para contornar a Ponta do Altar, deve ter largado carga, largou peso ao mar para ter mais capacidade de manobra, e nessas alturas começa-se pelo mais pesado, como os canhões".

Numa zona lateral estão os tanques onde é feita a dessalinização das peças. O espaço não é tão imponente como a sala anterior, mas estes pequenos tanques também têm mergulhados pequenos tesouros. Como cerâmicas de Aveiro, uma lanterna do Torvore, um cargueiro norueguês que em 1917 foi abatido e naufragado por um submarino alemão ao largo de Sagres, ou roldanas do galeão francês Océan, derrotado por uma esquadra inglesa na famosa batalha de Lagos, acabando por naufragar já na Praia da Salema. José António Gonçalves aproveita para recordar que foi este confronto bélico que deu origem à Guerra dos Sete Anos e que o Océan é "o único circuito visitável em Portugal".

"Esta espada do Arade, que já se fez a radiografia e já esteve exposta no Museu de Arqueologia, chegou-se à conclusão que é possível que a lâmina de ferro esteja muito danificada e que tirando a compressão estamos a infligir mais danos e teremos dificuldade em preservá-la. O assunto ainda não está fechado, mas para já ficará assim", conta o coordenador do CNAS, quanto empunha a espada. "Ela foi encontrada fora do contexto, foi num naufrágio no Rio Arade, o Rio Arade está pejado de naufrágios, desde o período romano à modernidade, e ela não tinha um naufrágio associado, por isso não sabemos bem o contexto. Mas pela tipologia é qualquer coisa medieval. No Arade há sempre a ambição de um dia se encontrar vestígios da frota viking que foi derrotada pelos muçulmanos, houve uma esquadra de vikings que tentou conquistar a cidade de Silves, veio uma esquadra de Sevilha para ajudar a defender a cidade e houve uma batalha grande que os vikings perderam e há a veleidade de se encontrar no Arade os restos da batalha", conta o conservador.

É no Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática que também estão as seis pirogas que foram recentemente classificadas como Tesouro Nacional. Duas delas estão submersas em dois tanques cheios de água e polietilenoglicol, uma substância que ajuda a consolidar as peças. "Aqui vemos uma ponta da piroga número 5 do Rio Lima, são pirogas monóxilas, quer dizer que foram escavadas a partir de um único tronco de árvore, neste caso, um carvalho de grandes dimensões e mais do que centenário. Esta, e outra que está ali do outro lado, estão datadas do final da Idade do Ferro, um pouco antes dos romanos entrarem na Península Ibérica, mais ou menos há dois mil anos", refere o coordenador do CNANS. De referir que a piroga número 5, por exemplo, está dentro de água desde que foi descoberta, em 2004. Segundo José António Gonçalves, a previsão é que fique mais quatro a seis anos imersa no tanque onde está atualmente e depois passe mais um ano na secagem.

A secagem é, precisamente, o último passo desta linha de montagem de conservação de artefactos. No CNANS existem dois espaços de secagem: a máquina de liofilização para peças mais pequenas e um grande contentor, com mais de oito metros de comprimento, a chamada câmara de secagem atmosférica, onde atualmente está, entre outros artefactos, "a última peça a entrar, que é o Boavista 6, mas também o Ria de Aveiro A, que é um protótipo de caravela portuguesa", conta o responsável, sublinhando que as peças vão para ali desmontadas.

A mudança para as instalações de Xabregas vai ser celebrada com uma inauguração oficial até ao final do ano e que abrirá um novo capítulo na vida do CNANS, a primeira exposição aberta ao público. "Vamos ter expostas a piroga número 2 e a piroga número 6. Curiosamente, a número 6, que é a que está toda deformada, foi a última a ser recuperada, quando já havia todas as condições para que isso não acontecesse, mas quando a comunicaram a piroga já estava assim. Hesitámos entre a número 1 e a número 2, mas como a número 1 está pronta a ser entregue ao Museu de Caminha e não queríamos que isso coincidisse com a nossa exposição temporária", explica José António Gonçalves.

Pronto para entrar em funcionamento está também um projeto que envolve algumas âncoras enormes, atualmente encostadas a uma parede do pátio das traseiras, e canhões de pequena dimensão. "Temos um projeto que está fechado de devolvermos estas âncoras ao mar e criarmos uma reserva subaquática. Há um sítio já escolhido, em Sesimbra, é um projeto feito em parceria com a Câmara de Sesimbra. A ideia é conjugar uma área que já começa a ter a tradição do mergulho e poder proporcionar um espaço de reserva museológica e que sirva como circuito de visita para mergulhadores".

ana.meireles@dn.pt