Sociedade
05 dezembro 2021 às 00h21

Meio século no Japão a ensinar português a diplomatas e a candidatos a fadista

Manuela e José Álvares conheceram-se na Universidade de Coimbra e casaram já a saber que iriam para Tóquio. Regressaram a Portugal depois de 48 anos a ensinar no Japão a língua e a cultura portuguesas e lançaram agora o livro Novos Ensaios Luso-Nipónicos.

Foram muitos os antigos alunos que sofreram há quatro anos com a partida de José e de Manuela Álvares do Japão - afinal o país foi a sua casa durante quase meio século, pois chegaram em 1969. E o casal português recebeu emotivas cartas de despedida, como uma que Manuela me mostra com especial carinho, pedindo só para evitar expor o nome da antiga estudante japonesa que a assina. "Querida professora, desde quando ouvi a notícia da sua partida eu tentei tantas vezes escrever uma carta para si. Mas não consegui, porque me senti vaga como se fosse um deserto sem forma nem horizonte, onde não podia achar nenhuma palavra. Afinal, no último momento, vou tentar outra vez, para fazer uma promessa de reencontro e dizer obrigada por todos estes anos. A senhora não pode imaginar como enriqueceu a minha vida, como uma professora perfeita, dama encantadora e amiga sincera."

Nascida a 4 de dezembro de 1945, foi ainda com 23 anos que Manuela chegou ao Japão, que desde o primeiro momento a encantou, tudo tão delicado, até a maneira de ser das pessoas. "Gostei do país assim que aterrei. Estava tão curiosa", conta, enquanto José, sentado junto, sorri. Ela é do Norte de Portugal, de São João da Madeira, ele, cinco anos mais velho, nasceu a 3 de março de 1939 em Goa, na cidade de Pangim, quando ainda havia uma Índia portuguesa como parte do império. Conheceram-se estudantes em Coimbra, onde Manuela se formou em Filologia Clássica e José em História.

"Fui eu que fui o culpado de irmos para o Japão. Ia ser leitor de português em Espanha, mas surgiu a necessidade urgente de alguém em Tóquio. Nunca tinha pensado nisso", relembra José. Para Manuela foi uma oportunidade de vida e de experiência inesperada, mas que deixou a família preocupada. "Para onde é que ia a menina deles, para tão longe. Os meus pais preferiam ter-me mais perto", diz. "Nunca tinha visto Lisboa até vir apanhar o avião", sublinha.

Fundaram, e isso mostra o seu empreendedorismo, em 1987, na capital japonesa, o Centro Cultural Português, uma escola privada criada do zero pelo casal. Manuela mostra-me os manuais que fez ela própria para alunos, que uns queriam aprender a língua para trabalhar em Portugal ou no Brasil, outros, muitos mesmo, sonhavam sobretudo cantar fado, que se tornou famoso com a visita de Amália. E ri-se. Mas ao mesmo tempo que iam estudando o japonês eles próprios, começaram por trabalhar para o Instituto de Língua e Cultura Portuguesas (ICALP), do Ministério da Educação, com Manuela a ser durante muitos anos professora na Universidade Sofia e na Waseda e José na Universidade de Tóquio e na Universidade de Línguas Estrangeiras. Com a extinção do ICALP a seguir ao 25 de Abril de 1974, os empregadores passaram a ser entidades do governo japonês, o Ministério da Educação e também o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Pelo casal português passaram muitos futuros embaixadores e cito-lhes, por mera curiosidade, alguns nomes de diplomatas japoneses que conheço e que são fluentes em português e descubro que, claro, foram seus alunos.

O regresso a Portugal foi em 2017, e por pouco não os conheci quando estive no Japão em reportagem nesse ano, indo a Tóquio, mas também Hiroxima e Nagasaki, onde, comento com Manuela, comi castela, o bolo local, inspirado no pão de ló.

Instalaram-se em Lisboa, onde vivem a filha e a neta, que no fim da nossa conversa sei que a avó irá buscar à escola. Ontem apresentaram no Centro Cultural de Belém o livro de ambos, com o título Novos Ensaios Luso-Nipónicos. E lá estava a assistir uma boa dúzia de japoneses, incluindo o embaixador, Ushio Shigeru. Não faz muito tempo foram agraciados com a Ordem do Tesouro Sagrado, Raios de Ouro com Roseta, condecoração atribuída pelo imperador do Japão (desde 2019 Naruhito) a quem contribuiu para a promoção da relação entre o Japão e outros países ou para a divulgação da cultura japonesa nos seus países. Foi feita à medida dos dois.

José, que explica as peculariedades da sociedade nipónica com um profundo conhecimento, já escreveu muito sobre as relações históricas entre o Japão e Portugal, que datam dos séculos XVI e XVII, antes de o arquipélago se fechar ao exterior. E oferece-me Portugal e o Japão, Tratado de Paz, Amizade e Comércio de 1860 e as Relações Diplomáticas, um livro que assinalou os 150 anos de laços diplomáticos. De volta ao contacto com o mundo, o Japão de meados do século XIX só podia ver no Portugal seu contemporâneo - era então rei D. Pedro V - um velho conhecido. "Nós dizemos que descobrimos o Japão em 1543, ou que fomos os primeiros europeus a lá chegar. Os japoneses dizem só que encontraram três náufragos. Eles são muito frugais nas palavras. Por exemplo, de São Francisco Xavier a Luís de Fróis, muitos escreveram sobre os japoneses, mas só existe da época um texto japonês sobre os portugueses e o tema é a introdução do mosquete. Mas desenharam-nos muito e é nos biombos que melhor está registado o que viram os japoneses de há 500 anos nos portugueses. A nossa presença foi sobretudo de proselitismo religioso, e por isso acabou em expulsão", explica José, assumindo aqui a análise do historiador sobre o país que após a restauração Meiji de 1868 teve um grande desenvolvimento e ainda hoje é um colosso económico, com o terceiro maior PIB, só atrás da América e da China, mas com muito menos população e território, uns 126 milhões de habitantes numa área equivalente a cinco "portugais".

A questão do proselitismo leva a conversa para o filme Silêncio, de Martin Scorsese, e fico a saber que José e Manuela conheceram Shusaku Endo, o romancista que escreveu o livro sobre os jesuítas portugueses no Japão que serviu de base ao realizador americano. Manuela mostra-me uma foto do marido com o escritor, num encontro onde estão também Armando Martins Janeira, um embaixador em Tóquio que muito estudou a história luso-nipónica, e a mulher deste, Ingrid, a qual assistiu agora ao lançamento do novo livro do casal.

Armando Martins Janeira, que deixou livros memoráveis como O Impacte Português sobre a Civilização Japonesa (publicado em 1970 e com tradução japonesa logo em 1971), foi um dos primeiros a escrever sobre Wenceslau de Moraes, português que no início do século XX muito deu a conhecer, com as suas distorções muito pessoais, o Japão aos portugueses (chegou a publicar textos no Diário de Notícias). Ora, também José publicou ensaios sobre o antigo cônsul em Kobe, que se perdeu de amores pelas japonesas, a quem reconhece, apesar da excentricidade da personalidade, esse papel de ponte entre os dois países. E neste Novos Ensaios não podia faltar vários textos dedicados ao ex-militar, como "Moraes e a visão mítica do Nippon".

José e Manuela casaram antes de partir para o Japão. "Podia lá ser de outra forma naquela época", comenta, entre risos, a professora de Português. E em 1970 nasceu Cláudia, hoje professora no ISCTE, durante toda a infância e adolescência uma menina portuguesa criada no Japão. Licenciada pela Nova de Lisboa e doutorada em Estudos de Comunicação por uma universidade britânica, a filha única de José e Manuela não deixa de ter uma forte ligação emocional ao país onde nasceu, ao ponto de ter traduzido para português Katie e o Devorador de Sonhos, ilustrado por Brian Wildsmith e escrito pela princesa Takamado, da família imperial nipónica.

Manuela diz terem sido tempos felizes os da vida no Japão e lembra-se da boa relação com as vizinhas em Tóquio, às quais ensinou a fazer bacalhau: "Havia uma carrinha que ia ao nosso bairro vender peixe. Eu comprava todos os bacalhaus salgados parecidos ao nosso, mas muito mais pequeninos. Ao fim de algum tempo, comecei a explicar às japonesas como se preparava."

Dos japoneses, diz Manuela que "é um povo muito educado, organizado, civilizado, requintado, culto, com uma grande sensibilidade e um elevado sentido de estética". Mas ela, conta, foi dos dois quem chegou mais entusiasmada ao país que seria a segunda pátria do casal. Estava atraída pelo Japão desde que encontrara na estante da casa dos pais um livro de Wenceslau de Moraes (de novo!). Já para José, como o próprio fez questão de contar quando recebeu a condecoração, "a minha relação com a cultura e língua japonesas não foi aquilo a que os japoneses chamam de hitomebore ("amor à primeira vista"), mas antes koi no yokan ("amor à segunda vista"). Mas tornou-se uma paixão essa relação com o país ao ponto de muitas vezes citar um provérbio que diz Sumeba Miyako, ou seja, a nossa terra é onde nós vivemos. E foi quase meio século de Japão como terra que o casal Álvares viveu, uma experiência única. Arigato por esta nossa conversa.

leonidio.ferreira@dn.pt