O jejum intermitente não é uma dieta milagrosa, mas há quem diga que faz "milagres"

Dezasseis horas em jejum, um intervalo de oito em que pode fazer duas ou três refeições. Este é um dos esquemas possíveis, e talvez o mais almejado, do jejum intermitente. O que é, que benefícios traz, que dúvidas levanta. É sobre isso que vai ler a seguir.
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Os benefícios de adotar períodos de jejum alargados, que podem ir de 12 a 18 horas, e comer num intervalo de tempo mais limitado do que aquele a que as sociedades desenvolvidas se habituaram estão a ser estudados em todo o mundo, com resultados promissores.

O jejum intermitente poderá ser revolucionário na prevenção de doenças cardiovasculares, metabólicas, autoimunes, neurológicas e até oncológicas. Mas a maioria dos estudos realizados baseia-se em modelos animais e ainda há um longo caminho a percorrer para determinar o seu real poder nos humanos.

No entanto, multiplicam-se os livros, artigos, uns científicos outros nem por isso, os sites, etc., dedicados a este regime, que não é uma dieta de emagrecimento milagrosa, embora muitas vezes seja apresentado como tal.

A curiosidade sobre o jejum intermitente é crescente e nós tentámos satisfazê-la.

Alexandra Vasconcelos, formada em Farmácia, naturopata, fitoterapeura e terapeuta natural integrativa, lançou recentemente o livro O Poder do Jejum Intermitente (Ed. Planeta), no qual explica pormenorizadamente o que acontece no nosso corpo quando fazemos jejum, conforme o tempo de privação de alimento que adotarmos - alteração metabólica; melhoria da sensibilidade à insulina; aumento da produção da hormona do crescimento; reprogramação metabólica; prioridade na reparação de células danificadas e reciclagem (autofagia).

E apresenta os possíveis benefícios que estas alterações provocam: perda de peso, reversão da diabetes, melhoria da saúde cardiovascular, controlo das doenças autoimunes, melhoria da saúde do cérebro e prevenção de doenças neurológicas, diminuição do défice de atenção e crises de epilepsia, redução da inflamação crónica e do stress oxidativo, melhoria da saúde do intestino, prevenção e tratamento do cancro, desintoxicação do organismo, aumento da longevidade.

Isto garantindo que é fácil, cómodo, universal (pode ser, de acordo com a autora, feito por toda a gente, com exceção de alguns grupos de risco que necessitam de jejuns mais moderados - pessoas em convalescença, pessoas com peso muito baixo, grave desnutrição ou caquexia, grávidas ou mulheres a amamentar, bebés, crianças e jovens menores de 18 anos, pessoas com transtornos alimentares como bulimia e anorexia e diabéticos tipo 1, que só devem fazê-lo sob vigilância médica), ajustável, concretizável a longo prazo, eficaz, económico e ainda contribui para a sustentabilidade do planeta.

O entusiasmo com que Alexandra Vasconcelos escreve e fala do jejum intermitente é contagiante. Afinal, o que são 12 horas sem comer, se oito delas forem passadas a dormir? Catorze talvez seja um pouco mais difícil e 16 ou 18, que, de acordo com a autora, oferecem resultados otimizados, serão para muitos um autêntico desafio, mas para a naturopata são uma conquista não tão difícil de alcançar como parece à primeira vista.

"É inacreditável como a maioria das pessoas, depois de a primeira reação ser logo que não conseguem, ao fim de três ou quatro dias dizem que é mágico, não têm fome e é fácil. Isto põe-lhes a autoestima lá em cima, porque conseguiram ultrapassar uma fragilidade, sentem-se seguras e em controlo. Passado o impacto inicial, toda a gente consegue e toda a gente se sente bem", diz a naturopata, que garante que não há qualquer contraindicação para 12 ou 14 horas de jejum.

"Faz parte do nosso ADN, desde há milhares de anos. O nosso corpo está preparado para a privação de comida, não está preparado é para o excesso, para o aporte contínuo de comida, que muitas vezes nem é comida. Isso é que provoca as doenças crónicas todas que temos hoje", diz.

Salvaguardando que quem não é saudável deve ser acompanhado e monitorizado por um nutricionista funcional, "porque cada doença tem o seu esquema alimentar muito específico", descreve como "mágico" o efeito do jejum intermitente.

"Hoje sabemos que podemos e devemos ajustar a alimentação à nossa genética. Se eu fizer isso, e ao mesmo tempo fizer um jejum de 12, 14 ou 16 horas isso tem um efeito mágico. Por exemplo, uma pessoa que tenha uma doença autoimune, se conseguir fazer um jejum de 24 horas uma vez por semana, faz um reset do sistema imunitário, que produz uma reparação brutal da resposta imune, graças à autofagia e à regeneração das células."

No caso de pessoas saudáveis, para Alexandra Vasconcelos, o jejum intermitente pode ser feito sem monitorização. "Não é preciso acompanhamento para fazer jejum, a não ser nos casos que já referi, é preciso acompanhamento é para saber o que comer. Não faz sentido adotar este regime alimentar e depois não fazer uma alimentação saudável durante o intervalo fora do jejum. Na verdade, a maior parte das pessoas já faz um jejum de 12 horas, se dormir oito horas e não comer nas quatro horas antes de ir dormir. E muitas só comem logo de manhã, antes de sair de casa, porque acham que têm que o fazer porque a vida inteira lhes disseram isso. Mas não têm."

O pequeno-almoço (breakfast, em inglês, que traduzido à letra dá "quebra de jejum") é a refeição mais importante neste regime e de acordo com a autora do livro O Poder do Jejum Intermitente deve ser pobre em açúcar e hidratos de carbono e rica em gorduras saudáveis, legumes e ter alguma proteína. No livro que escreveu dá conselhos sobre o que e como comer para atingir os objetivos, o maior dos quais uma vida mais longa e saudável.

A nós adianta que o esquema mais eficaz é aquele que melhor se ajustar à vida de cada um. "O essencial é que a pessoa consiga fazer do jejum intermitente uma prática diária simples e agradável. Se eu conseguir incluir 16 horas de jejum diário com um intervalo de oito em que posso comer num esquema que não afete a relação com a minha família e amigos, é excelente. Os mais novos optam normalmente por jantar mais tarde, fazer o período de jejum e depois começar com um brunch ao meio-dia ou à uma. Os mais velhos preferem fazer um bom pequeno-almoço e depois fazem um lanche ajantarado mais cedo."

Fazer um jejum de 24 horas uma vez por semana ou de 15 em 15 dias e uma dieta que imita o jejum de cinco dias uma vez por ano são para a autora procedimentos essenciais para tirar o máximo de partido do "poder do jejum intermitente", "para aproveitar a autofagia, que é tão importante na prevenção de doenças cardiovasculares e metabólicas, na prevenção do cancro, na desintoxicação, no controlo de doenças autoimunes, graças à reparação de células danificadas. O japonês Yoshinori Ohsumi foi Prémio Nobel da Medicina de 2016 pela descoberta da autofagia".

Aquando da receção do prémio, o laureado salientou que a investigação sobre a autofagia estava numa etapa inicial e que o conhecimento do seu papel fisiológico em particular estava a dar os primeiros passos.

A nutricionista Sofia Rocha também lembra que a maioria da evidência científica relativa ao jejum intermitente se baseia em estudos realizados em animais, o que não é suficiente, na sua opinião, para validar os "alegados benefícios" deste regime alimentar.

"Os resultados são preliminares e não podemos extrapolar diretamente para os humanos as evidências de benefícios para a diabetes, a doença cardiovascular, o cancro ou as doenças neurológicas obtidas em animais", diz a nutricionista, que tem um olhar crítico relativamente à simplificação que considera existir sobre o jejum intermitente e a um exagerado otimismo em relação ao seu poder.

"É preciso ter cuidado com as interpretações e afirmações que se fazem a este nível. A opção do jejum intermitente pode ser uma opção válida, uma estratégia segura, se acompanhada, mas não devemos promovê-la ao desbarato nem simplificá-la demasiado. É importante ter uma visão crítica e não dar como certo tudo o que surge", diz a nutricionista, preocupada sobretudo com a adoção deste regime sem supervisão por pessoas com cancro ou com distúrbios alimentares.

"Há pessoas que podem ter contraindicações. Os doentes oncológicos devem ter sempre acompanhamento e monitorização, avaliar se é adequado e adaptar à individualidade, às necessidades e à condição clínica, até porque no caso do cancro não está indicada a perda de peso, por exemplo, o que os protocolos dizem é que é importante manter um bom estado nutricional e este tipo de regime pode ser prejudicial, se não for bem acompanhado e monitorizado. Outra questão são aqueles que não tenham uma boa relação com a alimentação. O jejum intermitente pode até exacerbar alguns comportamentos nocivos", alerta Sofia Rocha.

Diga-se que esta é uma preocupação partilhada por Alexandra Vasconcelos, que coloca entre os que não devem fazer jejum mais de 12 horas as pessoas que sofrem de transtornos alimentares como a bulimia e a anorexia.

O que Sofia e Alexandra não partilham é o otimismo relativamente à facilidade de adotar o jejum intermitente como modo de vida. Não negando as possíveis virtudes do regime, a nutricionista mantém reservas quanto ao seu real poder, sobretudo quando a palavra "cura" é utilizada.

"Pode ser um regime a ser adotado, mas deve ser adaptado a cada pessoa, não é fácil de adotar a longo prazo e é preciso ter cautela quando se usa o termo curar. Não é cura para todos os problemas. Por exemplo, na diabetes tipo 2, que está associada ao estilo de vida. É um facto que pode ser reversível, mas isso está muito ligado à perda de peso. Havendo grande perda de peso, há melhoria de vários fatores de risco, nomeadamente pela melhoria da sensibilidade à insulina, que não se obtém apenas através do jejum. Para perder peso temos de estar no chamado défice calórico - ingerir menos calorias do que as que gastamos. O jejum intermitente pode ser uma opção válida, mas não quer dizer que seja melhor do que uma restrição energética contínua, em que a pessoa vai comendo ao longo do dia e mantém a restrição. O que importa acima de tudo é a adesão da pessoa, independentemente do regime adotado", diz Sofia Rocha.

Alexandra Vasconcelos não concorda com aquilo que ainda hoje é defendido pela maioria dos nutricionistas. "Há uma robustez enorme de evidência científica que nos diz que comer de três em três horas não é o melhor caminho. A justificação é que comer de três em três horas estimula o metabolismo, mas o que é facto é que o jejum estimula mais, porque aumenta a produção da adrenalina. Comer duas vezes ao dia e respeitar um jejum de pelo menos 16 horas estimula o metabolismo e corrige todos os mecanismos que permitem não engordar", diz.

Catarina Fidalgo, médica gastrenterologista no Hospital Beatriz Ângelo, situa-se entre estas duas visões. Mantendo reservas relativamente aos resultados "mágicos" do jejum intermitente, considera que este tem um potencial que não deve ser negligenciado.

"Há um grande interesse da opinião pública nos alegados méritos do jejum intermitente, que não é descabido porque também a comunidade científica se tem dedicado a investigação séria nesta área. O mais importante é não assumir à partida que os benefícios teóricos são reais. O método científico exige que cada hipótese seja validada ou desmentida e esse caminho não foi feito ainda para a maioria dos ganhos em saúde que estão a ser atribuídos ao jejum intermitente", diz, adiantando que, em dezembro de 2019, estavam registados e em curso dezenas de ensaios clínicos nesta área, portanto há que aguardar por ensaios clínicos randomizados e controlados que "vão seguramente implicar intervenções de meses ou mesmo anos, e ter conclusões robustas apenas a longo prazo" sobre os benefícios, nomeadamente a nível oncológico, cardiovascular ou neurológico.

"Uma questão que limita o poder dos estudos nesta área é que muitas vezes se alia o jejum intermitente a alguma restrição calórica ou a regimes de exercício físico. Assim fica difícil provar que os méritos são do jejum intermitente e não do total das intervenções (restrição calórica + exercício + jejum intermitente). Noutras áreas de investigação como o cancro ou as doenças autoimunes ou neurodegenerativas muitas vezes fazem-se outras intervenções ao mesmo tempo incluindo medicação e, por isso, é difícil provar que o efeito benéfico advém especificamente do horário das refeições", explica a médica.

Quanto às alterações que o jejum provoca no nosso corpo, Catarina Fidalgo confirma-as.

"A reprogramação metabólica é real. A proposta é que a cetogénese aumenta a resistência das mitocôndrias ao stress, aumenta a defesa antioxidante, aumenta os mecanismos de autofagia, a reparação de ADN, diminui a insulina e suprime vias inflamatórias. A longo prazo pensa-se que isto pode aumentar a sensibilidade à insulina, melhorar o metabolismo lipídico, reduzir a inflamação e a pressão arterial. O jejum induz uma alteração metabólica que ocorre em pleno após 24 horas de jejum (no mundo industrializado raramente fazemos períodos de jejum superiores a 12 horas e por isso essa alteração metabólica nunca chega a ocorrer em pleno). Essa cascata de alterações metabólicas associa-se a um aumento dos processos de autofagia (eliminação de moléculas e organelos celulares senescentes ou danificados); suprime vias de inflamação; aumenta a sensibilidade à insulina", diz a médica, com uma ressalva.

"Atenção, só porque temos uma narrativa que nos faz sentido do ponto de vista da biologia molecular isso não significa que depois, em circunstâncias experimentais, consigamos provar os méritos dessa intervenção. Em medicina e biologia já se construíram grandes narrativas que depois falharam a prova de fogo da aplicação prática."

Relativamente à facilidade de integrar um regime como o jejum intermitente, seja qual for o esquema adotado, Catarina Fidalgo também não partilha do otimismo de Alexandra Vasconcelos.

"Os efeitos adversos mais descritos são a sensação de fome, irritabilidade e a dificuldade de concentração. Alguns autores propõem que estes se atenuam com o passar do tempo."

Mas quanto à capacidade de adaptação do organismo, médica e terapeuta estão de acordo. "A questão de o corpo humano não estar habituado a isto é discutível. Se pensarmos na evolução das espécies ao longo de milhões de anos provavelmente os mecanismos de adaptação a períodos de jejum prolongado foram mais preservados do que os mecanismos para lidar com disponibilidade e abundância totais de alimento. A verdade é que estes regimes chocam sobretudo com a nossa cultura atual e os efeitos de fome, irritabilidade, dificuldade de concentração, são uma barreira importante à sua aplicação. Sabemos ainda que a adesão a estes regimes será conseguida apenas por períodos de tempo limitados, provavelmente. Os ganhos por exemplo a nível cardiovascular parecem dissipar-se após quatro semanas do final da intervenção", diz Catarina Fidalgo.

Para a gastrenterologista, sendo a obesidade uma das doenças mais importantes do século XXI, não devemos desvalorizar os ganhos que o jejum intermitente pode trazer nesse campo.

"A medicina precisa urgentemente de encontrar respostas para a obesidade e todo o síndrome metabólico associado e o jejum intermitente pode fazer parte dessa estratégia. Aliás os estudos sobre jejum intermitente associam-se muitas vezes a restrição calórica e a exercício físico. De qualquer modo tenho uma preocupação como médica em relação às pessoas com um perfil de hipocondria ou distúrbios do comportamento alimentar ou perturbações de autoimagem. Preocupa-me que se não estiverem acompanhadas por um médico ou especialista em dietética e nutrição possam incorrer em comportamentos lesivos para a sua saúde a pretexto do jejum intermitente. A minha recomendação é que as pessoas que pretendam saber mais e iniciar uma alteração do estilo de vida neste sentido se aconselhem com um profissional de saúde", diz Catarina Fidalgo, que considera não existir ainda evidência que permita assumir que este regime deve ser adotado por todos os indivíduos saudáveis.

"Penso que deve ser sempre discutido e monitorizado numa fase inicial por um profissional de saúde. No caso de pessoas não saudáveis (doentes com síndrome metabólico, doença oncológica ou neurodegenerativa) estes protocolos devem ser propostos e monitorizados em âmbito de ensaio clínico para que, no futuro, saibamos se há ou não há benefício e que os doentes do futuro possam beneficiar dessas conclusões. Considero que seria muito infeliz se pessoas em fim de vida estivessem privadas do prazer que a comida nos dá sem que de facto essa privação tivesse ganhos reais para a sua saúde."

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