"Para quê casar?", questiona Winona Ryder em Mulherzinhas (1994), de Gillian Armstrong. Bem entendido, a pergunta sai da boca de uma personagem do século XIX. É a protagonista Jo March, uma rapariga indomável a viver em Massachusetts com as três irmãs e a mãe, que, ao contrário delas, despreza a feminilidade, adora escrever e sonha conhecer a Europa. São os tempos da Guerra Civil Americana - que justificam a ausência doméstica do pai - e esta personalidade inadaptada corresponde ao alter-ego da autora do clássico juvenil, Louisa May Alcott (1832-1888). Alguém que não se dava bem com espartilhos de qualquer tipo..O filme que está a celebrar 25 anos é talvez a adaptação mais popular deste romance autobiográfico, publicado em 1868. Mas, para além de Ryder, outras vigorosas atrizes vestiram a pele de Jo no grande ecrã, como Katharine Hepburn, no título assinado por George Cukor em 1933, ou June Allyson, na versão de 1949. Cabe agora a Saoirse Ronan, na nova adaptação que chega às salas americanas no final do ano (mais precisamente, no dia de Natal), renovar o simbolismo da questão - "para quê casar?" - nos termos em que a realizadora e argumentista Greta Gerwig a puser. Depois de Lady Bird, o filme que valeu a ambas nomeações para os Óscares, eis o projeto que volta a pôr à experiência a química destes talentos à frente e atrás da câmara..Numa entrevista dada à publicação Vanity Fair, Gerwig revelou alguns detalhes sobre o trabalho que tem em mãos, referindo, desde logo, o desejo que sempre acalentou em adolescente de ser como Jo - um pouco como a escritora Simone de Beauvoir, que encarnava essa personagem nas suas brincadeiras de criança. Porém, as restantes irmãs March não ficam atrás na sua consideração. Nota a realizadora que "cada uma delas leva muito a sério o que faz": Jo, como já referido, escreve, Meg gosta de representar, Amy pinta e Beth toca piano. Cada qual com a sua arte..Pela mesma ordem, Saoirse Ronan faz-se acompanhar por Emma Watson, Florence Pugh e Eliza Scanlen nos papéis das quatro irmãs. Juntam-se a estas Laura Dern, que é a mãe, Meryl Streep, na personagem pouco simpática da velha tia March, e Timothée Chalamet como Laurie, o vizinho da família que se torna o melhor amigo de Jo. E aqui não há como fugir a um dos aspetos mais curiosos, tanto da narrativa em si (que reporta à sua autora) como da nova versão cinematográfica..Com efeito, Gerwig está interessada em explorar esta amizade - por muitos vista como romântica - na sua complexidade de género. "Jo é uma rapariga com nome de rapaz, Laurie é um rapaz com nome de rapariga", diz a realizadora, acrescentando que tanto Ronan como Chalamet "têm uma ligeira qualidade andrógina que os torna perfeitos para as personagens". Algo que fica ainda mais evidente quando Jo/Ronan veste roupas masculinas, tal como já estava explícito no livro de Louisa May Alcott..E voltamos ao início deste texto: um dos deliciosos mistérios que permanecem em relação à autora prende-se com o facto de esta nunca se ter casado - ao contrário de Jo, a quem teve de dar o "final feliz" do casamento na sequela Boas Esposas, a contragosto e por insistência das suas leitoras. Numa entrevista com a autora e crítica literária Louise Chandler Moulton, datada de 1883, Alcott confessou: "Estou bastante convencida de que sou uma alma masculina que, por algum acidente bizarro da natureza, foi colocada num corpo de mulher... Porque ao longo da minha vida foram muitas as mulheres bonitas por quem me apaixonei e nunca por nenhum homem." Sabe-se, contudo, que a escritora teve uma relação amorosa com um jovem polaco, a quem nos seus diários apelidou de Laddie (também esta uma alcunha que soa a nome feminino), que terá sido a inspiração para o personagem de Laurie..Embora tenha ficado conhecida pela sua literatura juvenil - importa lembrar que o sucesso Mulherzinhas foi uma encomenda do editor, que lhe pediu um "livro para raparigas" -, Alcott gostava mesmo era de escrever pulp fiction, romances impetuosos e sensacionalistas com protagonistas determinadas e violentas. Textos escritos sob pseudónimos que só foram recuperados depois da sua morte, e que permitem perceber a bravura feminista, de resto, subjacente em Mulherzinhas, na nobreza de carácter da família March, que espelha as suas causas pessoais, como seja o abolicionismo. No seu zelo pela comunidade e luta pela emancipação feminina, Alcott foi enfermeira durante a Guerra Civil Americana, fez campanha pelo sufrágio feminino e foi a primeira mulher a registar-se para votar em Concord, Massachusetts..É também regressando a esse cenário onde a autora e as irmãs cresceram - Massachusetts - que Greta Gerwig procura o lado físico da história, a fibra de uma memória autobiográfica que se tornou território comum de muitas raparigas emancipadas. Afinal, como diz a realizadora, as pessoas desta família "eram as mais modernas que alguma vez existiram, até àquele momento".